
Por Jorge Pinheiro, de São Paulo
Perseguição aos imigrantes sem documentos transforma região italiana em campo de caça, e mostra como usar o cristianismo para fomentar o ódio e o racismo
Na Lombardia, o município de Coccaglio lançou a operação White Christmas. Policiais vão de casa em casa para controlar a presença de imigrantes não legais na cidade e expulsá-los, senão do país, como mínimo de Brescia.
A operação foi denominada pela imprensa “Um Natal branco sem imigrantes”. Assim, a partir de outubro, até os feriados natalinos, a cidade se transformará em campo de caça aos imigrantes ilegais. O objetivo da mobilização policial é varrer a área, disse o prefeito. E o secretário de Segurança de Coccaglio agregou: “O Natal não é festa de boas-vindas, é tradição cristã”.
Logicamente, tal decisão gerou polêmicas. E ativistas ligados aos direitos humanos, afirmam que tal caçada é totalmente ilegal. Mas, enquanto judicialmente a questão não é definida, a operação segue em andamento.
Mas outra questão que chama a atenção é o fato do Natal ser resgatado como festa italiana, de brancos, e mote para a perseguição daqueles que não são nem italianos, nem brancos e muito menos cristãos. Tal questão nos remete à teologia.
Bing Crosby canta “White Christmas”
Lo Spirito del Signore è sopra di me
perciò mi ha unto per evangelizzare i poveri
O teólogo estadunidense Ben Witherington III desenvolveu estudos sobre a marginalidade social de Jesus, a partir das acusações feitas a ele pela hierarquia sacerdotal da época (João 8.41) e chegou a algumas considerações interessantes. Ao não ter, por exemplo, pai reconhecido não tinha direito a um nome. Por isso, era visto como alguém de genealogia desconhecida. E o fato de ser nomeado “de Nazaré” (Lucas 4.34, 18.37, 24.19; e João 8.48), oriundo de uma vila de camponeses e artesãos, de mínima relevância, e afastada das rotas comerciais, fazia com que sua identidade geográfica também o desclassificasse como alguém que pudesse jogar papel de importância na vida política e social da Palestina.
Na cidade de Coccaglio, o nome escolhido para a operação policial, White Christmas, deve-se, aparentemente, ao fato de que terminará no dia 25 de dezembro. Para o criador da operação, o secretário de Segurança do município, Claudio Abiendi, há uma razão cristã, teológica, para a expulsão dos imigrantes ilegais: “Para mim, o Natal não é a festa do acolhimento, mas de nossa tradição cristã, de nossa identidade”.
Assim, até 25 de dezembro, Coccaglio, que tem um pouco menos de sete mil habitantes, dos quais um mil e quinhentos são estrangeiros, assiste as brigadas de carabineiros ir de casa em casa, tocar a campainha, e informar a cerca de quatrocentos não-europeus que eles devem deixar a cidade. E o prefeito Franco Claretti agrega: “Aqueles cuja autorização de residência expirou há seis meses, deveriam ter renovado seus vistos. Se isso não aconteceu, sua residência está automaticamente revogada”.
Mi ha mandato ad annunziare la liberazione ai prigionieri
e ai ciechi il ricupero della vista, a rimettere in libertà gli oppressi
A genealogia e geografia faziam de Jesus um palestino socialmente à margem, que, por suas origens, não merecia crédito. Mas, esse homem sem nome, esse homem sem terra, apresentou aos judeus e palestinos um programa político-social de reforma radical. Esse programa é apresentado e justificado pelo evangelista Lucas (4.14-30) e tem o exercício da justiça como centralidade.
E nessa pregação pela justiça, todos judeus e palestinos deveriam gozar concretamente de liberdade e usufruir dos bens da natureza – dom de Deus para suprir às necessidades humanas. E ao recorrer às promessas do jubileu (Lucas 4.19), aquele “nazareno” – e isso era um xingamento – sem terra e sem nome disse que a natureza era de todos e para todos, e condenou o monopólio que impossibilitava este destino universal. Dessa maneira, a justiça, tão presente no texto referido de Lucas, nasce da mensagem profética presente no discurso de Jesus, e consiste em reconhecer a gratuidade do amor de Deus na Palestina, e, posteriormente, no mundo. Por isso, o discurso de Jesus é o discurso da justiça, da ação justa que remete à paz.
A proposta de repressão aos imigrantes ilegais em Coccaglio é fruto da aprovação de um decreto de segurança que deu mais poderes ao prefeito. E como primeira medida exigiu de seus funcionários o levantamento da situação de todos os estrangeiros na cidade. É interessante notar que, em dez anos, a presença de imigrantes na cidade cresceu de 177 em 1998 para 1.562 em 2008, tornando-se cerca de 20% da população. Diante dessa presença de marroquinos, albaneses, gente da antiga Iugoslávia, entre outros, o secretário de Segurança diz que “não estamos a cometer nenhum crime, só queremos começar uma limpeza”.
Durante os últimos 36 anos Coccaglio foi governada pela esquerda. Mas a partir de junho a situação mudou, e a direita acusou a gestão anterior de ter permitido o caos da imigração ilegal na cidade. O ex-prefeito Louis Wrestling, de centro-esquerda, no entanto, diz que isso não é verdade. “É pura propaganda. Deixei a cidade unida, sem problemas de integração. Os noticiários nos últimos anos só registraram uma briga de faca entre kosovares. E nada mais”.
E a proclamare l’anno accettevole del Signore
Se o discurso de Jesus apresentou um alcance palestino imediato, a partir da própria realidade vivida pelo nazareno, tal discurso remete à catolicidade da promessa messiânica: a restauração do mundo. Ou seja, tal discurso visto sob a ótica teológica do referido texto de Lucas fala do fim da discriminação e da violência.
Conforme a caçada aos imigrantes ilegais toma corpo tem aumentado os protestos na cidade. E diante disso o secretário de Segurança se defende: “Eu sou crente, estudei no colégio dos salesianos. Onde estavam estas pessoas no domingo passado? Eu estava na Brescia do Papa”.
E enumera os resultados da operação White Christmas: “A partir de 25 de outubro tivemos 150 inspeções. Metade estava em situação irregular”. E disse que os municípios vizinhos de Castelcovati e Castrezzato também iniciaram ações semelhantes. Mas o apoio a tal política não parou aí. No dia 24 de outubro foi realizada a primeira convenção de prefeitos da Liga Coccaglio, em Milão, onde a operação White Christmas recebeu total apoio da direita. “O ministro Maroni é um homem prático, e nos deu conselhos sobre como implementar a medida sem sofrer sanções judiciais”, informou Claretti.
A proposta de reforma do Jesus marginal foi a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.
Assim, aquele homem de genealogia desconhecida e geografia marginal colocou a centralidade de uma reforma radical sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu Evangelho: o reformador marginal era o Cristo universalmente prometido. Niente a che fare con il Natale bianco del comune de Coccaglio!
22/11/2009
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Fonte de informação: ViaPolítica/O autor/la Repubblica