
Apesar de uma maior visibilidade, a deficiência ainda não é encarada com naturalidade no País
Fabiano Ormaneze
DA AGÊNCIA ANHANGUERA
fabiano.ormaneze@rac.com.br
O tema já chegou até a novela das oito da Rede Globo, Viver a Vida, na pele da personagem de Alinne Moraes, que fica tetraplégica após um acidente. Mas, apesar de alcançar essa visibilidade, a deficiência ainda não é encarada com naturalidade. O preconceito, a falta de informação e a dificuldade em como lidar com pessoas que têm algum tipo de deficiência ainda são barreiras contra as quais milhões de pessoas ainda precisam lutar. Essas, por sinal, são algumas das bandeiras a ser levantadas hoje, no Dia Internacional da Pessoa com Deficiência.
O Brasil tem, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), que instituiu a comemoração em 1992, cerca de 27 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. No mundo, são 650 milhões de pessoas, o que representa cerca de 10% da população. Em Campinas, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 11,4% da população vivem na mesma situação. “O preconceito vem diminuindo, mas a falta de informação ainda é muito grande”, diz o doutorando em economia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Vinícius Gaspar Garcia, de 33 anos. Ele ficou tetraplégico em 1995, depois de um acidente ao mergulhar na parte rasa de uma piscina durante uma festa de universitários.
Garcia conta que ainda é enorme a curiosidade das pessoas sobre o seu modo de vida, o olhar de estranhamento e, principalmente, a falta de preparo num encontro com ele. “Muitos médicos, inclusive, não sabem como lidar com as diferenças. Várias vezes me perguntaram se alguma parte do meu corpo doía, mas eu não tenho sensibilidade dos mamilos para baixo. O que eu poderia dizer sobre dor a ele?”, afirma. Olhares e comentários entre pessoas que estão próximas, geralmente, considerando-o como um coitado, alguém a se ter pena ou então como um herói, são outros comportamentos habituais que incomodam.
“Precisamos ser reconhecidos pela capacidade que temos. As pessoas com deficiência só estão ocupando postos de trabalho, em muitos lugares, por causa da lei que obriga as empresas a terem cotas. Mas precisamos lutar para que esse acesso ocorra porque somos capazes e não simplesmente para que haja o cumprimento de uma lei”, explica a presidente do Conselho dos Direitos da Pessoa com Deficiência de Campinas, Roseli Bianco Piantoni, que tem distrofia muscular progressiva, doença congênita que se manifestou aos 26 anos e, aos poucos, foi lhe tirando os movimentos das pernas.
Aos 59 anos e há uma década na cadeira de rodas, Roseli sabe também que ainda falta muito para Campinas vencer todas as barreiras arquitetônicas que a impedem de transitar livremente pelas ruas com sua cadeira motorizada. “Há calçadas que estão tão irregulares que, se passar com a cadeira de rodas, a pessoa corre o risco de cair no meio da rua”, diz. A Prefeitura, aos poucos, torna a cidade mais acessível, principalmente na área central e nas recém-criadas estações de transferência.
“Mas a principal barreira que nós precisamos vencer diz respeito ao que está na mente das pessoas”, afirma Fabiana Bonilha, de 31 anos, que é cega desde o nascimento. A psicóloga, que trabalha no laboratório de acessibilidade da Unicamp, onde também faz doutorado em música, acredita que a informação, desde a infância, é um dos passos importantes para diminuir o preconceito. “Abertamente, todo mundo fala que não tem preconceito, mas no dia a dia, sem perceber, as pessoas cometem atos que demonstram a falta de jeito”, diz.
Como exemplo, Fabiana lembra de uma cena comum, que também foi narrada por Roseli e por Garcia. Quando eles estão acompanhados, é hábito que alguém que queira qualquer informação se dirija ao acompanhante. “Já aconteceu comigo em lojas. Fui com minha mãe comprar uma roupa e em vez de perguntarem para mim se eu gostava de um certo modelo, perguntaram a ela, como se eu fosse incapaz de demonstrar os meus desejos”, afirma.
História
Esse comportamento tem uma explicação histórica. Durante séculos, as pessoas com deficiência eram consideradas totalmente incapazes e tinham de se contentar em ficar presas em casa, sem nenhum contato com o mundo do trabalho e com a escola. “Já fui com a minha mulher jantar em restaurantes e perguntaram a ela o que eu gostaria de beber. Na hora, eu já respondi, para que o garçom percebesse que eu poderia falar e que ele devia se dirigir a mim também”, lembra Garcia, casado há 11 anos com a dentista Regina, que não tem nenhuma deficiência.
Roseli acha que o melhor, em situações como essas, é mostrar que se tem voz e opinião próprias. Certa vez, durante uma radiografia, a enfermeira perguntou à acompanhante se ela tinha condições de ficar em pé. “Respondi de prontidão que, em pé, eu não poderia ficar, mas que eu falava e muito”, conta.
Secretária reconhece o preconceito
A secretária de 30 anos esconde o nome. Quer ser chamada neste texto de Patrícia porque reconhece que tem vergonha do que lhe aconteceu. Há três anos, depois de um período de seis meses desempregada, conseguiu um emprego numa clínica de fisioterapia, especializada no tratamento de pessoas com deficiência. “Eu estava acostumada a trabalhar com advogados, com outro tipo de clientes. No primeiro dia do novo emprego, já fiquei supernervosa, sem saber o que fazer. Eu ficava impressionada com as deficiências e acabava sem saber como tratar as pessoas”, conta. Ela lembra que uma das principais dificuldades era justamente o tratamento que deveria conceder. “A princípio, eu achei que deveria tratar todas as pessoas como crianças. Eu até mudava o tom de voz, enchia de cuidados, mas eles reclamavam”, lembra. Patrícia sabe, hoje, que suas atitudes eram preconceituosas. “Eu associava aquelas pessoas a totalmente incapazes.” Mesmo consciente disso, ela não conseguiu ficar muito tempo no trabalho: pediu demissão cerca de quatro meses depois, com dificuldades para lidar com as situações. “Tudo aquilo me impressionava muito, provavelmente porque fui criada numa família em que a deficiência era encarada com muito preconceito. Ainda não me livrei dessa influência”, diz. (FO/AAN)
SAIBA MAIS
O que fazer quando encontrar uma pessoa com deficiência:
Não faça de conta que a deficiência não existe: se você se relacionar com uma pessoa com deficiência como se ela não tivesse nada de diferente, você vai ignorar uma característica muito importante dela. Em várias situações, ela vai necessitar de condições específicas.
Não subestime as possibilidades, nem superestime as dificuldades: por causa da deficiência, uma pessoa pode ter dificuldade para realizar algumas atividades e, por outro lado, poderá ter extrema habilidade para fazer outras. Exatamente como todo mundo.
Quando quiser alguma informação de uma pessoa com deficiência, dirija-se diretamente a ela e não a seus acompanhantes.
Sempre que quiser ajudar, ofereça ajuda. Mas sempre espere sua oferta ser aceita antes de ajudar. Nem sempre as pessoas com deficiência precisam de auxílio.
Se ocorrer alguma situação embaraçosa, uma boa dose de delicadeza, sinceridade e bom humor nunca falha. Você não deve ter receio de fazer alguma coisa errada. Aja com naturalidade.
Fonte: Cartilha Convivendo com a Diferença, do Centro de Vida Independente (CVI-Campinas)
PONTO DE VISTA
Kátia Fonseca
Editora-assistente de Opinião do Correio e presidente da ONG Centro de Vida Independente de Campinas (CVI-Campinas)
Não apenas tolerar, mas desejar
Depois de quase três décadas do pontapé inicial para a efetiva inclusão social das pessoas com deficiência — dado pela ONU, em 1981, ao instituir o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência —, ainda trombamos, diariamente, com situações constrangedoras, atitudes inadequadas e, às vezes, até com atos de violência contra aqueles que fogem ao dito padrão de normalidade. Resumindo: o preconceito ainda vigora firme e forte! Um pouco mais oculto, escondido, pois, hoje em dia “pega mal” ser preconceituoso… E, por isso mesmo, mais difícil de ser combatido. Contra escadas, há as rampas. E contra o preconceito? Informação! É disso que a sociedade precisa: informação. É preciso falar, escrever, ler, conversar e, sobretudo, conviver com as pessoas com deficiência. Não há crime em se ter preconceito. O crime é negar isso e se recusar a eliminá-lo. Neste 3 de dezembro, quando se celebra mais um Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, deixo uma sugestão aos pais e a todos que têm sob sua responsabilidade a formação de nossas crianças: exijam que a escola, desde os primeiros anos (quanto mais cedo, melhor), tenham alunos com deficiência. Com certeza, essas crianças — com e sem deficiência — serão adultos melhores que nós e poderão construir uma sociedade muito mais plural, na qual a diversidade será bem vinda e na qual o “diferente” não será apenas tolerado, mas desejado.
ARTIGO
Acessibilidade e capacitação: construindo a Inclusão, por Vinícius Gaspar Garcia
Em 1992, a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou, em assembleia geral, o dia 3 de dezembro como o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. A partir de então, o movimento social das pessoas com deficiência, no Brasil e em vários países, utiliza essa data para reafirmar os direitos humanos deste grupo populacional, muitas vezes discriminado e excluído socialmente num passado não muito distante. Outro momento significativo na luta pela inclusão social das pessoas com deficiência é o ano de 1981, também promulgado pela ONU como o Ano Internacional das Pessoas com Deficiência. No âmbito nacional, desde o início dos anos 80, celebra-se o dia 21 de setembro como o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, formalmente instituído pela Lei 11.133/05.
A importância destas datas “comemorativas” está ligada ao processo em curso de inclusão social das pessoas com deficiência. Ao longo do século passado, o avanço da medicina e o desenvolvimento de tecnologias de apoio permitiram que um contingente maior de pessoas com deficiência permanecesse vivo. Grosso modo, até a década de 1970, a maior parte das pessoas com deficiência era vista como “inválida” ou “incapaz”. Felizmente, nos últimos 30 ou 40 anos, percebeu-se, gradativamente, que as pessoas com deficiência não devem ser simplesmente objeto de caridade, mas, sim, são cidadãos com direitos e deveres plenos. A visão unicamente médica e clínica para trabalhar com essas pessoas foi substituída – e ainda está sendo – pelo paradigma da inclusão social. Na esteira deste processo é que aproveitamos o Dia Internacional para fazer alguns comentários sobre as políticas públicas e o movimento social das pessoas com deficiência em Campinas.
Desde 1999, existe na cidade o Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CMPD), que vem tentando se firmar como fórum legítimo das discussões sobre políticas públicas que envolvem este segmento populacional. Em 1997, foi fundado o Centro de Vida Independente de Campinas (CVI-Campinas), uma ONG cuja característica fundamental é o fato de ser gerida pelas próprias pessoas com deficiência. No dia 29/11, estas duas entidades, em parceria com a consultoria Pró-Inclusão e com o apoio do SESC-Campinas, realizaram um debate sobre o tema “saúde sexual e reprodutiva das pessoas com deficiência”, com a presença do coordenador do programa de saúde da mulher da Secretaria Municipal de Saúde, o médico Fernando Brandão.
Consideramos que um dos resultados práticos deste encontro foi o consenso acerca do modo ou da forma correta para se pensar e executar as políticas públicas no município, no sentido de que elas sejam, de fato, inclusivas. Tal consenso pode ser sintetizado nas palavras chaves: acessibilidade e capacitação. Sem a primeira, as pessoas com deficiência não conseguem nem chegar aos postos de saúde (seja para tratar da questão da saúde sexual e reprodutiva ou de qualquer outra). E sem a capacitação dos gestores públicos, mesmo que cheguem nos serviços de saúde, terão um atendimento inapropriado e insuficiente. Esse raciocínio vale também para outras áreas, como Educação ou Trabalho, por exemplo.
Portanto, o êxito de uma política pública de inclusão social das pessoas com deficiência em Campinas passa, no nosso entendimento, pelo tratamento adequado das questões de acessibilidade e capacitação. Em relação à primeira, o Decreto Federal 5.296/04, conhecido como o Decreto da Acessibilidade, já definiu prazos e metas que precisam ser cumpridas pelos espaços públicos e privados (de uso coletivo). Quanto à capacitação dos gestores, além de um trabalho com os funcionários diretamente envolvidos no atendimento da população, há que se pensar numa melhor formação de médicos, professores e outros profissionais, pois estes muitas vezes desconhecem por completo o universo das pessoas com deficiência. Neste Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, nosso objetivo é avançar nos vetores acessibilidade e capacitação para construir uma sociedade inclusiva!
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Vinícius Gaspar Garcia é economista e diretor do Centro de Vida Independente de Campinas