Afirmar o direto à alimentação é uma obrigação do Estado brasileiro

Summer, de Giuseppe Arcimboldo

Por Christiane Araújo Costa (1)

O direito humano à alimentação saudável e adequada (DHAAS) passou a ser um dever de Estado e não apenas de governos. Deve, portanto, ser concretizado em programas e políticas em todas as esferas, federal estadual e municipal.

Dentre os marcos legais associados à questão alimentar, estabelecidos nos últimos anos, destaca-se a instituição do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (SISAN), garantindo a regulamentação das ações de SAN como política pública integral, com Lei Orgânica e orçamento próprio, uma das deliberações da II Conferência Nacional de SAN, que teve como lema “A construção da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional”(II CNSAN, 2004). Em 15 de Setembro de 2006, o presidente Lula sancionou a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN-(Lei n°11.346 de 2006) que afirma as obrigações do Estado de respeitar, proteger, promover e prover a alimentação adequada.

Conforme expresso no documento “ Construção do Sistema e da Política de Segurança Alimentar e Nutricional: a experiência brasileira”, do CONSEA, o SISAN tem por objetivos formular e implementar políticas e planos de segurança alimentar e nutricional, estimular a integração dos esforços entre os diversos setores de governo e a sociedade civil em sua heterogeneidade, bem como promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliação da Segurança Alimentar e Nutricional do país.

Em síntese, o SISAN consiste na implantação de um sistema público de alimentação, além de elaborar propostas e sugerir medidas regulatórias e de controle sobre os negócios alimentares do setor privado como, por exemplo, a regulamentação da publicidade de alimentos.

Em seguida, a campanha nacional pela aprovação da inclusão da alimentação como direito constitucional, liderada pelo CONSEA, em 2009, foi um outro marco importante.

Com um abaixo-assinado reunindo mais de 50 mil assinaturas, a Emenda Constitucional 64 foi aprovada em 5 de fevereiro de 2010, com 376 votos favoráveis, nenhum contrário e duas abstenções, incluindo a alimentação entre os direitos constitucionais fixados no artigo 6º da Constituição Federal.

Por fim, no último dia 25 de agosto de 2010 o presidente assinou o Decreto 7272 que institui a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e regulamenta a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), consagrando uma conquista do movimento social pelo direito à alimentação.

De acordo com o levantamento realizado pela Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN) do MDS, dentre os 23 Estados, 13 possuem Lei Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (AM, BA, DF, MA, MG, PB, PR, PE, PI, RJ, RO, RS, SE) e 10 estão em fase de elaboração e pactuação da minuta do Projeto de Lei (AC, AL, CE, GO, MS, MT, PA, RN, RR e TO).

Como um sistema ainda em fase de regulamentação, muitos são os desafios para a sua implantação. Reunidos em Brasília, nos dias 1 e 2 de setembro, os presidentes de conselhos estaduais, conselheiros nacionais e representantes do governo, organizaram um plano de trabalho reunindo as principais tarefas, divididas nos seguintes eixos. Importa salientar que esse documento ainda será apreciado e ratificado pelos Estados nos próximos dias:

1. Construção dos marcos legais e integrantes do SISAN
• Instituir ou conformar Leis Orgânicas Estaduais à luz da LOSAN Nacional e do decreto da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional;
• Regulamentar os principais integrantes do SISAN – Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEAs) e Câmaras Intersetoriais/Intersecretarias (CAISAN) em âmbito estadual;
• Assegurar o pleno funcionamento administrativo e político das CAISANs e dos CONSEAs estaduais;
• Estimular a instituição de LOSANs, CONSEAs e CAISANs nos municípios.

2. Intersetorialidade e Relações Interfederativas
• Promover a adesão formal dos Estados ao SISAN;
• Dar início à elaboração dos Planos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional (principal instrumento de pactuação intersetorial);
• Adotar estratégias de convencimento político dos que detêm o poder de decisão para a devida implantação do SISAN, sob a perspectiva intersetorial;
• Promover a integração dos programas e ações de Segurança Alimentar e Nutricional dos diversos setores na esfera estadual;
• Assegurar a plena compreensão sobre o SISAN e o comprometimento dos diretamente envolvidos em sua implantação;
• Promover o diálogo e a articulação entre os entes federados para a criação dos Pactos pelo Direito Humano à Alimentação.

3. Participação Social, Monitoramento e Avaliação
• Garantir a participação social na formulação dos marcos regulatórios, principalmente os propostos pelos convênios – SISAN estaduais;
• Desencadear processos estaduais preparatórios para a IV Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional;
• Assegurar condições para a realização do controle social dos programas e ações de Segurança Alimentar e Nutricional;
• Definir e pactuar indicadores de Segurança Alimentar e Nutricional em âmbito Estadual.

4. Operacionalização e Gestão dos Convênios (para a implantação do sistema)
• Vencer os procedimentos burocráticos administrativos e financeiros nos Estados para dar início à execução dos convênios – SISAN;
• Propiciar articulação entre as entidades convenientes (Secretarias ou Governos Estaduais) e intervenientes (CONSEA) para facilitar a execução dos convênios;
• Contratação de profissionais capacitados na temática da SAN e SISAN para conduzir as metas estabelecidas nos convênios;
• Superar as constantes mudanças de gestores responsáveis pelos convênios;
• Definir estratégias para assegurar a continuidade de execução das metas estabelecidas nos convênios na transição de governo.

Devemos entender que esse direito é uma obrigação do conjunto da sociedade e não só do Estado. Há, portanto, a necessidade de que os diversos setores sociais se mobilizem por meio de campanhas e pela construção de propostas para efetivá-lo na prática.

Nesse sentido, cabe destaque às repercussões do padrão alimentar divulgadas recentemente pela Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontando que 49% dos brasileiros estão acima do peso e que 14,8% desses são obesos.

O aumento espantoso da obesidade em todas as faixas de renda demanda não só a implantação de medidas educativas defendidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como também a implementação de políticas de abastecimento que favoreçam o acesso a alimentos saudáveis, a adoção de medidas regulatórias que limitem o consumo de alimentos superprocessados e programas de incentivo à prática regular de atividades físicas.

Algumas questões estão colocadas na agenda do país no processo de efetivação desse direito:

– Ações de divulgação, para que esse direito seja amplamente conhecido.
– Elaboração de mecanismos de exigibilidade desse direito.
– Exigência de que esse direito seja apropriado pelos programas relacionados à alimentação, a exemplo do Programa Bolsa Família, do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Nesse sentido, dentre as atividades realizadas pelo Instituto Pólis, destaca-se a participação no Curso de Formação à Distância para gestores de equipamentos públicos de Segurança Alimentar e Nutricional promovido pela Rede Integrada de Equipamentos Públicos de SAN (REDESAN) sediada na FAURGS – Fundação de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

No âmbito da mobilização nacional, o cronograma dos trabalhos do CONSEA, prevê a realização da IV Conferência Nacional de SAN em 16 de outubro de 2011, dia mundial da alimentação, sendo precedida de conferências estaduais e municipais. No Estado de São Paulo a conferência municipal acontecerá no início de dezembro e nesses dias estão sendo realizadas as conferências regionais que levarão as propostas para a municipal.

Por ocasião da assinatura do decreto, na última plenária do CONSEA realizada em 25 de agosto, o presidente do CONSEA, Renato Maluf, fez agradecimentos ao presidente Lula e aos integrantes do conselho, levantou os avanços e apontou os desafios para o Brasil no campo da segurança alimentar e nutricional.

“O movimento social pela soberania e segurança alimentar e nutricional e pelo direito à alimentação adequada soube ocupar com seriedade e competência o espaço que nos foi oferecido, apresentando proposições fundamentadas, apontando problemas, fazendo criticas – quando cabidas – e, sobretudo, atuando como um importante instrumento de interlocução do governo com a sociedade”, afirmou Renato S. Maluf.

“Os integrantes do Consea se sentem orgulhosos por terem sido parte ativa desse processo desde seu início, em 2003. Somos reconhecidos e gratos por Vossa Excelência ter criado esse importante espaço de participação social, localizando-o junto ao seu gabinete e dando ao tema a importância e visibilidade que merece”, afirmou.

Em reconhecimento ao trabalho desempenhado pelos conselheiros e militantes, o presidente do CONSEA declarou:

“Peço licença para prestar uma homenagem aos conselheiros e também àqueles que se mobilizam em todos os estados e centenas de municípios, realizando trabalho voluntário com muita dedicação”.

No que se refere à assinatura do decreto Maluf salientou:

“O decreto que o senhor assinou hoje nos dá a perspectiva de ter, em até doze meses, um plano nacional com metas claras e recursos definidos, consagrando o compromisso de todos os setores e nos credenciando a participar da formulação do Plano Plurianual 2012-2015. Nós vamos buscar a adesão de ministérios, governos estaduais e municipais. Desse modo, chegaremos à IV Conferência Nacional em condições de firmar um pacto de gestão federativo pela promoção do direito humano à alimentação”.

Ele afirmou que os indicadores de consumo revelam o crescimento de hábitos alimentares danosos à saúde no Brasil, com o aumento do sobrepeso e da obesidade. Defendeu as iniciativas da Anvisa de regulamentar a publicidade de alimentos e criticou o fato de o país ser o maior consumidor de agrotóxicos do mundo.

“Queremos, presidente Lula, continuar desempenhando esse papel no futuro, que nossos temas continuem prioritários na agenda, avançando na direção de promover o direito a uma alimentação adequada e saudável, e que o Consea continue a ter a visibilidade e capacidade de mobilização do governo e da sociedade que adquiriu no governo de Vossa Excelência”.

Em resposta, o presidente valorizou a atuação dos conselheiros, conforme publicado no boletim do CONSEA:

“Este derradeiro encontro não é motivo de melancolia”, disse o presidente.
Alegre, à vontade e irradiando bom humor, ele falou de um jeito descontraído aos conselheiros, conselheiras, observadores e convidados: “Esta é a última reunião que eu participo, mas fiquem espertos porque, esteja onde estiver, eu estarei de olho em vocês”.

“O Consea é uma instância fundamental que nós recriamos em janeiro de 2003, depois de ter sido abandonada nos anos 90. Este encontro reforça a sensação gratificante de que a palavra com que iniciei meu discurso de posse, em janeiro de 2003, não foi pronunciada em vão. Estou falando da palavra mudança”.

“A verdade, Maluf é que conseguimos criar uma nova forma de relação do Estado com a sociedade e nesse sentido a atuação do Consea foi exemplar. Graças à sua representatividade e à imensa dedicação de seus integrantes, dotados de grande capacidade técnica e visão política, o Consea foi fundamental para que a segurança alimentar se tornasse uma política do Estado brasileiro”.

“O próprio decreto que assinamos hoje ilustra mais do que a minha fala […] A ideia de adicionar à legislação certos parâmetros que garantam a segurança e a soberania alimentar da população surgiu justamente na 2ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar, realizada em março de 2004, na nossa inesquecível cidade de Olinda, no meu querido estado de Pernambuco” .

“Quero, portanto, desde já, agradecer a todos os companheiros do Consea e aos milhares de militantes, gestores e cidadãos comuns, que tanto contribuíram para concretizar a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Seu empenho e sua dedicação são, certamente, componentes fundamentais das mudanças que estamos vivendo”.

Síntese dos principais marcos regulatórios nacionais do período:

1. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006 – Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional-SISAN;
2. Decreto nº 6.272, de 23 de novembro de 2007, que dispõe sobre as competências, a composição e o funcionamento do CONSEA;
3. Decreto nº 6.273, de 23 de novembro de 2007, que cria, no âmbito do SISAN, a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional – CAISAN.
4. Decreto nº 7.272, de 25 de agosto de 2010, que regulamenta a LOSAN, institui a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) e estabelece os parâmetros para a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

(1) Christiane Araújo Costa é socióloga, mestre em saúde pública pela FSP/USP, coordenadora da área de segurança alimentar e nutricional do Instituto Pólis e membro da coordenação do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e do CONSEA Nacional.
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Fonte: Instituto Pólis

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