Cineasta e fotojornalista compartilhou memórias pelo projeto Prosa dos Saberes, na última quinta-feira (15).
Um menino negro corta o dedo durante uma pescaria. O amigo, branco, fica surpreso ao ver o sangue fluir. “Seu sangue é vermelho?”, indaga o personagem. A cena, do premiado curta-metragem “O Moleque” (2005), é uma das muitas facetas do diretor Ari Candido. Apesar de ser uma adaptação de obra homônima de Lima Barreto, o trecho foi uma licença poética de Candido, quase que uma lembrança real dos tempos de juventude dividida com conterrâneos como o escritor Domingos Pellegrini.
O cineasta, que na última quinta-feira participou de um bate-papo na Biblioteca Padre Euclides, em Ribeirão Preto, conta que algo parecido lhe ocorreu na época de juventude em sua terra natal, Londrina (PR). “Feri-me enquanto jogava basquete, em um dos pregos da cesta. Nesse momento, meu amigo me disse a mesma coisa. É como se eu devolvesse esse trauma através do cinema”, diz Ari, 60 anos, que, apesar da origem humilde, “na parte pra baixo da estrada de ferro de Londrina”, ganhou notoriedade internacional e acumula “estórias” que não cabem em uma única entrevista.
Comunista na Ditadura Militar, ainda quando estudava na Universidade de Brasília, Ari Candido foi exilado na capital sueca Estocolmo, onde se lembra de ter mantido contato com integrantes do movimento “Panteras Negras” e de ter sido vizinho do cineasta Ingmar Bergmann. “Ele não falava muito, só ficava limpando o carro com aquela boina dele”, diz. Entre 1970 e 1975, o paranaense permaneceu no país em que, além da continuidade nos estudos em cinema, e do bê-á-bá sueco, trabalhou em creches e numa fábrica de pães. “Eu pegava metrô com Juca Ferreira (ex-ministro)”.
Depois foi a Paris concluir seus estudos na Sorbonne e produzir seu primeiro filme: “Martinho da Vila” (1977). A trajetória mundo afora, desde então, só seria interrompida em 1979, ano da publicação da Lei da Anistia, que permitiu seu retorno à Pátria Amada. Nesse ínterim, além da produção cinematográfica pulsante, se entregou ao fotojornalismo e atuou como freelancer para as agências internacionais Gamma, em Paris, e para a britânica Camera Press, em Londres.
Tal trabalho o permitiu visitar, entre 1978 e 1979, a desconhecida Eritreia, país africano limítrofe com Sudão e Etiópia que somente conseguiu sua independência política em maio de 1993. Os abalos da guerra civil foram sentidos na pele por Ari, que se alocou a 50 quilômetros da capital do país, na companhia de guerrilheiros. Com aviões jogando bomba em um clima de instaurado terror, a vida – na terra considerada como um dos “eixos do mal” pelo então presidente dos EUA, George Bush -, estava em risco constante. “Os guerrilheiros eram sempre bombardeados. Nós dormíamos de dia”.
Em meio a tanta destruição, a identificação recíproca com o povo, graças à negritude de Ari Candido, foi quase que imediata. “Meio ano morando lá e eu já era confundido com eles. A Eritreia é o país que mais me marcou, marcou profundamente”, relata. O símbolo dessa identificação pessoal ficou eternizado no documentário “Por que a Eritreia?” (1979), premiado na Mostra de Cinema Internacional do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1984.
Passadas décadas desde que deixou o front, o paranaense acredita que a tecnologia a serviço da informação, com transmissões ao vivo dos combates, apenas deixou as pessoas mais ávidas por desgraça. “O meio ficou mais digital, mais escandaloso, virou uma curtição, o mundo está mais voyeur. Parece que tem uma atração fatal pela desgraça”, diz, considerando sua parcela de culpa na história.
O negro no cinema
Ari Candido não aprova os estereótipos acerca do negro em filmes nacionais que o colocam como mera e defasada figura de representação de uma determinada esfera social, como na pele de criminosos. Dos marcos do cinema que contradizem essas incursões, ressalta o filme “O Assalto ao Trem Pagador” (1962), de Roberto Farias, em que o líder do bando de assaltantes, Jece Valadão, não é negro.
Arnaldo Antunes, em seu Compasso de Espera, também desdiz algumas convenções, colocando Gilberto Gil na pele de um empresário de tampinhas de garrafas. Outra tentativa de combater esse estereótipo veio com Jardim Beleléu, rodado por Ari em 2009 na Cidade Tiradentes. Adaptação livre do conto “Não Era Uma Vez”, de Luis Silva (Cuti), o filme foi gravado em homenagem ao músico Itamar Assumpção.
Eliminar os clichês do cinema a respeito dos negros não significa, no entanto, para Ari defender cegamente uma etnia a despeito de outra. Em suas palestras e filmes, ele defende o fim dos radicalismos e do preconceito vindos de todos os lados. “O Brasil está mais misturado, mas não basta só isso. Tem que misturar as culturas. O DNA vai ser moldado pelas culturas.”
Fonte: Portal Geledés