Por Paulo Hebmüller
na revista Problemas Brasileiros
Entre uma música e outra, o maestro Edilson Ventureli vira-se para a plateia e diz, sem esconder a satisfação: “Já tocamos em vários lugares em Heliópolis, mas este é o primeiro grande concerto aberto que executamos aqui. Estamos fazendo tudo isso com muito carinho e espero que vocês gostem”. O “vocês” era o público de cerca de 2 mil pessoas que ocupava o Polo Cultural da comunidade, na periferia da zona sul de São Paulo – e, pelas reações entusiasmadas ao longo de todo o concerto, estava claro que gostavam, e muito, do que estavam vendo e ouvindo. Para boa parte do auditório, aquela não era apenas a rara oportunidade de assistir a uma orquestra tocando ao vivo, mas também a chance de aplaudir os próprios filhos, netos, sobrinhos e amigos, todos componentes da Orquestra Sinfônica Heliópolis, grupo musical formado por 80 integrantes.
Em outra pequena pausa, o regente pediu a uma senhora da primeira fila que se levantasse para ser aplaudida. Era um agradecimento pelo trabalho voluntário de Maria de Lourdes Vieira de Sá Correia – a dona Lurdinha. Há 16 anos, quando soava apenas como um delírio realizar um concerto de música erudita protagonizado por jovens de uma comunidade que concentra carências de infraestrutura e emprego e falta de oportunidades – coisas típicas da periferia das grandes cidades brasileiras –, dona Lurdinha foi uma das primeiras a comprar a ideia do visionário maestro Silvio Baccarelli, o mentor de tudo aquilo. Entre o dia em que o maestro telefonou para a escola onde ela trabalhava, com o inusitado pedido de seleção de 35 crianças que deveriam ser formadas em música, e a tarde do sábado, 26 de maio deste ano, quando a Sinfônica Heliópolis realizou seu primeiro grande concerto na própria comunidade, milhares de crianças e jovens passaram pelo Instituto Baccarelli – estrutura criada em torno daquele sonho –, brasileiros que fizeram da música o passaporte para um mundo que até então parecia inatingível. Uma história improvável, mas cujos frutos concretos estão à vista de quem quiser enxergar.
Frutos que estavam no palco naquela tarde, como Jéssica Maria Vicente, que aos 15 anos chegou a tocar peças de Beethoven na cidade natal do compositor, Bonn, na Alemanha. Era a turnê europeia da Sinfônica Heliópolis, em 2010, que passou ainda pela Holanda e pela Inglaterra. “Foi a melhor experiência da minha vida”, diz a adolescente. “Fomos aplaudidos de pé e isso não é comum por lá.” Jéssica ascendeu precocemente ao grupo top do Instituto Baccarelli, mérito de seu talento e esforço, mas a história da garota se parece com a de muitos outros que também bateram às portas do instituto.
Moradora da comunidade, a menina foi inscrita aos 11 anos de idade pela mãe no coral infantil. Jéssica queria tocar violino, mas não havia vaga para aquele instrumento. Conheceu então a trompa, fez um teste, gostou e se apaixonou. Iniciou as aulas instrumentais, mas seguiu cantando no coral. Os próprios professores, quando percebem que o aluno tem capacidade, convidam-no a “subir” aos grupos instrumentais, e assim a garota passou a integrar as orquestras infanto-juvenil e juvenil do instituto. Jéssica cresceu musicalmente com elas e logo desembarcou na sinfônica.
Para participar da Orquestra Sinfônica Heliópolis, que reúne os alunos avançados do Instituto Baccarelli, não basta querer. É preciso fazer uma prova rigorosa numa banca com os maestros e seguir estudando muito, porque há testes semestrais para avaliar a evolução e o aprendizado. Jéssica passa praticamente o dia todo no instituto, de segunda a sexta. As manhãs geralmente são dedicadas aos ensaios da sinfônica, e as tardes dividem-se entre estudo e prática, individual ou em grupo, em salas de aula ainda com cheiro de novas. À noite ela vai para o colégio, onde cursa o ensino médio. O instituto não “cobra” formalmente o bom rendimento escolar, mas fica de olho e eventualmente chama a família para conversar caso perceba que as notas no boletim andam desafinando, mesmo que as dos ensaios estejam dentro do ritmo.
“Eu não sabia que as coisas iam acontecer tão rápido assim comigo. O instituto abriu muitas portas”, diz Jéssica. E cita a oportunidade de passar um mês fazendo aulas, junto com uma colega, na Universidade de Bloomington, em Indiana, nos Estados Unidos. Elas viajarão em janeiro, bancando as próprias despesas com o dinheiro que estão economizando da bolsa paga pelo Baccarelli. É mais um passo para a realização de um dos sonhos das meninas: tocar em orquestras no exterior e, quem sabe, ver seus nomes nos créditos como instrumentistas das trilhas sonoras de filmes de Hollywood.
“O Baccarelli está descortinando outros horizontes para as pessoas da comunidade. Uma escola de música de qualidade, nos moldes da que temos aqui, não existe em nenhum outro lugar, e isso demonstra que há muitas maneiras de olhar para a vida”, diz a garota. “Mesmo que a pessoa não siga com a música e vá buscar outra coisa lá fora, aqui ela aprende a ter gana e vontade, força que vai ajudá-la a crescer em qualquer área.”
Tocando pelo mundo
Assim como Jéssica, outros jovens que integram o projeto musical de Heliópolis também têm ido ao exterior para estudar, por exemplo na Escola de Música Buchmann-Mehta, da Universidade de Tel Aviv, em Israel. Sim, o nome vem do famoso maestro Zubin Mehta, seu presidente honorário e regente titular da Filarmônica de Israel, que tem parceria com a universidade. Em 2005, numa turnê com a filarmônica, o regente assistiu em São Paulo a um ensaio em que os jovens de Heliópolis tocaram a 5ª Sinfonia de Beethoven. Ainda nos primeiros acordes, um entusiasmado Mehta tirou o paletó e pediu para reger, e fez isso com o mesmo rigor com que conduz os músicos da própria orquestra. “Quando ele deu sua participação por encerrada, parecia que tinha acordado de um sonho”, ilustrou o maestro Silvio Baccarelli em depoimento à Revista E, do Sesc, de agosto de 2008. Desde então, Zubin Mehta tem mantido contato com a orquestra de Heliópolis, tendo inclusive se tornado seu patrono. Em agosto, ele empreendeu uma nova visita ao Instituto Baccarelli, causando uma espécie de frenesi entre os músicos.
Graças a esse feliz entrosamento, eventualmente, alunos brasileiros são recebidos em Israel. Está lá, no momento, o jovem Emerson Nazário, morador do bairro, que chegou ao Instituto Baccarelli em 2000, com apenas 12 anos. Ele começou sua carreira musical como instrumentista no “banco de reservas”. Já havia assistido a algumas aulas quando, finalmente, chegaram dois novos violoncelos ao instituto e um deles ficou com o jovem. A partir de então, Nazário passou pelas orquestras iniciantes até ser “promovido” à sinfônica. Em 2008, já cursando bacharelado em música pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), teve a oportunidade de tocar para Hillel Zori, violoncelista israelense. Zori lhe ofereceu uma bolsa para estudar em Tel Aviv, onde hoje é seu professor. Nazário chegou a Israel em outubro daquele ano e pretende permanecer no país até 2014, quando termina o mestrado.
“Minha rotina aqui é música quase o tempo inteiro”, relata o cellista, hoje com 24 anos. Além de estudar, os alunos da orquestra da universidade cumprem uma agenda de apresentações em que, uma vez por ano, o próprio Zubin Mehta executa a regência de um concerto de gala no Hall da Filarmônica. Os jovens também fazem excursões por outros países. Lembrando os tempos do instituto, diz Nazário: “Ele foi e continua sendo muito importante para a comunidade, oferecendo educação para as crianças e dando uma perspectiva melhor para o futuro delas”.
Em Tel Aviv também se encontra um outro brasileiro, José Batista Junior, de 22 anos, que chegou em 2010 e deve ficar na capital israelense até 2014 para concluir o bacharelado em música. Junior só pôde alçar voo tão alto porque os jovens músicos acolhidos pelo Instituto Baccarelli não precisam morar em Heliópolis, ingressando diretamente na sinfônica por meio dos testes abertos para instrumentistas de todo o Brasil e também de outros países. Junior começou a estudar viola aos 14 anos, integrando o grupo musical da Igreja Assembleia de Deus, na cidade de Osasco. Em 2007, amigos que tocavam na sinfônica o avisaram sobre os testes; ele se preparou e passou. Dois anos depois, Junior tocou para a chefe do naipe de violas da Filarmônica de Israel, Miriam Hartman, e foi aceito por ela como seu aluno, desembarcando em Tel Aviv no ano seguinte. Sua rotina inclui pelo menos seis horas diárias de estudo com o instrumento.
Para o violista de Osasco, o Instituto Baccarelli é um lugar “maravilhoso” porque oferece às pessoas a chance de “dar um rumo diferente para suas histórias”. “A porta que o instituto abriu, de podermos fazer música, aprender com grandes mestres e receber a bolsa mensalmente, mudou totalmente a minha vida e a de muitas pessoas”, diz Junior. O jovem pretende voltar ao Brasil para ensinar o que vem aprendendo lá fora.
“Cavaquinho esquisito”
Ex-seminarista, especializado em música sacra, o maestro Silvio Baccarelli deixou a vida sacerdotal na década de 1960 e passou a dirigir grupos corais e instrumentais. Sua orquestra se tornou uma das mais bem-sucedidas do país, tocando em todo tipo de evento – inclusive casamentos de celebridades, como o do piloto de Fórmula 1 Felipe Massa, em 2007. O projeto de levar música a uma região carente, que começou a sair do papel em 1996, vinha sendo acalentado havia anos pelo regente. As imagens de um incêndio que destruiu construções precárias em Heliópolis – uma comunidade que começou a se formar na periferia paulistana há cerca de 40 anos e onde hoje vivem, aproximadamente, 120 mil pessoas – foram fortes demais para ele. Comovido com o sofrimento daquela gente decidiu plantar ali a sua ideia.
Baccarelli procurou então uma entidade social na região e acabou fazendo contato com a Escola Municipal Gonzaguinha, na Estrada das Lágrimas. “Eu disse a ele que o projeto já nasceu abençoado porque o lugar aonde ele chegou tem como patrono um músico”, diz o regente Edilson Ventureli. Não foi fácil, entretanto, convencer a então diretora da escola a permitir que o grupo de 35 crianças se deslocasse até a sede da orquestra de Baccarelli, no distante bairro de Vila Mariana, para ter as primeiras aulas. É aí que entra o papel fundamental de lideranças locais como dona Lurdinha, migrante nordestina como tantos outros moradores de Heliópolis – ela veio do Piauí, 27 anos atrás, e há 21 é inspetora escolar do Gonzaguinha.
Dona Lurdinha e a coordenadora da escola se responsabilizaram por levar e trazer – de ônibus – as crianças que haviam sido previamente escolhidas, o que não era nada fácil. O maestro bancava de seu bolso o dinheiro da condução. Com o tempo e os primeiros patrocínios, a prefeitura cedeu um ônibus para o transporte, e foi necessário também alugar um outro salão para dar conta do número de crianças, que não parava de crescer.
Apenas seis meses haviam se passado desde a primeira vez em que os meninos tinham visto aqueles novos instrumentos – um deles chamou o violino de “cavaquinho esquisito” – quando Baccarelli resolveu marcar o primeiro concerto. O plano era mostrar à comunidade o que afinal as crianças iam fazer naquele lugar duas vezes por semana, porque nem os pais sabiam direito. A esposa do maestro, dona Nair, comprou roupas e sapatos para os músicos mirins, e os pais, professores e visitantes já estavam emocionados, muitos chorando, apenas de ver as crianças subirem ao palco, sérias e alinhadas. Foram poucas músicas, mas a emoção traduzida em lágrimas não se pôde medir.
Até a diretora da escola Gonzaguinha, que tinha ficado com um pé atrás desde o início por não acreditar que o maestro conseguisse trabalhar com crianças “rebeldes”, teve de se render. “O poder da música é transformador, a música amansa o coração das pessoas”, disse Baccarelli, ao lembrar o episódio no depoimento registrado na Revista E. Hoje, aos 81 anos, o maestro enfrenta problemas de saúde, não dá mais entrevistas e tem ido pouco a Heliópolis, ao contrário do que fazia no passado, desde que os meninos começaram a tocar as primeiras notas.
Riqueza cultural
No início da década passada, a turma de Baccarelli ganhou uma casa mais espaçosa, um galpão alugado de uma fábrica de sucos na própria comunidade, permitindo que chegasse a mais de 500 o número de crianças atendidas e que novos projetos pudessem ser deslanchados. “Ele sempre me dizia: ‘Dona Lurdinha, quero formar uma sinfônica em Heliópolis’, e eu respondia que ele tinha coisa demais na cabeça”, conta a moradora. “Então, o maestro me falava que com o poder de Deus e a ajuda do povo a gente ia chegar lá.”
“Por toda Heliópolis se ouve o som de música erudita. É rara a rua que não tenha um instrumento tocando. Isso enriqueceu muito a comunidade”, conta dona Lurdinha. Sua filha Valéria aprendeu a tocar viola no instituto e já dá aula para os mais novos. Como inspetora escolar, a moradora é testemunha de que os alunos que participam dos projetos de música são mais atentos e prestativos e têm um envolvimento diferente com a escola e a família. “Precisamos dessa riqueza cultural aqui. Não é porque as crianças moram na favela que não podem aprender música erudita”, diz.
O instituto não parou no galpão alugado. Para crescer ainda mais, uma sede própria foi planejada em terreno cedido pela prefeitura na mesma Estrada das Lágrimas. Em 2009, com recursos doados, principalmente, pela entidade Pró-Vida, foi inaugurado um prédio com três andares e 35 salas de aula e de estudo, além de salões para ensaio das orquestras, administração, acervo de instrumentos e outras instalações. Todas as salas de estudo e ensaio atendem a requisitos especiais para proporcionar melhor resultado acústico.
Um segundo prédio acaba de ser concluído, e vai permitir a instalação de uma biblioteca e de diversos setores e atividades. Ao lado já podem ser vistos os primeiros sinais da preparação do terreno do novo e ambicioso projeto, para o qual ainda faltam recursos: um teatro de 600 lugares, com capacidade para receber todo tipo de produção. Petrobras, Eletrobras, Volkswagen e Votorantim são os principais parceiros e mantenedores do instituto. O consagrado maestro Isaac Karabtchevsky é o diretor artístico e rege a Sinfônica Heliópolis em alguns concertos.
Atualmente, cerca de 1,3 mil crianças e jovens participam dos vários projetos do Instituto Baccarelli. Elas podem entrar nos corais infantis já aos 4 anos. São 16 grupos corais, onde as crianças ficam até os 14 anos, aprendendo teoria, técnica vocal e expressão cênica. Se quiserem, podem se candidatar então às vagas nos grupos instrumentais. O programa Orquestra do Amanhã reúne as orquestras infantil e infanto-juvenil, de onde os jovens podem chegar à almejada sinfônica. Já a partir da juvenil os alunos ganham bolsas. Quanto mais avançados, mais podem aumentar seu rendimento tocando em grupos menores, de câmara, ou dando aula aos iniciantes, como fazem vários músicos da sinfônica. Entre regentes, pianistas e professores, são cerca de 40 profissionais orientando os alunos. O instituto cede os instrumentos no início, mas a bolsa serve também como incentivo para que os estudantes adquiram os seus.
Ópera e rock
O objetivo do instituto não é fazer com que todos os jovens se transformem em músicos profissionais. “A real força do nosso trabalho está em mostrar que a pessoa é rica em dons e talentos, para que tenha autoconfiança para ser o que quiser na vida”, afirma o maestro Edilson Ventureli. Ele acredita que a música tem um poder de transformação enorme. “Você não faz música sem disciplina, sem solidariedade, sem trabalho em equipe. O que temos ensinado a estas crianças vai ajudá-las a ser adultos bem-sucedidos”, pontifica.
Nem todos, infelizmente, aproveitam a oportunidade de estudar música de alto nível – e de graça. Dona Lurdinha relata o caso de um jovem que um dia avisou que estava desistindo das aulas porque arranjara emprego de vendedor de sorvete. O maestro Baccarelli então perguntou quanto ele ganhava por semana e se comprometeu a lhe dar do próprio bolso o mesmo valor. Na quarta semana, todavia, o rapaz não apareceu mais.
Entre os que agarram a chance e se decidem pela música como caminho de vida, há egressos do instituto lecionando em diversas instituições e tocando em orquestras pelo Brasil e mundo afora, participando de shows de músicos brasileiros – Toquinho, Paula Lima, Luiz Melodia, por exemplo – e mesmo de estrangeiros. Crianças dos corais estiveram no megapalco de Roger Waters no Estádio do Morumbi, em abril deste ano, para cantar o clássico Another Brick in the Wall, ao lado do ex-baixista do Pink Floyd. A sinfônica, além de apresentações em teatros, como a Sala São Paulo, tem no currículo uma cerimônia com o papa Bento XVI, na Catedral da Sé, em 2007.
No palco do concerto histórico de maio, no coração da comunidade, vivendo mais um capítulo marcante de sua trajetória na música, um spalla (primeiro violino, um dos postos mais importantes de uma orquestra) da Sinfônica Heliópolis executa o repertório que começa com a abertura da ópera Fosca, de Carlos Gomes, passeia pela música popular brasileira e desembarca no rock com Vou Deixar, do Skank, e Satisfaction, dos Rolling Stones. Ele é Jefferson Oliveira da Silva, de 26 anos, que chegou à orquestra em 2008, depois de estudar na Escola de Música do Estado de São Paulo – Tom Jobim (Emesp).
Mesmo não sendo de Heliópolis, o jovem de Guarulhos sabe da importância do Instituto Baccarelli para a região. “As famílias trazem as crianças para cá, o saguão do prédio fica cheio de mães. São sementes plantadas e não temos como prever a dimensão disso”, considera Jefferson. Na plateia, o entusiasmo dos jovens alunos emociona. Vitória Silvério, de 14 anos, que ingressou no instituto em 2007 e agora estuda violino, vibra ao lado dos colegas Adriele Piedade, Bruna Ferreira, Ronald Rocha e Gabriel Silva, também alunos de violino. “Eu me inspiro neles e pretendo um dia tocar lá”, diz Vitória, apontando para o palco em que brilha a Orquestra Sinfônica que brotou do chão improvável de Heliópolis.
Fonte: Problemas brasileiros