Por Izabel Maior *
A cena a seguir aconteceu em uma loja de roupas femininas de um shopping da Barra da Tijuca:
Entram duas possíveis compradoras e começam a olhar as peças dispostas para consumo.
O passo seguinte costuma ser a aproximação de uma vendedora. Entretanto, nem sempre isso se dá de forma espontânea, e as compradoras em questão precisaram chamar alguém para atendê-las. Quando vem, antes de qualquer coisa, a vendedora vira-se para uma das mulheres e pergunta – “O que ela quer?”. Naturalmente, “ela” é a outra e acaba de perder sua autonomia frente à representante da loja. Cabem várias atitudes, que vão do posicionamento neutro do deixar pra lá e bater em retirada, do enfrentamento, ou ainda uma atitude didática. O momento vai ditar a reação da “ela”: “Olha só, eu falo, pode se dirigir a mim sem medo” ou “O que você está pensando? Não mordo, deixa explicar para você etc.”. Pode ser com um sorriso ou com tom de voz que denota o desagrado, com educação ou ainda exaltada.
Qualquer uma das abordagens não garante o bom atendimento ou a mudança de atitude da vendedora em situação futura. Uma coisa é certa: a compradora tem de estar devidamente preparada para não desistir da sua busca por uma roupa nova. Pode não ser ali. Uma nova investida na próxima loja e, quem sabe, não se mostrem tão despreparados. É uma boa escolha? Nem sempre.
A cena seguinte se passa no check in do Aeroporto Santos Dumont (na cidade da Jornada da Juventude, da Copa e dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos), quando a mesma dupla pretendeu embarcar para um compromisso importante. Adequadamente atendidas, vem o momento da revista, antes de passar ao salão de embarque. Duas funcionárias com poder fiscalizatório dão o comando: “Ela levanta?”. Agora a pergunta foi feita ao atendente da companhia. Desmoralizante. Dentro da cabine, escuta-se: “Consegue levantar o bracinho?” De novo um diálogo que mostra a estranheza entre essas pessoas. Não foi a vendedora, são pessoas que lidam diariamente com o público específico e infantilizam a relação, de forma incorreta e repetida. Responder como? Atrasar o embarque com diálogos reparatórios ou deixar pra lá?
Serão incontáveis os diminutivos desde o momento que saíram de casa até o retorno. Diminutivo tanto pode transmitir carinho como pode ferir e diminuir, reduzir, rebaixar. Cada qual interpreta de um jeito e aguenta o quanto pode. Direta ou veladamente, discriminação no diminutivo pesa e maltrata.
Nada melhor do que um bom hotel, de uma próspera metrópole mundial, para desarmar o espírito de quem já enfrentou tantas provas de resistência. Sorrisos, mesuras e tudo resolvido. Enfim, o quarto adaptado. Tudo parece muito bem. No banheiro, um apoio caro, em formato de L, porém fixado de cabeça para baixo. Conseguiram o impensável e virou um adorno de parede desinteressante e inútil. O problema é precisar do adorno de parede em sua posição certa para cumprir a função de barra. Outro jeito deverá ser dado, com riscos para a dupla viajante. Cair ou não cair. Seria melhor não ter vindo? Que perguntinha chata e insistente.
Chega o momento glorioso, motivador o suficiente para enfrentar tantas barreiras seguidas. A oportunidade de debater e aportar ideias, interagir em alto nível. A proposta é mudar o mundo, incluir e criar indicadores sensíveis ao desenvolvimento de todos. Muitos rostos compromissados, limitações reduzidas e participação assegurada. A tecnologia a serviço da dupla e de todas as pessoas presentes. O ambiente é acessível, convidativo, e estar ali é um prazer como deve ser cada instante de convivência. Como é bom não ter a sua capacidade de “deixar pra lá” medida seguidas vezes.
Ao término de cada evento, com a tarefa realizada com sucesso, começa o congraçamento. São muitas conversas, projetos, atitudes e situações acolhedoras e promissoras. Não se percebem barreiras, somente oportunidades de escolha, de convivência e afetividade. Ainda bem que o mundo entendeu que as pessoas são feitas para viver em harmonia e sem provações. Um suspiro de alívio. Obrigada aos céus.
Como a vida não para, cada qual vai tomar seu rumo com mais conteúdo e felicidade, imagens na memória e instantes eternizados nos cliques de tantos celulares. Foram ótimos encontros, pontuados com abraços, beijos, coisas naturais da nossa cultura. Tudo faz parte, que bom! As fotos estarão no Facebook quase imediatamente.
Então se aproxima o retorno propriamente dito. O aeroporto é outro, o maior do país (Guarulhos). A dupla ultrapassa a etapa do novo check in. Até que foi fácil. Devidamente orientadas, se dirigem ao serviço de atendimento às necessidades especiais. Tudo bem, deixa pra lá, é possível entender que é um atendimento para pessoas com qualquer necessidade de acompanhamento. Devem ser preparados, então não há espaço para preocupação com a mensagem, seria a luta pelo politicamente correto. Calma.
No primeiro contato com duas funcionárias do atendimento especializado, ouve-se: “Ela anda?”. Andar ou não é irrelevante. A questão é o “ela”, uma agressão inesperada, que ofende. Finalmente, “ela” que luta tanto, que faz palestras, que já participou de tantas mudanças na vida social, não pode deixar pra lá. Se deixasse, eu a chamaria de “ela” para sempre. No mais adequado tom, eu disse: “‘Ela’ sou eu. Fale comigo!”
Na moral, cansa ser “ela”. O que falta fazer?
*Izabel Maior é carioca, casada, médica, professora, ativista por direitos iguais e cadeirante.
One Comment