O segredo do pianista

Pianista e orquestra

O segredo do pianista
Por 40 anos, o renomado concertista Marcelo Bratke conseguiu esconder que era quase cego. Agora, operado, ele vê – e conta sua história
KÁTIA MELLO

COMPANHEIRISMO
Foi Mariannita quem insistiu para que ele fizesse a operaçãoEra uma manhã fria de primavera de maio de 2004, em Boston, nos Estados Unidos. Num quarto do hotel Holliday Inn, o pianista paulista Marcelo Bratke, então com 44 anos, aguardava ansioso, com os olhos vendados, o momento mais importante de sua vida. A seu lado estavam uma enfermeira e sua mulher, a artista plástica Mariannita Luzzati. Bratke tinha sido operado naquela manhã, no hospital Ofthalmic Consultants, de catarata congênita, uma doença de nascença, rara, que altera a cor do cristalino e praticamente destrói a visão.
Ao tirar o tampão, Mariannita lhe perguntou: “Está pronto?”. Antes mesmo que ele pudesse responder, as cores invadiram sua retina com uma intensidade inédita para ele. “Legalmente” cego, Bratke recuperou 90% da visão de um olho e 10% do outro. “Quase morri de alegria”, afirma. As imagens eram tão fortes que ele chegou a telefonar ao médico americano que o operou, Peter Rapoza, pedindo algum tipo de ajuste. “As cores são assim mesmo”, respondeu-lhe o médico. Uma de suas mais belas surpresas foi ver o rosto da mulher com quem estava há duas décadas. “Ela parecia um anjo. Aquela pele suave, os olhos cor de mel. Aquela expressão meiga que demonstrava segurança”, diz ele. Até então, Bratke conhecia as pessoas apenas pela voz e não podia imaginar a expressão de seus olhos. Agora que vê, ele decidiu contar sua história, que será transformada em livro pelas mãos da jornalista inglesa Kate Snell. Trata-se de uma tremenda experiência.
Sem ver os teclados, sem enxergar os músicos na orquestra e sem ler as partituras, Bratke conseguiu esconder por quatro décadas sua condição. Ele fez mais de 1.000 concertos internacionais e conquistou vários prêmios importantes na música clássica. O CD dedicado ao “Grupo dos Seis”, de Jean Cocteau, foi considerado pela revista britânica Gramophone como “uma das melhores gravações eruditas de todos os tempos”. Bratke se apresentou nas principais salas de concerto do planeta, brilhou em festivais como o de Salzburgo, na Alemanha, e lotou auditórios em Tóquio, Paris e Berlim. Como quase não via – ele tinha apenas 10% da visão em um dos olhos, o esquerdo –, criou formas próprias de ensaiar e se apresentar. Um jeito: depois de escutar as notas musicais, ouvindo um disco, ele lia a partitura bem de perto, nota por nota, até memorizá-la. “A música sempre foi algo emocional, uma avalanche de sons e sensações que eu guardava na memória auditiva.” Antes das apresentações, ele chegava cedo ao teatro e pedia aos iluminadores que colocassem uma luz em cima do teclado para que não ofuscasse sua vista. Era uma luz especial que não podia fazer sombra e deveria ser de uma exata intensidade. “Dava um trabalho desgraçado, porque ninguém sabia minha situação. Eu dava uma de excêntrico”, diz. Quando o concerto era com uma orquestra, ele pedia ao maestro que lhe dissesse o melhor lugar para entrar no palco. Certa vez, no Teatro Amazonas, em Manaus, ele não viu uma escadinha com um corrimão que saía do palco e despencou de 3 metros de altura. Mas os acidentes eram raros. “Quando você nasce de um jeito, acostuma-se a ele”, afirma.
Bratke nasceu com catarata grave nos dois olhos. Com 2 anos, começou a ficar estrábico, e isso resultou em ambliopia. Ele perdeu a visão central em um dos olhos. Desde pequeno, portanto, o pianista criou ferramentas próprias para sobreviver e ocultar seus problemas visuais. Na infância, sentia-se constrangido por não conseguir localizar sua mãe no imenso pátio, na hora da saída. Então pediu a ela que sempre usasse um pulôver de cor forte para que ele pudesse vê-la de longe. Ele queria correr para abraçá-la, como faziam as outras crianças. Os pais o colocaram em uma escola pequena, o externato Veredas, em São Paulo, para que ele tivesse atenção especial. “Eu registrava na memória o máximo do que ouvia dos professores. Escrevia em meu caderno e lia depois com meu olho esquerdo, a 3 centímetros do papel.” O menino, que não podia enxergar, desenvolveu sentidos como olfato, audição e tato. Na hora das refeições, por exemplo, cheirava a comida para escolher os alimentos que iria pôr no prato. Ao chegar à adolescência, um acontecimento ligaria seu destino a um desses sentidos, o da audição.
Seu pai, o arquiteto Roberto Bratke, recém-separado de sua mãe, comprou um piano para praticar lições de música. Um dia, tocou o “Prelúdio no 4”, de Chopin, e o filho, então com 14 anos, ficou encantado. Ato contínuo, sentou-se ao piano e tentou dedilhar o que ouvira. “Depois de 40 minutos, eu estava tocando quase inteiro”, afirma. O pai, então, chamou sua ex-professora de piano Zélia Deri, que passou a ensinar ao menino truques para tirar músicas de ouvido. “Ela dizia que eu seria um pianista de fama internacional.” Em 1976, aos 16 anos, Bratke foi a uma festa em São Paulo e tocou diante do renomado maestro Eleazar de Carvalho, que o levou ao mundo da música profissional. Anos depois, ainda se emociona ao falar desse período e do papel que teve sua mãe, Thaysa. “Ela era a minha maior incentivadora. Não perdia um concerto e era a primeira a gritar: ‘Bravo!’.”
Em 1992, mudou-se para Londres e passou a tocar em salas europeias. Tornou-se um nome respeitado no cenário da música clássica – mas o problema da visão o perseguia. Bratke visitou centros de oftalmologia em Barcelona, em Londres e nos Estados Unidos. Os médicos diziam que não valia a pena operar: ele poderia perder a pouca visão que tinha em um dos olhos. Foi Rapoza, do hospital Ofthalmic Consultants, quem percebeu que havia uma possibilidade de operar Bratke com sucesso. O médico disse a ÉPOCA que ao fazer no pianista um teste de acuidade visual notou que ele era capaz de ler algumas letras. “Dependendo do número de letras que o paciente enxerga, dá para ter uma ideia da melhora que terá no pós-operatório”, diz. Rapoza explica que Bratke havia “aprendido a ver” com um dos olhos. Seu cérebro tinha construído o mecanismo de enxergar, e isso lhe dava a possibilidade de ampliar a visão. Para outros deficientes visuais essa possibilidade não existe.
Em 2007, morando entre São Paulo e Londres, Bratke montou a Camerata Vale Música, composta de jovens músicos da periferia de Vitória, no Espírito Santo. Com o projeto Villa Lobos Worldwide, esses jovens vão agora divulgar a música do maior compositor clássico brasileiro em oito CDs e concertos no Brasil e em outros países. Essas são atividades que Bratke só pode abraçar porque recebeu, depois de quatro décadas, o sentido que lhe faltava. “Ao ganhar a visão, passei a ver o Brasil com outros olhos”, afirma. “Fiquei com vontade de devolver minha grande alegria à sociedade. Percebi que a música pode ter uma função mais humanitária.”

DÁDIVA REVERTIDA
Marcelo Bratke e os jovens da Camerata Vale Música, em Vitória, Espírito Santo, e o pianista aos 14 anos, idade em que tocou piano pela primeira vez

Fonte: Revista Época

2 Comments

  1. Caros,

    Gostaria imensamente de saber quanto custou a cirurgia do pianista Marcelo Bratke. Por favor, quem puder me ajudar nessa informação ficarei muito grato pela boa vontade e qu Deus lhe proteja.

    Um abraço

  2. Meu irmão sofre do problema de Glaucoma e esta com o nervo ótico em estado terminal , com sério risco de perder toda a visão pois já tem uma das vistas que é protese.
    Não sabemos mais o que fazer, revendo a entrevista do pianista Marcelo Bratke no Jó Soare, estou tentando entrar em contato com ele p saber se o Dr.Peter Rapoza faz este tipo de cirurgia.
    Por favor responda este e-mail, temos urgência, pois meu irmão esta ficando cada vez mais deprimido com isso tudo.
    Que DEUS Abençoe voce Marcelo Bratke por esta luz que vc agora pode vê!!!
    Muito obrigada, vou esperar anciosamente.
    Rosane

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