Flávia Piovesan, professora-doutora da PUC-SP na área de direito constitucional e direitos humanos, vai defender a compatibilidade das ações afirmativas com o sistema constitucional brasileiro durante as audiências públicas convocadas pelo Supremo Tribunal Federal (leia mais). Sua exposição está marcada para sexta-feira, 5 de março, às 8h45. Em entrevista ao Observatório, Flávia fala sobre suas expectativas para a audiência e dos principais argumentos que devem ser apresentados .
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Observatório da Educação – O que as audiências públicas representam para o processo sobre as ações afirmativas no STF?
Flávia Piovesan – É um momento privilegiado de avanço na pauta de direitos humanos no Brasil. Primeiro pela visibilidade que o tema gera. Segundo, pela atenção na mídia, opinião pública, o tema passa a ser incorporado com grande intensidade no debate público nacional. Isso já é um avanço. Essas audiências públicas têm um efeito catalisador. Há um momento pré-audiência, quando os envolvidos lançam estratégias, aprofundam suas reflexões sobre o tema, articulam suas teses. Há o momento da audiência e o momento pós-audiência. Então creio que esse é um tema da mais alta relevância, não só para o fortalecimento dos direitos humanos no Brasil, mas para a densificação democrática. Fico muito feliz que essa pauta possa receber a atenção devida, e que avanços sejam feitos.
Observatório – E qual é a questão que está sendo julgada no Supremo?
Flávia – No fundo, o tema se refere à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei que institui cotas para afrodescendentes nas universidades. Para essa audiência pública haverá uma longa lista de intervenções daqueles que são a favor e contra as cotas. E, com isso, o Supremo terá maiores elementos para decidir sobre o caso. Lembrando que a decisão do Supremo é a última, é a final, e irradia efeitos erga omnes, como nós dizemos no Direito, para toda a sociedade, efeitos gerais. Com ampla incidência.
Observatório – E quais são os argumentos que fundamentam a ADPF contra as cotas e quais podem ser contrapostos a estes?
Flávia – Os principais argumentos são: 1) violaria o princípio da igualdade, afinal de contas todos são iguais perante a lei; 2) violaria o princípio da meritocracia, porque alunos com menor pontuação seriam vitoriosos em detrimento daqueles que tiveram menor pontuação; 3) violaria o princípio da autonomia universitária e 4) isso inviabilizaria políticas universalistas, para todos, e isso seria uma medida só paliativa.
E os contra-argumentos são: 1) esse princípio da igualdade formal, de que todos são iguais perante a lei, foi formulado no final do século 18, quando houve as modernas declarações de direitos. Ele foi revolucionário a seu tempo, por abolir privilégios, mas hoje se torna necessário porém insuficiente, porque toma a igualdade como um pressuposto, como um dado, e não como um resultado ao qual se pretende chegar. Hoje ganha luzes, ganha realce, a igualdade material, que é a igualdade substantiva, de fato. A igualdade como resultado ao qual se pretende chegar. É justamente essa igualdade que ampara as ações afirmativas, a igualdade com respeito às diferenças, à diversidade. Uma igualdade capaz de romper com a indiferença às diferenças.
2) a violação à meritocracia. Acho muito importante, aí, assinalar que as oportunidades, ou o ponto de partida, são distintos. É a famosa visão de Lyndon Johnson, quando presidente dos Estados Unidos, ao sustentar as ações afirmativas. Vocês calaram os negros e os deixaram acorrentados ao legado da escravidão. Vocês os liberam e querem que tenham as mesmas potencialidades, a mesma autonomia que os brancos? É fundamental então equacionar os pontos de partida e mais do que isso, eu creio, não apenas como uma medida compensatória, que busca aliviar a carga de um passado discriminatório, mas como medida que deve ser tomada não só no prisma retrospectivo, mas prospectivos. Visando à transformação social, visando romper os territórios brancos que são as universidades brasileiras. Tem aí a questão da diversidade, que no prisma acadêmico – eu falo como professora há quase 20 anos – é algo fundamental para o ensino de excelência. Como já atestaram as universidades como a Harvard e outras tantas, o contato com diferentes idiomas, crenças, religiões traz uma multiplicidade de visões que acaba enriquecendo o ser humano. O princípio da meritocracia ficaria afastado e o da autonomia universitária também, porque as cotas celebram os valores constitucionais.
Com relação ao argumento 4) de que elas violariam o princípio das políticas universalistas, eu creio que não há qualquer antagonismo. É perfeitamente possível avançar em políticas de cotas focadas, específicas, mas também fortalecer políticas universalistas, até porque ninguém pode ser contra educação de qualidade para todos, saúde de qualidade, assim por diante. É que isso não basta.
A professora a quem tanto leio e admiro está, com certeza, coberta de razão. As pessoas terminam esquecendo que as ações afirmativas são medidas que visam proporcionar meios para o hoje, ou seja, para as pessoas que precisam atualmente. Acabar com as desigualdades, principalmente no que se refere às desigualdades educacionais, é uma medida a longo prazo; a falta de oportunidades, infelizmente, não vai acabar de “hoje para amanhã”, portanto, não podemos esquecer das pessoas que, agora, precisam de meios que as proporcionem oportunidades efetivas.
Isso sim,é a base do princípio da igualdade.
entrevista com flavia piovesan