Direitos trancados no armário

Logo do site Latinoamericano.jor.brReportagem de Isabela Morais sobre a luta das minorias sexuais na américa latina, ficou em terceiro lugar no concurso de reportagens do site http://www.latinoamericano.jor.br/

A luta social pelo reconhecimento e aceitação das minorias sexuais na América Latina.

Por Isabela Morais

“Muitos destes índios e índias eram sodomitas e se sabe que eram realmente muito deles. Em algumas partes desta Índia, eles traziam por joia um homem sobre o outro, em um diabólico e nefando ato de sodomia, feita de ouro, em relevo. Eu vi uma destas jóias do diabo, que pesava vinte pesos de ouro muito bem lavrado, que se tomou no Porto de Santa Marta na costa de Tierra-Firme, no ano de 1514 (…)”. É com essa descrição, que o historiador espanhol Gonzalo Fernandez de Oviedo em “História General y Natural de las Indias” (1535) descreve horrorizado parte da cultura homoerótica existente entre os povos pré-colombianos na região da atual costa da Venezuela e Colômbia. Quase meio milênio se passou e mesmo tanto tempo não foi capaz de apagar completamente o preconceito contra o homossexual na América Latina, que ainda hoje reivindica por seus direitos, que lhe foram seqüestrados durante séculos de discriminação, estereotipagem e condenação.

Mais de 1200 homossexuais foram violentamente assassinados, vítimas de crimes homofóbicos nos últimos 15 anos no Brasil, segundo relatório anual divulgado pelo Grupo Gay da Bahia, uma das mais respeitadas ONGS de defesa e luta pelos direitos da comunidade GLBT no Brasil. O país é o campeão mundial desse tipo de crime – 190 homicídios só em 2008. Dentro da América Latina, o Brasil é seguido por México com 35, Peru com 15 e Argentina com 4 assassinatos registrados no mesmo ano. Contando com os outros países da região o número pode chegar a 365 execuções, uma por dia – tragédia contada no virar das páginas de um calendário. Segundo dados da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) a América Latina e Caribe são as regiões onde se comete o maior número de crimes homofóbicos no mundo.

Os dados alarmantes mostram a gravidade da situação pela qual passam gays, lésbicas e travestis latino-americanos, e explica por que muitos deles mantêm sua sexualidade reprimida; tão escondida nas entranhas do medo e da rejeição que ela, muitas vezes, se torna um peso, um estorvo. E então, a homofobia vira número, estatística, sobre gente que não pode mostrar a cara, como se por trás de relatórios e dados não existissem nomes, idades, nacionalidades e histórias.

Daniel, 21 anos, colombiano. Iara, 19 anos, brasileira. Durante os últimos dois meses conversei com dezenas de gays e lésbicas; ouvi histórias que pareciam verdadeiros contos de fada irradiantes com seus finais felizes e outras que pareciam contos de fadas inacabados; histórias paralisadas na maldade da madrasta, na gozação das irmãs malvadas, na mordida da maçã envenenada. Mas essas duas histórias me chamaram especial atenção, por sintetizarem em si todo complexo de casos, fatos e sentimentos.

“Me descobri gay aos 18 anos, bêbado, xavecando meu melhor amigo. Fiquei pensando: gosto de muitas coisas não muito heterossexuais como estilos de música. Nunca fiquei realmente afim de uma menina”. Assim, Daniel se diz homossexual. Quando questionado sobre a certeza que tem sobre sua orientação, ele brinca: “Acho que se algum dia uma menina cheia das minhas expectativas aparecer, eu a namoro. Não. É mentira. Sou homo (risos)”. Com Iara, o descobrimento de sua sexualidade também se deu de forma parecida: “Me descobri lésbica no primeiro ano da faculdade, quando comecei a gostar de uma menina da minha sala”. A aceitação da homossexualidade, tanto por si mesmo, quanto pelos familiares e amigos, porém, depende muito do contexto social em que se foi criado. Iara revela: “Minha família e meus amigos aceitaram isso sem problemas e eu também. Sempre vi as pessoas de maneira igual, independente do gênero. Acho que se ama uma pessoa pelo que ela é e não pelo que ela tem entre as pernas”. Já Daniel diz: “Não contei para minha família. Eles são muito religiosos, sabe? Para eles é um pecado”.

A religião é um dos principais fatores que ajudam a fomentar homofobia na América LA. Sobre essa questão, o presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT – Toni Reis, diz: “A religiosidade em si não é um problema, e é até importante na vida de muitas pessoas. O problema para a comunidade GLBT são os religiosos fundamentalistas. No Brasil o instituto de pesquisa do Senado Federal realizou uma pesquisa que demonstrou que 73% dos católicos apóiam a criminalização da homofobia e 55% dos evangélicos também. Então, não são todas as pessoas religiosas que são contrárias à homossexualidade, mas sim alguns religiosos fundamentalistas, ou ”literalistas”, que interpretam a Bíblia fora do contexto das tradições e costumes da época em que ela foi escrita”. São esses os religiosos da família de Daniel; cristãos, como a maioria da população latino-americana que, baseados em interpretações das sagradas escrituras, sustentam a homossexualidade como um pecado mal-visto aos olhos de Deus. Eis uma herança européia, dos tempos de Gonzalo Fernandez de Oviedo, quando a visão cristã e a interpretação literal da Bíblia eram inquestionáveis. Mesmo não tendo desaparecido por completo, a homofobia dentro do catolicismo e do protestantismo vem sofrendo grandes alterações. “Um dia um sacerdote me disse que se fazia isso (me relacionava com homens) com o coração, estava bom. Então, eu acredito em Deus, mas não na Igreja”, diz Daniel. Porém, essa mudança da visão cristã, sobretudo no catolicismo, sobre a homossexualidade acontece de forma extremamente lenta e não é reconhecida pelas diretrizes oficias da Igreja Católica.

Outro elemento fundamental na construção da homofobia é a estereotipagem à qual os homossexuais são submetidos. As culturas mediterrâneas (mais precisamente as latinas, com as quais fomos colonizados) possuem um forte elemento de distinção entre homem e mulher. Essa concepção redutora acaba criando uma ligação entre gênero e sexualidade pressupondo que aquele que ocupa a posição passiva numa relação homossexual teria atributos e uma identidade do sexo oposto. Para Toni Reis, alguns programas humorísticos que tratam a homossexualidade de uma forma estereotipada, reforçam o preconceito.

Mesmo com esse preconceito atávico que persiste na sociedade, as associações GLBT de alguns países da América Latina vem, a curtos passos, conquistando parte de seus direitos. Há muitos avanços, como no caso do Uruguai em que foi aprovada a Lei do Concubinato, que equivale à união civil entre homoafetivos. A Cidade do México e a cidade de Buenos Aires também já reconhecem a união civil entre pessoas do mesmo sexo, e a Corte Suprema da Colômbia já reconheceu a união estável entre homossexuais. Mas essas leis, apesar de grandes conquistas do movimento gay, não são capazes de mudar o pensamento de grande parte da população desses países, fortemente influenciada pelas religiões cristãs e pela estereotipagem dos homossexuais.

Países com leis que promovam a inserção do homossexual na sociedade são exceções na América Latina; a maior parte das nações latino-americanas se mantém conservadora: na América Latina e no Caribe, ainda há 11 países em que a homossexualidade é crime. De acordo com levantamento da Anistia Internacional divulgado pelo site Pinknews.com, esses países são: Guiana, Belize, Antígua e Barbuda, Barbados, Dominica, Granada, Jamaica, São Cristóvão e Nevis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas e Trinidad e Tobago. Esse último, inclusive, possui uma lei que proíbe a entrada de pessoas GLBT. São poucos os chefes de Estado, na região, que defendem abertamente os direitos dos homossexuais: o presidente Lula no Brasil, a presidente do Chile Michelle Bachelet e o do Equador, Rafael Correa. “Há vários países com destaque. Brasil, Bolívia, Peru, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Colômbia, Venezuela, Equador e México são os países que mais têm mais políticas públicas e também grupos de atuação” – comenta Toni Reis. Se, por um lado os movimentos de defesa dos direitos gays avançam nesses países, por outro, nos países da América Central as minorias sexuais ainda encontram-se dentro do armário, sem que existam dados concretos sobre a homossexualidade nesses países.

Enquanto esse preconceito persiste, os crimes hediondos contra homossexuais crescem. Toni Reis relata o caso de homofobia que mais o chocou, enquanto presidente da ABGLT: “Há muitas histórias que comovem, mas o que mais me afetou pessoalmente foi o assassinato de Renildo José dos Santos, de Coqueiro Seco, no estado de Alagoas, em 1993. Depois que ele anunciou numa rádio que era bissexual, sofreu ameaças, não teve a devida proteção, e foi morto, esquartejado, queimado, teve os dois olhos furados e tiraram a sua genitália. Esse foi o caso mais grave de homofobia que já vi em toda minha vida”. Hoje, há um prêmio criado com a finalidade de instituir memorial a essa vítima de um crime tão bárbaro; o prêmio Renildo José dos Santos é entregue pelo Grupo Gay de Alagoas à pessoas que se destacam na promoção e defesa dos direitos humanos.

Daniel e Iara se dizem orgulhosos de sua sexualidade. Esse orgulho, atualmente, é simbolicamente representado pela bandeira que traz as cores do arco-íris dispostas em linhas horizontais. A adoção desse modelo de bandeira evidencia os objetivos dos movimentos de luta social das minorias sexuais: as 7 cores são distintas, elas se combinam, não se confrontam, convivem pacificamente sem tentar suplantar uma a outra. É a diversidade expressa num belo mosaico colorido. Para as associações de defesa do público GLBT da América Latina, fica também um anseio mais profundo: o que encontrar no fim desse arco-íris, o pote de ouro do direito concreto à liberdade de orientação sexual, minado pelo preconceito estigmatizado sem que nessa busca vidas sejam reduzidas a números trágicos e histórias tornem-se bugigangas empoeiradas, esquecidas dentro de armários.

Fonte: Isabela Morais – isa_morais3@yahoo.com.br

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