Nelsa não subiu no palanque

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Nelsa Nespolo preferiu a política do cotidiano à política dos votos. Hoje ela preside a atuante Cooperativa de Costureiras Unidas Venceremos, no bairro Sarandi, em Porto Alegre. Por Alexandre de Santi, especial para a série Anônimo Brasil. Da Via Política.

O telefone toca atrás do balcão de uma pequena cooperativa de costureiras da zona norte de Porto Alegre. Nelsa Nespolo atende. Ainda com o aparelho apoiado entre a orelha e o ombro, ela recebe um cliente que chega para buscar uma encomenda.

Os dois trocam cumprimentos, e Nelsa se despede do telefonema enquanto entrega o pacote para o homem. Usando um corte de cabelo preto e curto para decorar o corpo ágil de 46 anos, a presidente da Cooperativa de Costureiras Unidas Venceremos (Univens) preenche o talão de nota fiscal e responde à dúvida de uma colega: “A gente combinou 500 com eles”. A colega parte satisfeita com a resposta.

Em meados de março, Nelsa deixou os dois filhos e as tarefas da cooperativa para embarcar rumo ao Norte. Por uma semana, trocou a fuligem dos caminhões do bairro Sarandi, uma região da capital gaúcha entre o aeroporto, o polo de logística da cidade e Alvorada (uma dos municípios mais povoados e violentos do Rio Grande do Sul), pela selva de Rondônia e Acre.

O roteiro incluía visitas a outros produtores cooperativados, mais uma viagem para troca de experiências e compartilhar o aprendizado da Univens para fora do Sarandi. No telefone, parecia feliz. “Meu Deus, você não pode imaginar. É encantador o espírito cooperativo desse pessoal. Eu não esperava neste meio. Só de ver os carros na garagem…”, me disse direto de Rio Branco, a capital do Acre, um dia antes de conhecer produtores da cidade de Senador Guiomard.

A viagem de Nelsa até o Acre começou na Juventude Operária Católica (a JOC) e passou pelo movimento sindical. Nos meados da década de 90, quando ela e todas as mulheres do Sarandi eram vítimas dos sucessivos fracassos econômicos numa nação que recém havia recuperado o rumo, Nelsa tirou do armário os ideais de esquerda para organizar as vizinhas.

Primeiro, buscou apoio no Orçamento Participativo (OP), o instrumento de eleição popular de prioridades da prefeitura que marcou os 16 anos de governo do PT em Porto Alegre, para pedir saneamento básico e asfaltamento no bairro. “Só tinha um contador de luz para toda a rua. A gente tinha que dividir entre os vizinhos para pagar a conta. Faltava água todos os dias. Era horrível a vida aqui”, relembra Gladis Terezinha Spotti, 46 anos, uma das costureiras da Univens e proprietária de uma casa equipada, com gramado, pátio e churrasqueira.

A comunidade conquistou infraestrutura, mas os bolsos seguiam vazios. Nelsa partiu para a próxima batalha. Conversou com as vizinhas e reuniu um grupo de mulheres numa sala da igreja local. Mesmo sem consultoria jurídica ou referencial teórico para orientá-las, as mulheres do Sarandi fundaram a Univens em 1996. O primeiro contrato foi a confecção de 500 camisetas para o sindicato dos metalúrgicos. “Conseguimos entregar, mas, quando fizemos as contas, não sobrou nada! Deu um desânimo”, conta Nelsa entre uma e outra intervenção das colegas para acertar detalhes do trabalho.

Mais tarde, a cooperativa mudou para uma incubadora de empresas que operam sob o conceito de “economia solidária”, o jargão de esquerda para a produção que dispensa a comissão de intermediários e soma forças entre iguais, uma esperança de construção de riqueza para quem foi habituado a trabalhar muito e ganhar pouco sob às ordens de um patrão.

Com a mudança de governos, a incubadora mudou de rumo e deixou a Univens sem teto. O cheiro do fracasso rondava o Sarandi. Ainda assim, o negócio persiste. A cooperativa chegou em 2009 com 25 sócias, sede própria e liderando a “cadeia ecológica de algodão solidário”, uma cooperativa de segundo grau (isto é, uma cooperativa de cooperativas) conhecida pela marca Justa Trama.

Sempre que surge uma dificuldade, uma força parece empurrar a cooperativa para a frente. Para Gladis, essa força tem nome: Nelsa Nespolo. “Ela é incansável. Como se fosse uma mãe para nós. Ela não se dá conta, mas a gente admira muito ela”, diz a colega. Certa manhã, uma costureira passa mal. Nelsa confere o estado da colega que, enjoada, é assistida pelo marido, e avalia se o casal tem condições de chegar em casa. “Estamos com três doentes hoje”, lamenta Nelsa, levantando a sobrancelha em sinal de preocupação.

A presidente da Univens lembra de quando a rede de fornecedores da Univens dependia de um tear para produzir tecidos em Santo André, São Paulo. O grupo foi à Brasília pedir equipamento ao Ministério do Trabalho. E conseguiu. Mais tarde, as associadas perceberam que, como a cooperativa é formada por mulheres e nem todas contam com alguém para cuidar dos filhos, faltava condições para que as costureiras se dedicassem ao projeto. A solução: uma creche comunitária foi levantada na região com apoio da prefeitura. Nelsa não toma crédito pelas conquistas, mas as colegas não escondem sua liderança. “A vida da Nelsa fica em último lugar. Eu faço só a minha parte. Ela faz a de todos”, acrescenta Gladis.

No final da década de 90, a capacidade de envolver a comunidade foi percebida pelo PT. Nelsa foi convidada para se candidatar a vereadora pelo partido nas eleições de 2000. “Ela tem dedicado um esforço monumental para a economia solidária e tem uma identidade muito grande com o PT. É boa de voto, teria todas as condições de ser uma boa candidata, teria uma batalhão de militantes”, elogia Adeli Sell, vereador e presidente municipal do partido em Porto Alegre.

O palanque, no entanto, não seduziu Nelsa. A costureira olha para os lados e vê as pilhas de camisetas, batas, vestidos e calças produzidas pelas companheiras. E diz: “Não teria ajudado a construir tudo isso aqui se tivesse entrado para a política.” Os convites não cessaram, mas a resposta continua a mesma. “Esse assunto está bem resolvido para ela. Não entra na agenda da Nelsa”, diz o marido, Claudir Nespolo, presidente do sindicato dos metalúrgicos da região e suplente de vereador pelo PT.

Nelsa garante que, apesar de o marido ter optado pelo caminho partidário, ela sequer se filiou à sigla. “Não queria que as pessoas misturassem esse trabalho com outras pretensões. Porque eu realmente não tenho essas pretensões”. Sell apoiou o ingresso da Univens na incubadora do Sarandi, quando o vereador era secretário da Indústria e do Comércio, e conheceu de perto a transformação do bairro. “A Nelsa me parece mais talhada para este trabalho. Ela fez uma escolha muito feliz, penso eu. Ela faz política social”, avalia Sell.

Em 2005, a organização do Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, encomendou 60 mil sacolas produzidas com algodão orgânico. Nelsa e as colegas pegaram o pedido, mas precisaram sair em busca de matéria prima. A encomenda organizou a Justa Trama. Criada no mesmo ano, a rede reúne seis cooperativas espalhadas pelo país: Ceará (de onde vem o algodão orgânico, sem agrotóxicos), Rondônia, São Paulo, Santa Catarina e a gaúcha Univens, onde a Justa Trama é administrada. Do algodão ao tecido, do desenho à impressão, tudo é orgânico e passa pelas cooperativas. “A grande maioria das cooperativas não dá certo. Sempre dizem que não tem mercado, que não tem matéria prima, que não tem financiamento. No nosso caso, diziam que não tinha algodão. Tínhamos que derrubar cada uma das dificuldades que as pessoas colocavam”, conta Nelsa.

Hoje, os produtos da Justa Trama representam 10% da receita da Univens, mas gera o dobro de satisfação – além de garantir uma margem de lucro um pouco maior. A marca também ampliou a vitrine da cooperativa do Sarandi. Nelsa já foi à Itália e Espanha falar da rede. No Brasil, perdeu a conta de quantos seminários, conferências e palestras já participou, sem contar as visitas aos fornecedores. Ao Ceará, foram duas viagens. Em 2006, a Justa Trama colocou um estande em uma feira de economia solidária realizada em São Paulo. “Saímos com o maxilar doendo de tanto contar o que era a Justa Trama”, lembra. “Se desse para trabalhar só com Justa Trama, a gente trabalhava só com Justa Trama”, diz Nelsa.

Mas a presidente da Univens explica que é preciso coordenar toda a cadeia para não dar razão aos teóricos que desconfiam da economia solidária. Para vender mais, é preciso demanda. Para ter demanda, as cooperativas precisam vender. E, para vender, Nelsa não poupa esforços para viajar e conhecer pessoas. “Todas as viagens se pagam um dia. É um prazer falar do nosso sonho para as pessoas, mas também fechamos negócios. Sempre tem alguém da plateia que acaba tirando um pedido”.

Para entregar os pedidos, no entanto, as cooperativas precisam de matéria-prima e de mão de obra. E, para ter mais algodão ecológico, as costureiras precisam convencer os produtores do Ceará de que vale a pena expandir a produção. Na viagem até Rondônia, onde cidades ainda são exceção na paisagem, Nelsa visitou fornecedores de sementes, a matéria prima de botões das peças da Justa Trama. Também encontrou produtores de milho, feijão, aves e gado leiteiro. Todos organizados em sistemas econômicos “solidários”.

Se mais pessoas aderirem às cooperativas e à produção ecológica, mais matéria prima estará disponível, os custos podem baixar, e crescerá a consciência entre os consumidores do benefícios da economia solidária para a sociedade, que ficarão estimulados a apoiar essa causa comprando mais produtos de cadeias como a Justa Trama. Esta é, resumidamente, a plataforma de Nelsa.

A costureira do Sarandi não subiu no palanque, mas sua rotina é feita de articulações. Às 11h, as costureiras deixam a sede da Univens para almoçar em casa, uma vez que quase todas moram nas imediações do prédio verde da cooperativa. Nelsa vai à creche comunitária conferir se está tudo bem…

14/3/2010

Fonte: Via Política/O autorO jornalista e videomaker Alexandre de Santi, de Porto Alegre, que assina esta contribuição especial para a série Anônimo Brasil, é colaborador da Cartola – Agência de Conteúdo.E-mail:  contato@cartolaconteudo.com.br

O vídeo e a reportagem “Nelsa não subiu no palanque” podem ser livremente reproduzidos, na condição de que seja respeitada sua integridade e citados o autor e as fontes.

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