Criação

Por Marcos Rolim

Há uma boa dose de ironia no nome do ótimo filme sobre Charles Darwin – “Criação” – adaptado da biografia de Randal Keynes, tataraneto de Charles e sobrinho-neto do economista John Maynard Keynes. Quando o assisti, havia 14 pessoas na sala de exibição, o que é simplesmente triste. O filme nos apresenta um Darwin atormentado diante da magnitude de sua obra, tolerante frente aos sentimentos profundamente religiosos de sua esposa e convivendo com a dor infinita pela morte de sua amada filha Annie. As críticas no Brasil têm sido, em regra, desfavoráveis ao filme. Uma delas sustentou que o argumento reduz os conflitos de Darwin a um drama conjugal. Penso, pelo contrário, que a grandeza do filme está precisamente em abordar a gigantesca empreitada da redação de “A Origem das Espécies” no espaço das relações pessoais de Darwin. Embora trate de um período da vida do grande cientista, o filme permite a retomada de passagens anteriores como a viagem no Beagle, que aparecem nas histórias contadas por Darwin aos seus filhos. Algumas das cenas onde o pensamento religioso em vigor no século XIX é contrastado pelos argumentos darwinianos são antológicas e, por certo, perturbadoras para qualquer um que se arrisque a pensar sobre suas próprias crenças. Também por conta disso, o filme não será um sucesso de público.

A contribuição de Darwin não diz respeito ao século XIX e a Teoria da Evolução segue sendo uma das mais potentes descobertas científicas de todos os tempos. Sua falta de popularidade e o grau de desconhecimento sobre aquilo que, da fato, Darwin comprovou se explicam pelo fato de que a evolução é, em si mesma, uma “ideia perigosa”. A primeira e a mais impactante decorrência da obra de Darwin é a desconstrução do mito do “design inteligente”. Não houve “criação”, em síntese, e não há qualquer “projeto” que anteceda o infinito processo pelo qual centenas de milhares de espécies foram extintas, enquanto outras tantas se desenvolveram e se modificaram ao longo de milhões de anos. Somos um acidente improvável cujas origens estão profundamente fincadas em um mesmo processo, das primeiras células em um caldo primitivo a mais sublime obra de arte. Seria mesmo banal retomar este ponto, mas os esforços pela ruptura do princípio da laicidade atualmente em curso no Brasil – que estimulam o dogmatismo religioso a projetar suas sombras sobre o ensino público – é uma ameaça que não deve ser subestimada. Se não estivermos atentos, em breve nossos filhos estarão “aprendendo” que a mulher foi feita de uma costela do primeiro homem. Com escolas do tipo e com a atual audiência do Big Brother poderemos, então, desistir da civilização.

O contato com a obra de Darwin irá nos oferecer sempre razões para o encantamento. Não apenas pelo que há de meticuloso no esforço do cientista, pela extensa coleta de informações, pelas observações acuradas e sistemáticas e pela disposição de oferecer, a cada passo, evidências insofismáveis; mas, sobretudo, por sua coragem de pensar fora de um paradigma que, a sua época, era inquestionável. Também por isso, o filme “Criação” é um acontecimento. Não o percam!

* Marcos Rolim é jornalista.
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Fonte: www.rolim.com.br

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