Por Andrei Bastos *
Eu sempre digo aos meus pares que sou uma pessoa com deficiência diferente, pelo menos entre as que conheço. Não creio que eu seja único na minha condição mas, geralmente, quando alguém que não nasceu com deficiência adquire uma durante a vida, em conseqüência de acidente ou doença, passa a se considerar “no prejuízo”. É natural, não resta dúvida, pois se num dia a pessoa é capaz de surfar nas ondas todas da existência, literalmente ou não, e no dia seguinte precisa de cadeira de rodas, muletas ou cão-guia para se locomover, ela efetivamente perdeu algo de que só adquirimos a consciência exata do valor quando já não temos mais e não podemos reaver.
Minha deficiência resultou de um câncer, mas não foi um processo degenerativo. Na verdade, ela foi a moeda que usei para pagar pela vida e acho que fiz um grande negócio. Ao contrário de muitos que se consideram no prejuízo, eu estou “no lucro”: troquei uma perna pela vida. Talvez esta situação limite que vivi, sem opções, tenha resolvido também o problema da baixa auto-estima, que não me afetou já que eu me dispunha a vencer um adversário maior e mais poderoso do que a deficiência.
Mas não estou aqui para falar de flores. São muitos os espinhos do nosso jardim para que eu faça uma prosopopéia sobre a minha vida. Os dois parágrafos anteriores devem servir apenas para me situar e para introduzir os parágrafos seguintes.
O conhecimento de como as pessoas com doenças graves enfrentam seus dias e noites inevitavelmente me leva a ampliar o alcance dos conceitos de dignidade e direitos humanos, que contemplam a todos os cidadãos, mas às pessoas com deficiência em particular, até elas. Recentemente li, e reproduzi no meu blog, um artigo escrito por Don Aucoin e publicado no jornal The Boston Globe, nos EUA, que se refere à luta pelos direitos das pessoas com deficiência como a “última grande luta”. Eu acho que ela é, na verdade, a penúltima. Depois dela ainda temos muito chão para elevar a auto-estima das pessoas com doenças graves e lutar e afirmar seus direitos à dignidade e à cidadania plena. Se as pessoas com deficiência têm necessidades específicas que precisam ser atendidas, as com doenças graves mais ainda.
É comum a gente ouvir que a cura começa na vontade do próprio doente de se curar. Mas isso é pouco. A cura verdadeira e definitiva só será possível quando o doente conseguir avançar além dele mesmo e puder lutar socialmente pelo direito à busca do remédio para ele e para os outros, para todos. Da mesma forma que as pessoas com deficiência, as pessoas com doenças graves precisam dizer “nada sobre nós sem nós”.
A Justiça pode ser chamada a decidir o que quer que seja, a qualquer tempo, mas não pode deixar de ouvir a parte mais interessada na luta pela vida, e que é sujeita de direitos. É muito louvável que doutores e religiosos se dediquem à discussão dos temas que dizem respeito aos doentes, mas estes não podem ficar à margem dessa discussão, como incapazes de lutar pelos seus direitos.
Pelas pessoas com deficiência e pelas pessoas com doenças graves, liberdade para a pesquisa científica com células-tronco embrionárias!
*ANDREI BASTOS é jornalista e integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ
OBS.: Este artigo foi publicado originalmente no blog do autor, em 25/05/2008, quando a pesquisa com células-tronco embrionárias era julgada no STF.