Por Ana Terra, na Via Política
Documentário de Silvio Tendler apresenta mosaico afetivo que levou 19 anos para ser concluído. Mas nunca terá fim, assim como a história.
Utopia e Barbárie, filme de Silvio Tendler, é uma obra prima de síntese do que é a essência do mundo desde a Segunda Guerra. Como um documentário de si mesmo, o autor dialogando com imagens e depoimentos de todas as partes do mundo, nos apresenta o que afetou sua vida iniciada exatamente no meio do século passado, 1950, e construiu sua subjetividade e ação como brasileiro, cineasta e judeu.
Não pretendo fazer uma análise do filme que outros, com muito mais competência com certeza farão. Mas observar como esse mosaico afetivo que durou 19 anos para ser montado, nunca terá fim, assim como a história. E como um moto perpétuo multiplicador pode provocar em cada expectador a criação de um “documentário de si mesmo” por pensamentos, palavras ou obras. O comovente e instigante no filme é esse corajoso depoimento em primeira pessoa que todo o tempo se coloca no lugar do outro e o outro no seu lugar. E com engenho e arte, em vez de paralisar quem assiste, provoca mobilização para um futuro em que a humanidade conseguirá enfim se humanizar.
Veja o trailer do filme:
A visão que cada um tem do mundo é evidentemente única, mas a questão básica é para muitos a mesma: o que constrói e destrói a vida? A resposta também. Utopia e barbárie, em permanente embate, ora uma, ora outra, saindo vencedora. Mas o aterrador é que não é tão simples assim, o bem contra o mal. Numa alquimia macabra, um pode gerar o outro. Foi nesse ponto que o filme em mim tocou emocionalmente e ampliou as indagações que me faço a vida inteira.
O “bem”, que venceu a Segunda Guerra Mundial, assassinou e torturou japoneses com bombas atômicas. Que diferença fundamental existe entre o presidente democrático dos Estados Unidos e o ditador nazista? Que diferença fundamental existe entre as nações ditas civilizadas e o terrorismo dito primitivo se ambos continuam praticando a barbárie nos dias de hoje? Que diferença fundamental existe entre os torturadores de presos políticos durante a ditadura e os torturadores dos presos comuns durante a democracia atual, na delegacia da nossa esquina? A dor é a dor para qualquer um.
Que diferença fundamental existe entre comunistas e capitalistas que torturam seus opositores? Do ponto de vista humanitário, nenhuma. Do ponto de vista ideológico sim. O capitalismo é por definição um sistema excludente e por isso violento em si mesmo. A exploração do homem pelo homem é barbárie. Mas quando a utopia de uma sociedade justa e igualitária, pela qual tantos dessa geração deram a vida, transforma-se em barbárie? É muito mais grave porque dá aos bárbaros o argumento para as novas gerações de que não existe outro mundo possível. Mas existe.
Só uma pequena parte da humanidade é irrecuperável e imperdoável porque engendram o aniquilamento do outro com requintes de perversidade: torturadores e pedófilos. A grande maioria peca por omissão, fraqueza e conivência. E uma minoria por abuso de poder econômico e político. Nada que não possa ser coibido atribuindo aos governantes e cidadãos responsabilidade pessoal sobre seus atos ou omissões, e punição exemplar. Não se pode aceitar que violência seja apenas a óbvia agressão física que renda ferimentos ou morte. Submeter o semelhante a qualquer nível de intimidação e humilhação é o germe dos crimes maiores. Como o ovo da serpente que nossos educadores estão chocando permitindo bullying e trotes em calouros universitários.
Um trabalhador gastar horas de sua vida em deslocamento para o trabalho porque nossa democracia não providenciou transporte coletivo decente é ou não é uma violência? Fácil de resolver: basta uma lei ou uma ação popular que incorpore esse tempo gasto como tempo de trabalho. Se o empresário tiver o tempo real de trabalho de seu empregado reduzido de 8 ou 6 horas para menos de 4 ou 2 horas rapidamente se resolverá a questão de transporte coletivo.
A morte de populações em área de risco é ou não é genocídio? O tão disputado petróleo, que provoca guerras de extermínio e destruição do meio ambiente, deve merecer investimentos? Um país onde se plantando tudo dá, e a todos pode alimentar, deve continuar investindo em agronegócio para exportação? E por aí vai.
A alquimia também pode ser libertadora e o “mal”, independente de sua vontade, por uma reação não prevista, romper o círculo vicioso do pensamento hegemônico de direita e de esquerda. Pode gerar uma nova lógica diante da falência de tantos modelos. Dessa nova realidade nascem novas práticas e novas teorias.
Como exemplo de uma bela alquimia entre ciência e arte, o filme de Silvio Tendler me lembrou a geometria dos fractais. E a frase de seu descobridor, Benoit Mandelbrot “A geometria dos fractais não é apenas um capítulo da matemática, mas uma forma de ajudar os homens a verem o mesmo velho mundo de forma diferente.”
Ana Terra é compositora, escritora e ativista na área cultural. Atualmente coordena com Teo Lima o Projeto “Casa do Músico” e participa de debates apresentando o “Sistema Criativo da Música Brasileira”, projeto de formação de redes com novos conceitos desenvolvidos para a área musical.E-mail: anaterra01@gmail.com
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Fonte: ViaPolítica/A autora
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