
O Grupo de Trabalho de Sistematização dos Subsídios Colhidos nos Seminários Regionais (GT-Estatuto) apresentou ao plenário da 68ª Reunião Ordinária do Conade o relatório final do seu trabalho.
O objetivo do GT foi o de dar forma às contribuições feitas nos cinco Seminários Regionais, realizados de 28 de setembro a 13 de novembro de 2009. Os encontros realizados em Manaus/AM, Salvador/BA, Belo Horizonte/MG, Brasília/DF e Canoas/RS, foram para atender à proposta feita na Moção 34 da II Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, realizada em dezembro de 2008, em Brasília/DF, com o objetivo de discutir o Estatudo da Pessoa com Deficiência, na forma dos Projetos de Lei 7.699/2006 e 2.638/2000.
O Relatório do GT
O Relatório do GT-Estatuto registrou os principais pontos polêmicos identificados nas diferentes minutas de estatuto elaboradas, com base na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, da ONU. O que se obteve de resultado não demonstrou consenso em muitos âmbitos e essa preocupação foi sintetizada no Relatório.
Substitutivo ao Projeto de Lei
O GT identificou que persiste o desafio de elaboração de uma minuta que possa ser apresentada como substitutivo e a necessidade da garantia de maior debate com a sociedade civil para o aprimoramento do processo democrático. Assim, será realizada audiência pública na Câmara dos Deputados, por meio da Comissão de Direitos Humanos, presidida pela Deputada Federal Iriny Lopes (PT/ES), para se discutir as polêmicas que envolvem o tema.
Para o processo de elaboração de minuta de projeto de lei sobre os direitos das pessoas com deficiência, o Relatório do GT aponta a necessidade do envolvimento dos ministérios com o objetivo de que a construção seja feita com o envolvimento dos órgãos executores da política governamental.
A minuta deverá servir para regulamentar os dispositivos da Convenção da ONU, suprindo lacunas existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Há propostas elaboradas por entidades da sociedade civil que poderão ser utilizadas como base para o grupo de trabalho, com vistas ao seu aperfeiçoamento.
Até o fim de maio de 2010, conforme combinado com os parlamentares, o Conade deverá novamente se reunir com os interessados da Câmara e do Senado para informar sobre os avanços e desafios do processo, repactuando encaminhamentos e prazos, se necessário.
Pontos polêmicos identificados pelo GT
1. Conceito de pessoa com deficiência (Artigo 2 da Convenção da ONU) – É importante detalhar quem é considerado pessoa com deficiência para fins de direito. Também é preciso esclarecer o que é considerado deficiência intelectual e o que é saúde mental e decidir se os transtornos invasivos do desenvolvimento, além da epilepsia, esquizofrenia, dislexia, entre outros, são considerados deficiências. Outro tema polêmico é se a visão monocular é considerada ou não uma deficiência. Discute-se a necessidade de que a surdocegueira seja reconhecida na lei como um tipo de deficiência pelas suas particularidades que não são apenas a soma da deficiência auditiva com a visual.
2. Capacidade legal (Artigos 13 e 23 da Convenção da ONU) – A Convenção da ONU determina que todas as pessoas, independentemente de sua limitação funcional, têm a capacidade de ser titulares de direitos e de exercer os mesmos direitos. A sociedade brasileira ainda está muito despreparada para garantir a implantação dessa premissa para alguns tipos de deficiência, especialmente a intelectual. A interdição, incluindo a interdição parcial, deverá ser objeto de discussão, sendo necessário refletir sobre que tipos de direitos devem ser salvaguardados e quais poderão ser exercidos.
3. Educação (Artigo 24 da Convenção da ONU) – A ruptura com o modelo anterior de educação para pessoas com deficiência, denominada de educação especial, tem gerado polêmica no País. Isso porque a orientação normativa prevista na Convenção da ONU e a do Governo Federal segue a linha da educação inclusiva, com o consequente provimento de apoios necessários para que isso aconteça. No entanto, muitos questionam que, durante o processo de transição, as escolas não estão preparadas. Desta forma, está sendo rediscutido o papel das escolas especiais, que se modifica de protagonistas da educação de pessoas com deficiência para exercer função complementar. Outro ponto muito importante é que as medidas de acessibilidade deverão ser para a educação em todos os níveis, com especial atenção para educação infantil, que na maior parte das vezes é esquecida quando se trata de crianças com deficiência.
4. Reabilitação (Artigo 26 da Convenção da ONU) – O direito à reabilitação da pessoa com deficiência ainda não é uma realidade brasileira. Neste sentido, deve-se fortalecer a obrigatoriedade de que sejam implantados serviços públicos focados na reabilitação de pessoas com deficiência. Para tanto, se identifica também a necessidade de distinguir a reabilitação profissional da habilitação, para que as políticas públicas possam ser corretamente concebidas e implantadas. Uma questão polêmica neste ponto também são os modelos propostos de reabilitação para pessoas com deficiência. Há propostas de manutenção de oficina protegida e trabalho protegido que vão contra a tendência do modelo inclusivo.
5. Trabalho e Emprego (Artigo 27 da Convenção da ONU) – Os percentuais conquistados poderão ser questionados no Congresso Nacional e essa é uma preocupação do segmento: não perder direitos conquistados. Desta forma, a alteração no percentual só poderia ser admitida pelo segmento se fosse para ampliar os postos de trabalhos para pessoas com deficiência e incluir micro e pequenas empresas na obrigatoriedade. Temas como cargos públicos, qualificação profissional, equiparação de carreiras e salários e a necessidade de adaptações razoáveis e acessibilidade no ambiente laboral, também merecem ser discutidos.
6. Cultura, Esporte, Turismo e Lazer (Artigo 30 da Convenção da ONU) – A audiodescrição no Brasil está regulamentada somente em portarias do Ministério da Comunicação que foram sucessivamente esticando os prazos para que as empresas se adequassem. O segmento gostaria de ver garantido maior tempo de programação com audiodescrição na TV, além de haver a obrigatoriedade em outros espaços, como o cinema, apresentações teatrais etc. A regulamentação da lei que trata da política nacional do livro continua em negociação, com bastante resistência das editoras. Outro ponto importante é a necessidade de garantir a acessibilidade de bens culturais e destinos turísticos, com investimentos públicos e privados.
7. Transporte (Artigo 9.1 e 9.1a da Convenção da ONU) – Existem segmentos que defendem que a pessoa com deficiência deve ser enquadrada na política de passe livre independentemente de sua renda. Um ponto também polêmico é com relação ao limite da renda per capita para a concessão do benefício. Outra questão levantada é com relação às frotas de ônibus que ainda não estão acessíveis. O segmento entende que a lei vigente deveria prever sanções mais rígidas para a não-adequação da frota.
8. Crimes e Acesso à Justiça (Artigos 2, 5 e 13 da Convenção da ONU) – Quanto aos crimes, se identifica a necessidade de tipificar a não-discriminação, nos termos do conceito trazido pela Convenção da ONU. Além disso, há poucos tipos penais referentes a crimes cometidos contra pessoas com deficiência que devem ser previstos na legislação, incluindo os qualificadores de agravamento de pena. Quanto ao acesso à justiça, não se tem consenso se devem ser criadas varas especializadas para endereçar os direitos das pessoas com deficiência. É preciso pensar nas experiências das demais áreas para avaliar se isto seria o caso. O que falta para garantir o acesso à justiça tem mais fundamento no provimento de recursos de acessibilidade do que na necessidade de um local especializado para cuidar de questões apenas de pessoas com deficiência.
9. Monitoramento da Convenção (Artigo 33 da Convenção da ONU) – A Convenção da ONU prevê a necessidade de que cada Estado Parte tenha um ou mais de um mecanismo independente para promover, proteger e monitorar os seus princípios e direitos, devendo a sociedade civil, por meio de suas organizações representativas, estar envolvida. Qual seria a composição desse mecanismo? O Conade poderia ser considerado como tal? Ou a lei deveria prever outro organismo que tivesse maior autonomia? Estes são alguns dos questionamentos que se faz acerca do tema.
10. Assistência Social – Os critérios para concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) hoje estão baseados na incapacidade laborativa e na renda global da família da pessoa com deficiência. O modelo social da deficiência, na perspectiva dos direitos humanos, considera a deficiência como resultante de aspectos relacionados à interação da pessoa no ambiente onde está inserida. Portanto, é necessário que sejam revistos os critérios para a concessão do benefício. Há sugestão de se fazer analogia com o Estatuto do Idoso que não computa a renda de outro membro da família. Faltam políticas públicas específicas que dêem conta do atendimento às pessoas com deficiência, especialmente as com deficiência intelectual, tais como o exercício de atividades em centros de convivência, oficinas terapêuticas, moradia em casas-lares, residências protegidas e/ou inclusivas.
Criar estatuto ou revisar a legislação?
Durante a realização dos Seminários Regionais, a polêmica sobre a necessidade ou não de se criar um Estatuto da Pessoa com Deficiência voltou à tona. Nesse sentido, existem duas correntes.
Uma defende que não é necessário criar uma norma que tenha o rótulo de estatuto, tendo em vista o fato de se tratar de segmento não-vulnerável, diferentemente dos idosos e as crianças. Da mesma forma, os defensores desta corrente alegam que já existem no ordenamento jurídico dispositivos legais suficientes para dispensar a edição de uma nova lei que, nesse raciocínio, colocaria em xeque direitos já conquistados, dando margem ao debate que poderia ser influenciado por interesses contrários ao segmento.
Outra corrente defende que o estatuto é fundamental, neste formato e com o texto hoje em trâmite no Congresso Nacional, para que se garantam mais vastamente os direitos das pessoas com deficiência, tendo em vista a sua suposta fragilidade nos atuais diplomas legais. Nesta linha, há ainda os que afirmam que o estatuto é necessário, mas com texto alternativo discutido amplamente com participação da sociedade civil, descartando os textos hoje existentes, em face das discrepâncias e exageros neles contidos.
O importante é que a nova legislação, na forma de estatuto ou não, promova e defenda os direitos das pessoas com deficiência e preencha lacunas existentes na legislação atual. E também que não regrida em relação aos direitos já conquistados e tenha por parâmetro as normas contidas na Convenção da ONU.
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Fonte: CONADE Informa – Ano IV – Nº 2