O português José Pacheco termina a palestra deixando a plateia arrebatada. Quase sem palavras, uma das 250 professoras que acompanhou o evento se limita a uma exclamação: “puxa…!”. “Coisa mais linda ouvir este homem”, comenta outra. Alguns presentes se aproximam: “sou sua fã, posso tirar uma foto?”. Ou: “professor, eu não consegui chegar para a palestra, tinha de ficar na escola, mas vim correndo só para pegar seu autógrafo”.
A fala mansa e o gosto por contar estórias ajudam o velhinho estrábico e frágil – como ele mesmo se define – a magnetizar o público. Mas o que embasbaca mesmo é a sua trajetória, marcada pela transformação de uma utopia em realidade. Pacheco é um dos responsáveis pelas mudanças que fizeram da Escola da Ponte referência para pedagogos e professores do mundo todo.
Quando começou a dar aulas no colégio, o estabelecimento funcionava em um velho edifício ao lado de um depósito de lixo. O que era considerado a escória do sistema educacional, os alunos reprovados em outras instituições da rede pública, os que não tinham conserto, os mais violentos eram enviados para lá. A própria professora que o educador substituiu ao chegar ao local fora parar no hospital após ser agredida por um estudante. Para completar o quadro, o prédio estava em ruínas, as janelas tinham os vidros quebrados, já não havia portas, nem mesmo no banheiro.
Não, a Escola da Ponte não fica no Brasil, nem essa história começa no século XXI. O panorama desolador era o de um colégio em Vila das Aves, localidade próxima à cidade do Porto, em um Portugal recém libertado da ditadura salazarista pela Revolução dos Cravos. As mudanças começaram em 1976, quando um pequeno grupo de professores, incluindo Pacheco, decidiu que era hora de dar um jeito no caos. Começaram a estudar alternativas, chamaram os pais para a discussão, valorizaram os alunos, obtiveram do poder público autonomia formal para administrar a instituição.
Quem visita a Escola da Ponte hoje, 34 anos depois, costuma sair transformado. O escritor brasileiro Rubem Alves dedicou a ela uma série de crônicas posteriormente agrupadas no livro A Escola Com Que Sempre Sonhei Sem Imaginar que Pudesse Existir. Mas o que, afinal, tem de tão diferente essa escola? Tudo. Lá, não existem salas de aulas, turmas, séries, períodos, provas, matérias. Os alunos dividem-se em pequenos grupos esparramados em um único salão de estudos para realizar pesquisas. O conteúdo a ser pesquisado é definido com participação dos próprios estudantes. Aqueles que sabem mais ajudam os que sabem menos.
Os professores são como tutores, que estimulam a pesquisa e acompanham o desenvolvimento individual de cada um. Foram criados instrumentos como uma Assembleia, na qual os alunos discutem e deliberam sobre regras da escola, direitos e deveres de cada um, entre outros assuntos. Uma bagunça? Nada disso: “encantei-me vendo o trabalho dos alunos: havia disciplina, concentração, alegria e eficiência”, relatou Rubem Alves em seu livro. Mais do que isso: para espanto dos céticos, nos exames tradicionais, os egressos da ponte se dão melhor do que os das demais escolas.
Por essas e por outras, a Escola da Ponte virou quase um mito, e o mesmo vem ocorrendo com Pacheco, como demonstrou o assédio que sofreu após a palestra de Porto Alegre. “De todos os lugares que eu fui com ele, aqui em Porto Alegre foi o que mais me impressionou (em termos de admiração da plateia). Tem gente que vai a todas as palestras dele. Hoje, tínhamos 250 professores, mas se tivéssemos um auditório de 600 lugares conseguiríamos enchê-lo. E isso está crescendo, porque a primeira reação das pessoas ao escutarem a história da Ponte é pensar: ah, isso é lá em Portugal… Mas quando veem que pode dar certo aqui, se empolgam”, diz Ilaine Melo, da editora SM, organizadora da palestra.
Ciente disso, Pacheco prepara um novo livro, no qual pretende relatar todas as dificuldades e erros cometidos em sua trajetória e na da Escola da Ponte. Tentará, enfim, desmistificar a si próprio e a experiência da Ponte. O que não significa deixar de acreditar nas utopias. Agora, o alvo de Pacheco é o Brasil. Influenciado por Rubem Alves e outros brasileiros que se interessaram pela Escola da Ponte, nos últimos anos o português passou a ser convidado constantemente para palestras no país.
Há três anos, já aposentado em Portugal, deixou a terra de Camões para se mudar definitivamente para Minas Gerais, onde hoje vive com uma brasileira, sua segunda mulher. “Ao contrário de (Pedro Álvares) Cabral, sou um português colonizado pelo Brasil”, costuma dizer. Se a cultura brasileira já chega com força além-mar, vivendo em Belo Horizonte Pacheco pôde exercitar ainda mais suas paixões por prazeres tupiniquins. Hoje, é praticamente um mineiro no seu apreço por uma boa cachaça de alambique ou encantamento pela viola caipira exaltada no programa de TV Sr. Brasil, de Rolando Boldrin.
Quando não está em casa, no entanto, o lar de Pacheco são a Gol e a Tam, ele brinca. Desde que chegou ao país, o educador iniciou uma verdadeira cruzada para levar novas ideias aos diferentes cantos do país. Hoje, ele assessora voluntariamente 32 escolas brasileiras. E está disposto a mais. Na palestra de Porto Alegre, em vez de recorrer ao PowerPoint, Pacheco limitou-se a projetar na parede um documento de Word com seu email. À disposição de quem pedir ajuda. “Até umas 50 escolas, eu consigo acompanhar, porque não sou eu que faço. Apenas acompanho para que não façam as besteiras que eu já fiz. Onde houver três professores dispostos a mudar, uma faculdade disposta a assessorar e uma Secretaria de Educação que acompanhe o projeto e avalie, a gente faz”, convocou, entre uma fungada de gripe e outra.
Recentemente, Pacheco ainda deu início a uma série de consultorias a pequenos e médios municípios. Acompanhado dos também educadores Joe Garcia e Jane Haddad, chega a cada um, visita escolas, bate papo com professores e alunos. Por trás dessa peregrinação, está sempre a certeza de que é possível transformar. Fruto não apenas da experiência na Escola da Ponte, mas de sua própria trajetória pessoal.
Pacheco nasceu em um bairro pobre, que ainda hoje abriga famílias de baixa renda, um lugar cheio de becos e caminhos tortuosos na tortuosa cidade do Porto. Na Rua da Vitória, onde passou a infância, nem a polícia entrava, conta. No colégio onde estudou, Pacheco sofreu todas as chagas pelas quais as crianças passavam naqueles tempos. “Eu tinha um professor que batia, dava bofetada, dava pontapé. Dizem que as pessoas só viram professor por amor ou por vingança. Eu costumo dizer que virei por vingança”, diz Pacheco.
E, para se vingar, ele conta agora com um número cada vez maior de combatentes. Em torno de sua figura, gravitam diferentes movimentos de resistência aos atuais modelos de ensino. Sua casa é uma espécie de quartel general dos transformadores. “Ele mora em um condomínio numa região serrana na saída de Belo Horizonte. É um lugar muito tranquilo, mas vive cheio de gente. É um estado de constante conspiração. A cada dia chegam pessoas novas, ele chama de conspiradores românticos”, relata Garcia. Às vezes os encontros mais informais são regados a vinho; às vezes, Pacheco termina tocando violão, de preferência MPB.
Sabendo desse lado musical, um dos cicerones do educador na palestra de Porto Alegre resolveu tocar-lhe uma canção, no fim do evento. Ao piano, cantou “Céu, Sol, Sul, Terra e Cor”, uma tradicional composição regionalista gaúcha. Com a cabeça debruçada sobre o instrumento, Pacheco fechou os olhos. Parecia descansar da gripe e sonhar. Quem sabe, mais um sonho que consiga transformar em realidade. Que ninguém duvide.
22/5/2010
O jornalista e videomaker Sebastião Ribeiro, que assina esta produção exclusiva para ViaPolítica, é dirigente da Cartola – Agência de Conteúdo.
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O vídeo e a reportagem “Jose Pacheco e a cruzada pela educação” podem ser livremente reproduzidos, na condição de que seja respeitada sua integridade e citados o autor e as fontes.
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Fonte: ViaPolítica/Cartola