Para a pesquisadora Mariângela Graciano, causa fundamental da ausência do direito à educação nos presídios é a marginalização dos presos e do próprio sistema penitenciário
Patrícia Benvenuti – Da reportagem
O preconceito da sociedade e a invisibilidade da realidade carcerária dificultam o acesso à educação dentro das prisões.
A avaliação é da coordenadora do Observatório da Educação da organização não-governamental Ação Educativa e pesquisadora do tema educação em prisões, Mariângela Graciano.
Dados do Ministério da Justiça de 2006 dão conta de que 8% das pessoas encarceradas são analfabetas e 70% não completaram o ensino fundamental. O grande número de detentos com baixa escolaridade, no entanto, contrasta com a baixa participação dos presos em atividades educacionais, apenas 18%.
A fraca inserção do ensino nas prisões, de acordo com a pesquisadora, está relacionada a obstáculos como superlotação das unidades, restrições às aulas impostas pela segurança e dificuldades de conciliação entre horários de trabalho e aulas.
Para Mariângela, no entanto, a causa fundamental ainda é a situação de marginalização dos presos e do próprio sistema penitenciário do país.
“Essa é uma coisa [educação nas prisões] tão invisível que as pessoas nem sabem que deveria ter. E tão invisível que, mesmo que seja boa ou ruim, a gente nem fica sabendo”, afirma.
A gravidade do tema foi apresentado no relatório “Educação nas prisões brasileiras”, divulgado no ano passado pela Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação, vinculada à Plataforma Dhesca Brasil.
O documento, elaborado a partir de visitas a unidades prisionais de vários estados, revela que “a educação para pessoas encarceradas ainda é vista como um ‘privilégio’ pelo sistema prisional”.
Além disso, o estudo apontou que “há um conflito cotidiano entre a garantia do direito à educação e o modelo vigente de prisão, marcado pela superlotação, por violações múltiplas e cotidianas de direitos e pelo superdimensionamento da segurança e de medidas disciplinares”.
Em entrevista ao Brasil de Fato, concedida durante a 6ª Assembleia da Campanha Latinoamericana pelo Direito à Educação (Clade), realizada no início do mês em São Paulo (SP), Mariângela falou sobre as barreiras do acesso à educação nas prisões e a expectativa em relação às Diretrizes Nacionais para Oferta de Educação nos Estabelecimentos Penais.
Brasil de Fato – De maneira geral, qual a situação da educação no sistema prisional hoje?
Maringela Graciano – A situação está bem mal. Até muito recentemente, não havia nenhuma orientação de governo ou norma que dissesse como deveria ser a educação nas prisões. O que tem na Lei de Execução Penal é que a educação é um direito, com algumas restrições. E essa falta de orientação fez com que Estados, que são os órgãos responsáveis pela Execução Penal, organizassem ou não a educação nos presídios como achavam que deveria ser.
De maneira geral, o que a gente percebe é uma grande confusão sobre o que é educação nas prisões. Muitas vezes as pessoas entendem por educação qualquer tipo de curso profissionalizante, curso de artesanato, atividade manual. Tem sido uma confusão muito grande entre educação e trabalho. Mesmo quando se tem educação na forma escolar, em grande parte se resume em preparação para exames e não é integrada ao sistema público de ensino. E isso não acontece em todos os lugares, em grande parte das unidades não acontece nada, tanto que a gente tem um número muito baixo de pessoas que atualmente estudam, mais ou menos de 10 a 15%. E os dados não são muito confiáveis porque a gente não tem garantia de que todas as unidades prisionais enviem dados para o Ministério da Justiça.
Além dessa precarização, a gente tem uma grande tensão entre elementos da pedagogia e da educação e da segurança. É muito comum as pessoas reclamarem que as aulas são constantemente suspensas porque você tem revista das celas ou não tem aula porque uma pessoa da segurança decide que não vai ter aula e não libera os alunos. Ou, então, a unidade coloca atividades de trabalho no mesmo horário das atividades de educação, e as pessoas, obviamente, preferem trabalhar para sustentar suas famílias.
Recentemente, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Nacionais de Educação nas Prisões [Diretrizes Nacionais para Oferta de Educação nos Estabelecimentos Penais]. A gente sabe que, no Brasil, nem sempre as normas se concretizam, mas a sociedade civil que atua neste campo está com muita expectativa em relação a isso. Primeiro porque essas diretrizes colocam a responsabilidade sobre as secretarias de educação e vinculam a educação nas prisões ao sistema público de ensino. Isso significa que vai ter financiamento, coisa que não havia, via Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], material didático e, finalmente, professores habilitados atuando nas prisões. Claro, tem que conseguir superar o problema da falta de infraestrutura, porque algumas unidades têm salas que podem ser utilizadas como salas de aula e outras não, por causa da superlotação. Em todo o caso, a gente avalia que a aprovação das Diretrizes é fundamental para finalmente começar a se pensar o que é educação nas prisões.
O Pronasci [Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania] tinha como um de seus objetivos garantir o acesso à educação nas prisões. Como estão se desenvolvendo as iniciativas propostas?
No âmbito do Pronasci tinha algo sobre a remissão da pena pelo estudo, que não foi aprovado ainda, e também o ProJovem Prisional [que possibilitará a conclusão do ensino fundamental para detentos na faixa etária de 18 a 29 anos]. Agora o ProJovem prisional, que é um programa do governo federal que combina elementos de elevação de escolarização, de profissionalização e de participação comunitária, está sendo utilizado como um projeto-piloto e sendo executado em apenas três estados, Acre, Pará e Rio de Janeiro. Enfim, não é universal, não é para todas as unidades.
Há algum estado que esteja mais avançado em relação ao acesso à educação?
Tem algumas experiências interessantes. No Paraná, por exemplo, a educação é vinculada à Secretaria Estadual da Educação, e lá os professores que atuam nas prisões recebem 40% a mais, já é um estímulo. Por esse lado, de alguma forma, ele [Estado] conseguiu mecanismos de estruturar, de organizar. Mas a gente encontra uma situação bizarra, os alunos são separados do professor por uma grade. Por um lado, avançou, mas por outro lado não conseguiu superar elementos de preconceito.
Quais são as principais dificuldades para efetivar o direito à educação nas prisões e como difundir essas informações aos presos?
Esse é um ponto, a informação. Não se tem segurança de que as pessoas que estão presas sabem que elas têm direito à escola. A gente acha que não. Tem um número muito reduzido de pessoas estudando, e esse é outro avanço das Diretrizes, que propõem o que se chama de chamada pública, para que todas as pessoas que estão encarceradas possam se matricular, que é dever do Estado. Mas a gente tem um longo caminho a percorrer.
Por exemplo, dentro das unidades é muito comum você encontrar uma situação de tensão entre os funcionários e a organização de atividades que os funcionários consideram privilégios para os presos. De fato isso acontece porque esses funcionários são pessoas muito pobres, que vivem uma vida muito dura, insalubre, sem nenhum apoio psicológico e, muitas vezes, também não tiveram acesso à educação. Então eles se sentem quase que traídos: por que eles, que não cometeram falhas ou que não foram condenados por nenhum tipo de crime, não têm direito, e quem está lá dentro [das prisões] têm? Por isso que qualquer programa, projeto ou ação que se desenvolva dentro das unidades têm que envolver também os funcionários, eles também têm que ter acesso.
A gente tem uma dificuldade também, que não é só com a educação, mas com a prisão de uma maneira geral, que é o consenso social do que deve estar na prisão. Tem que olhar o mínimo que tem aqui fora, o mais precarizado, piorar um pouquinho e mandar lá pra dentro. É assim com tudo, com alimentação, com saúde e com educação. Por isso que, quando se fala em educação nas prisões, vale qualquer coisa, ter aula com quem não é professor, vale não ter material didático. Esse é um tipo de preconceito.
Acho também que temos uma tarefa de sensibilizar a sociedade em geral para os direitos da população carcerária, com a educação especificamente. A gente vive uma situação meio esdrúxula, de que a prisão não serve para nada. É quase um depósito de seres humanos, simplesmente para tirar de circulação. E se a gente pensa em uma execução de pena que realmente seja para reabilitar as pessoas, a educação tem um papel fundamental. Não por que vá conseguir um emprego melhor, mas porque é uma forma de você acessar outros direitos. Quando você estuda, consegue com mais facilidade reivindicar outros direitos. E, segundo, porque ela [educação] tem uma dimensão humana. As pessoas, quando estudam, aprendem, produzem conhecimento e desenvolvem a capacidade de sonhar, de ter outro futuro. É disso que as pessoas que estão lá dentro precisam.
Como superar, então, essa lógica profissionalizante em direção a uma educação mais integral?
As organizações da sociedade civil vêm afirmando que a gente devia se segurar no paradigma da educação como um direito humano. É claro que o ensino profissionalizante é muito importante, as pessoas querem e têm essa expectativa, mas não é só. O que é absolutamente possível, e o ProJovem mostra isso, é que a gente pode pensar em um tipo de educação que envolva elementos de elevação de escolaridade e de profissionalização, mas também elementos de participação e preparação para a vida cidadã. É perfeitamente possível.
Quais os principais desafios, por parte da sociedade civil e do poder público, para implantar a educação nas prisões de forma efetiva?
Por parte da sociedade civil, é preciso admitir que existem pessoas presas, porque é um mundo invisível, a gente faz de conta que não tem. Tem que admitir, e aí tem que fazer circular a informação de quem são essas pessoas que estão presas. São pessoas muito pobres, com baixíssima escolaridade, que não tiveram ferramentas para fazer opções aqui fora. Talvez a gente pudesse trabalhar com essa ideia de que, se você oferece educação e trabalho, está oferecendo opções para a pessoa organizar a sua vida.
No campo das políticas públicas, é urgente que as Diretrizes passem a valer, e é urgente que, em cada Estado, as organizações da sociedade civil se mobilizem para isso. É um documento muito importante, que traz alguns avanços, mas nada vai acontecer se não tiver uma pressão nos governos dos estados para ser obedecido. A gente sabe que é muito difícil porque os estados têm autonomia e, muitas vezes, os estados não acatam o que é solicitado, indicado ou dirigido pelo governo nacional. Então o papel da sociedade civil é fazer essa pressão local para que as Diretrizes sejam cumpridas, e aí envolve sensibilizar secretarias estaduais de educação para a necessidade de pensar uma educação que respeite as diferenças. Os presos estão em uma situação especial, tem que ser uma educação que respeite essas necessidades.
E a gente tem que pensar em professores habilitados. Quando tiver concursos, tem que prever pessoas para dar aula lá, fazer um trabalho grande junto aos sindicatos para que eles sensibilizem os professores sobre a importância de se dispor a ir trabalhar lá. A gente tem um grande caminho também junto aos meios de comunicação, para que quando apareçam informações sobre prisões, as poucas informações que aparecem, que seja dado um destaque para educação. Essa é uma coisa tão invisível que as pessoas nem sabem que deveria ter. É tão invisível que, mesmo que seja boa ou ruim, a gente nem fica sabendo. Não tem nenhum tipo de controle social sobre o que acontece lá, e isso é muito ruim.
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Fonte: Agência Brasil de Fato