Um modelo que parece inaplicável funciona há 34 anos na pequena Vila das Aves, a 40 quilômetros da cidade portuguesa do Porto. Lá está instada a Escola da Ponte, uma instituição pública com todas as etapas da educação básica onde não há divisão por séries, nem professores de uma determinada disciplina. Os alunos decidem por quais áreas se interessam e desenvolvem projetos de pesquisa. Eles votam regras de convivência, seguidas inclusive por professores e pai.
“Se o aluno vê no professor autonomia e responsabilidade, ele aprende autonomia e responsabilidade. Se vê uma pessoa capaz de construir projetos, ele aprende a construir projetos”, avalia o idealizador da Escola da Ponte, José Pacheco, que dirigiu a instituição pública desde sua criação, em 1976 até 2008. Ele participou da 8ª Conferência Internacional de Avaliação na Educação, realizada entre 12 e 14 de julho, em São Paulo (SP).
Em entrevista ao Portal Aprendiz, José Pacheco fala das bases da Escola da Ponte, defende o uso de tecnologia e avalia o papel do professor na formação. “Ele deve ajudar os alunos a fazer um planejamento, porque senão o aluno nunca vai aprender a planejar”.
Portal Aprendiz – O que motivou a criação da Escola da Ponte?
José Pacheco – Tentar ser feliz. Para isso, crianças não podem que fazer aquilo que não entendem ou que são forçadas. Fui para o magistério por vingança porque nasci em uma favela, fui excluído e marginalizado, sofri muito quando jovem e jurei que nunca nenhum aluno meu reprovaria ou passaria por aquilo que eu passei. Pensei que ou conseguiria dar resposta a cada um ou deixaria de ser professor.
Aprendiz – Qual o perfil do aluno da Escola da Ponte?
Pacheco – É aluno de formação integral. Ele consegue partir de questionamentos e pensar em ideias, construir projetos e preparar planejamentos. Faz pesquisa, partilha informação em grupo, sabe fazer auto-avaliação e sabe pensar sobre o pensar.
Aprendiz – E como são os professores?
Pacheco – A mesma coisa. Há um principio na formação que se chama Isomorfismo. O modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina. Ele é um protótipo do aluno. Se o aluno vê no professor atitudes de autonomia e responsabilidade, ele aprende autonomia e responsabilidade; se vê no professor uma pessoa capaz de construir projetos, ele aprende a construir projetos.
Aprendiz – O que um aluno da escola da Ponte pode levar para a sociedade diferente do aluno de uma escola convencional?
Pacheco – Temos ex-alunos já com 50 anos de idade e há estudos para avaliar as histórias de vida deles. À vista desarmada, eles não diferem dos outros. Mas participam muito em termos sociais, têm grande senso de solidariedade, se envolvem em programas e em política e mantêm uma ligação forte com a escola e com o seu tutor, mesmo 30 anos depois. Eu sou muito professor coruja, só falo do bem e não do lado errado.
Aprendiz – E qual o lado errado da Escola da Ponte?
Pacheco – Tem por trás uma história de muito sofrimento. Uma dor oriunda da transformação, da re-elaboração da cultura pessoal, que não é fácil. E também a dor de viver com os outros, que significa viver em conflito permanente. Outras questões têm a ver com política educativa. Nós sofremos muitos ataques de políticos e de Ministérios. Mas isto foi um sofrimento inerente a qualquer mudança. Tudo o que é diferente perturba.
Aprendiz – Como é o dia-a-dia da escola?
Pacheco – É impossível explicar. Cada criança tem seu percurso diário, não há duas com o mesmo planejamento nem com o mesmo projeto. Cada um tem seu caminho subjetivo. Para auxiliá-las realizamos comissões de ajuda, assembleias semanais, uma caixa dos segredos e lugares para dizer o que já sei e no que preciso de ajuda.
Aprendiz – Além de definir as atividades, os alunos podem eleger normas de funcionamento da escola?
Pacheco – Sim, são eles que definem. Por isso que nós acolhemos jovens jogados fora por outras escolas, que são expulsos por bater em professores. Eles se dão muito bem na Escola da Ponte, porque não há castigos nem punições. Eles fazem as regras e as respeitam.
Aprendiz – O que é mais relevante entre esses direitos e deveres estipulados pelos alunos?
Pacheco – Para mim é o fato dos deveres não começarem com a palavra ‘não’. Nas escolas convencionais ‘não pode correr’, ‘não pode falar’ e na minha escola pode.
Aprendiz – Na Ponte os alunos fazem pesquisa. A escola suprimiu instrução?
Pacheco – De modo algum. O professor é necessário tanto na Escola da Ponte quanto em um modelo tradicional. Ele só não pode ser papagaio e dizer aquilo que está nos livros e que os alunos poderiam ler sozinhos. Na minha escola o professor tem outras funções. Ele não prepara um projeto para os alunos, mas os ajuda a elaborar projetos, ele não transmite conteúdo, mas ensina o aluno a pesquisar a informação e a partilhá-la. Ele deve ajudar os alunos a fazer um planejamento, porque se o professor faz para o aluno ele nunca vai aprender a planejar.
Aprendiz – Os alunos encontram dificuldade de estudarem em outras escolas?
Pacheco – Alguns dos estudos acompanham os jovens que foram para outras escolas. Eles tiveram, sim, alguns problemas, mas não tanto quanto eu imaginava. Educamos para as duas realidades. Preparar os alunos pra a autonomia, para aprender a fazer projetos, mas também para seguir projetos dos outros. Eles aprendem a gerir seu tempo, mas também devem saber andar a toque de sineta em outras escolas, aprendem a fazer planejamento, mas têm que respeitar o planejamento dos outros, aprendem a ajudar, mas têm que respeitar um lugar onde se trabalha cada um por si.
Aprendiz – Qual a relação da comunidade com a escola?
Pacheco – Há duas comunidades. Uma que está com a Ponte, que é bem maior, e outra que está agarrada a vícios sociais e a coronelismos locais. E quando a segunda observa que nós fazemos diferente e que nossos resultados são os melhores, ela se fecha em suas conchas, porque nós perturbamos. Existem mais escolas que trabalham no método tradicional, aquele modelo epistemológico que faliu, e nós respeitamos.
Aprendiz – Quais são esses resultados em que a Escola da Ponte tanto se destaca?
Pacheco – São as provas nacionais, as provas de nono ano e os processos seletivos de universidades. Quando há visibilidade social, nossos alunos manifestam resultados melhores tanto na aprendizagem quanto nas atitudes. Mas eu não quero saber nada de provas e dos critérios que utilizam para comparar escolas. Cada criança é única e ela não pode ser comparada com ninguém, que dirá uma comparação entre escolas. Mas as pessoas pensam que as provas que valem são aquelas de matemática e de português e nossos alunos são muito bons nisso também. Também! Porque o mais importante são os aprendizados no caminho da cidadania e uma educação moral, coisas que ninguém avalia.
Aprendiz – Como a Escola da Ponte dialoga com as novas tecnologias?
Pacheco – Não estamos ficando ultrapassados, nem fazendo dos alunos bichinhos de computador que não enxergam quem está ao lado. Mas o computador, por exemplo, não pode ser só para colher informações da Internet ou fazer um PowerPoint. Ele é para produzir, para criar. Temos aparelhos espalhados por todas as escolas e o aluno usa quando quer. Não se pode pensar em uma escola sem as novas tecnologias, mas é preciso ter cuidado com elas.
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Fonte: Envolverde/Aprendiz