Por Lak Lobato
Você faz compras com cartão de crédito em algum site supostamente seguro. Dias depois, tenta usar o cartão novamente numa loja e ele é negado. Você sabe que está dentro do limite, mas acha que é problema na máquina, suspira e tenta outro cartão. No dia seguinte, tenta usar o cartão novamente e outra vez, o crédito é negado. Percebe que tem algo errado e faz o que? Liga para a operadora de crédito. Descobre que seu cartão foi clonado, porque acusa várias compras que você não fez.
Ou então, decide cancelar o cartão de crédito por algum motivo e telefona para a operadora.
Parece simples para você?
Pois para nós, deficientes auditivos que não conseguem discriminar a fala auditivamente o suficiente para utilizar o telefone ou aqueles que tem deficiências na fala que os impede de se comunicar por esse aparelho, é a tarefa mais difícil de todas.
Tudo porque a ANATEL, seguindo interesses de uma única empresa que vende o telefone especial para surdos, conhecido por TDD ou TS colocou à disposição dos deficientes auditivos e de fala um serviço 0800 através desse aparelho. Só que, apesar de todas as empresas (que oferecem o 0800 especial) terem adquirido o aparelho, o consumidor comum não comprou e a maioria esmagadora dos deficientes auditivos e de fala não tem TDD em casa.
O TDD é um telefone especial que dispõe de um teclado, um visor e um espaço para acoplar o gancho do telefone comum. Ele se comunica somente com outro aparelho igual. Custa o equivalente a um notebook e tem apenas a função de ligar para outro aparelho de TDD.
Os consumidores preferem usar outras alternativas para se comunicar com o mundo: SMS de celulares, videochamada (em celular e notebook), email e chat. Todos esses serviços nos são acessíveis e usam tecnologia que já temos, sem gastos extras.
Mesmo assim, os bancos e empresas só aceitam que usemos o serviço 0800 especial. Com um detalhe, existe serviços disponíveis pelo telefone comum que não estão disponíveis no 0800 especial. Posso contar um caso meu: estive no banco para alterar a data de vencimento do meu cartão de crédito, que não poderia ser feito pela internet, e a gerente, ao saber que eu era surda oralizada, quis mostrar serviço e me empurrou para o TDD disponível na agência. Eu nunca tinha sequer visto um TDD ao vivo, não sabia usá-lo, já que tampouco funciona como um teclado comum, é preciso seguir uma “regra de conduta” escrevendo um código antes de começar e ao terminar a frase. Levei um tempo para aprender a usar e, no final, a moça que me atendia pelo TDD me mandou entrar em contato com o gerente, porque aquele serviço não era realizado pelo 0800 especial. Detalhe: eu estava na agencia, procurei o gerente e ele me encaminhou a esse serviço. Virou um empurra-empurra porque ninguém quer ter obrigação de resolver os problemas de um deficiente auditivo. No fim, fechei a conta pelo péssimo serviço que estava recebendo.
A alternativa que nos sobra é cometer fraude: pedir para alguém se passar por nós. Mas isso significa, além de um crime, fornecer todos os nossos dados exigidos pela operadora – leia-se número de documentos, senha, número de cartões bancários/crédito – para uma terceira pessoa. Será que todo deficiente auditivo/de fala tem alguém de verdadeira confiança para isso?
E ainda, muitas vezes, essa “alternativa” é proposta pelos próprios funcionários das empresas e bancos. Apenas dizem: “Manda alguém, do mesmo sexo, se passar por você.”. Como se fosse facílimo confiar nossos dados a uma terceira pessoa!
Afinal, quem tem tempo hábil, hoje em dia para resolver todos os problemas em agência? E, pior ainda, chegar na agência e o gerente te mandar resolver tal coisa pelo tal 0800 especial que exige um aparelho que ninguém tem. Já aconteceu até de um funcionário que atendia meu marido para resolver um problema meu – depois de muito explicar que eu era deficiente auditiva – me mandar sair de casa e procurar um TDD publico para resolver tal problema (que ele poderia resolver em questão de segundos através daquela ligação). Isso porque nem todos os lugares públicos tem TDD disponíveis e os que tem, muitas vezes estão quebrados pelos vândalos que adoram depredar propriedades públicas. A solução, como sempre, é pedir pra minha mãe se passar por mim e resolver a pendência pelo serviço de telefone comum. Em suma, voltamos à alternativa da fraude.
Esse tipo de coisa poderia ser facilmente resolvida se nossos gerentes aceitassem resolver nossos problemas por email. Ou se os bancos dispusessem de chats. Ou se pudéssemos usar SMS ou até serviços de videochamada feito diretamente do nosso computador, usando algum programa tipo Skype, baixado gratuitamente.
Tantas alternativas baratas, acessíveis e viáveis e a única opção de “acessibilidade” aos deficientes auditivos e de fala, para acesso remoto às suas contas ou a serviços de SAC de lojas e empresas é justamente através de um telefone que ninguém tem. Isso é realmente acessibilidade?
Por quê o serviço especial 0800 não funciona? Imagine-o sendo usado em casos de:
- assalto
- sequestro
- problemas em viagem ao exterior
- surdo oralizado (ou sinalizado) que não possui telefone TDD
- cartão clonado
- cartão extraviado
- surdo oralizado (ou sinalizado) que trabalha em local sem TDD
- qualquer eventualidade que ocorra em local sem TDD
- solicitações que as atendentes do TDD não consigam resolver
Para mim, a proposta da acessibilidade é facilitar a nossa vida, não complicá-la. Dar-nos acesso ao que precisamos da maneira que nos está disponível. Não inventar mais um gasto através de uma tecnologia ultrapassada e caríssima!
Precisamos reverter esse quadro!
O que é acessibilidade para deficientes auditivos e de fala?
- gerente capacitado para atender um surdo oralizado*
- atendimento por email
- atendimento por SMS
- cadastramento de 1 ou 2 pessoas de confiança, mediante documentação registrada em cartório, para que elas possam falar por nós no 0800 em casos de extrema emergência
- cadastro da informação de que somos deficientes auditivos (especificando qual o tipo de surdez: surdo oralizado ou sinalizado) nas informações da minha conta, para que eu não precise contar minha vida inteira de novo a cada troca de gerente
- chat disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana, no site dos bancos, com funcionário capacitado a resolver problemas para clientes cadastrados como surdos oralizados
Para fazer essa informação chegar às autoridades, eu e dois amigos (Paula Pfeifer, do blog Crônicas da Surdez e Raul Sinedido, também surdo oralizado) tivemos a idéia de fazer um “panelaço no twitter”, pedindo para as pessoas postarem as hashtags: #acessibilidade e #SurdosOralizados o máximo possível dia 20 de setembro de 2011, à partir das 15h30.
Claro que é preciso fazer muitas coisas fora da internet também, mas fazer um barulho virtual ajuda bastante. Você participa conosco?
Beijinhos,
Lak
P.S. *O preparo de atendimento ao deficiente auditivo deve ensiná-los que existem dois tipos de surdos: os que se comunicam em português oral e os que se comunicam por língua de sinais. Para os surdos oralizados, basta ensiná-los a falar sempre de frente para nós e articulando naturalmente (a velocidade da fala varia conforme a compreensão do surdo oralizado então basta falar naturalmente e, em caso de ser necessário diminuir a velocidade, o próprio surdo oralizado avisa) e ter boa vontade para entender alguém com sotaque diferente do comum. Em ultimo caso, apela-se para papel e caneta. Já para surdos sinalizados, é preciso um intérprete de Líbras nas agências para atuar junto com o gerente.
Fonte: http://www.acessibilidadetotal.com.br/acessibilidade-irreal/