Crack: por uma política mais humana

Cachimbo de fumar crack

Por Pedro Vicente Bittencourt
na Democracia Viva

Hoje em dia, quando se fala em drogas no Brasil, uma onomatopeia nos vem à cabeça: crack. Poderia ser crack!, com um ponto de exclamação. Tudo para dar o toque de urgência que acompanha qualquer discussão, pública ou não, sobre o tema. Pela frequência com que esse psicoativo aparece nas manchetes de jornais, matérias televisivas e debates acalorados entre membros do governo e profissionais de variadas formações, era de se esperar que o conhecimento sobre esse derivado da cocaína fosse mais difundido. Ledo engano: o desconhecimento é generalizado.

Como surgiu o crack? De onde vem? Como funciona no organismo? Por que, de uma hora para outra, se alastrou com tanta velocidade pelo Brasil, inclusive em cidades do interior? E, a pergunta de um milhão de reais: como fazer para que a droga deixe de cobrar o alto preço em vidas, atualmente a sua marca trágica?

Se todas essas respostas estivessem dando sopa por aí, provavelmente sequer estaríamos falando do assunto. Já que aqui estamos, vamos ver até onde chegamos com essas perguntas. Afinal, o método socrático sempre trouxe bons resultados na produção de conhecimento.

*Perguntas e respostas*

Uma das consequências não intencionais (embora óbvia) da guerra às drogas e, especificamente, da criminalização delas é que toda e qualquer atividade que as envolve ocorrerá ao resguardo dos olhares públicos. Ninguém vai arriscar pagar as duras penas que a lei impõe por “trazer consigo” essas substâncias. Assim, fica difícil conhecer a história das drogas ilegais, incluído aí o crack.

É certo que ocorreram nos Estados Unidos os primeiros registros da nova droga. O nome crack é uma referência ao som das pedras estalando ao queimarem em cachimbos. Uma onomatopeia. O relato mais sensato e verossímil é que, durante os anos 1980, a política de interdição aos entorpecentes nos EUA teve como resultado o aumento do preço da cocaína nas ruas. Buscava-se, mediante a escassez da oferta, tornar o preço dos psicoativos ilícitos alto demais e, assim, diminuir seu consumo. Resultado: o sempre ágil mercado do ilícito teve de recorrer à criatividade para manter nas ruas um produto “bom” e barato. Com as tradicionais armas do capitalismo e do mercado, o crack se tornou um rotundo sucesso. Para desespero da sociedade.

A cocaína chama-se, em termos técnicos, cloridrato de cocaína, um alcaloide, um sal, que requer para a sua produção uma variedade de outras substâncias químicas, algumas caras e raras, portanto relativamente fáceis de controlar, e outras tão simples e baratas quanto a gasolina, cal e solventes. Com esses produtos, extrai-se da inofensiva folha da coca o princípio ativo psicotrópico. O custo de tal produção é alto, não apenas pelo preço dos insumos necessários ao processamento, mas também porque muitos deles são inflamáveis, o que amiúde provoca acidentes e prejuízos. Em vez de seguir toda a cadeia de reações até chegar ao cloridrato de cocaína, porque não parar no meio do caminho, quando já houver uma boa concentração do principio ativo da droga?

O crack é justamente o resultado dessa filosofia de mercado: um produto mais barato, que pode ser produzido em cozinhas domésticas, a partir da pasta base, que nada mais é do que o entorpecente ainda em estado bruto e mais propício para o transporte em grandes quantidades. Qual a diferença mais importante entre o crack e a cocaína? Em vez de ser aspirado, o crack é fumado. Isso causa uma diferença essencial na forma com que a droga age em nosso organismo.

Aspirada, a cocaína percorre o nosso corpo de maneira difusa. Apenas parte da substância vai para o cérebro, onde começa a fazer efeito. Na prática, isso significa que o efeito da droga leva mais tempo para começar, demora mais para terminar e é mais ameno. Se a mesma dose do princípio ativo for consumida na forma de crack, o percurso no organismo será outro. Ao ser fumada, a droga entra pelo pulmão, um órgão muito vascularizado e com grande superfície de contato. De uma só vez, uma quantidade enorme entra na corrente sanguínea. Do pulmão, a substância será bombeada diretamente para o cérebro. O efeito começará mais rapidamente, durará menos tempo e será mais intenso. Por isso que acredita-se que o crack é tão viciante.

Essas informações ajudam a compreender um pouco melhor o crack. Contudo, não é a existência em si da droga que causa danos, mas o seu uso. Mais especificamente, o seu uso e as suas consequências. A diferença não é trivial, porque define, em última instância, a forma de lidar com o problema.

*Políticas para o crack*

Desde 2010, o governo federal divisou dois projetos voltados para lidar com as drogas em geral e com o crack, em particular. Encomendou-se à Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, um mapeamento das “cenas de uso de crack”. Especificamente no município do Rio de Janeiro, o secretário de Assistência Social, depois de ocupar a Secretaria de Ordem Pública e lá desenvolver as operações Choque de Ordem, parece ter importado de uma pasta para a outra a mesma filosofia de ataque aos problemas.

Eis que agora a população carioca convive com o novo termo “acolhimento compulsório”. Custa-nos compreendê-lo, pois nunca foi devidamente esclarecido. Note- se que o acolhimento compulsório refere-se apenas aos casos com menores de idade, pois, afirmam as autoridades, pode-se inferir que, já que esses meninos e meninas estão nas ruas fumando crack, a família não cuida deles. No caso de maiores de idade, é mais difícil restringir o direito constitucional de ir e vir de uma pessoa em pleno gozo dos seus direitos civis.

No dia 11 de abril de 2012, o jornal O Globo publicou uma grande matéria sobre o crack. O jornal pediu à Secretaria Municipal de Assistência Social que fizesse um “mapeamento informal” do problema. A expressão incomoda. Informalmente, o jornal informa haver cerca de 3.000 usuários e usuárias circulando pelas chamadas “cracolândias”, dos quais 20% seriam menores de idade. A objetividade desses dados é altamente questionável, mas vamos lá.

Segundo o jornal, seria o caso dizer que, no município do Rio de Janeiro, 20% das pessoas que usam crack poderiam ser incluídas na política de acolhimento compulsório. Uma vez “acolhidos”, os menores seriam encaminhados a abrigos e centros de tratamento. À primeira vista, pode parecer uma solução interessante, mas será mesmo assim? O objetivo da política é resolver o problema do uso abusivo de uma substância psicoativa, ou apenas retirar das ruas quem traz consigo chagas da miséria, das quais o consumo de crack é apenas mais uma?

Se o objetivo for o primeiro, e esperemos que assim seja, parece boa ideia compreender as causas que levaram cidadãos e cidadãs brasileiros a dedicar parcela tão significativa de suas energias para alimentar a adição. Terá o consumo do crack competido com quais outras alternativas de engajamento social? Houve escolha possível entre esporte, cultura, educação, família acolhedora, de um lado, e o crack e o mercado ilícito, de outro?

A rigor, faltam ainda estudos para poder ser taxativo ao responder as perguntas acima. Há, contudo, alguns indícios do que anda ocorrendo. Em dezembro de 2009, a Secretaria Municipal de Assistência Social inaugurou um programa piloto chamado Embaixada da Liberdade, em Manguinhos. Tratava-se de um espaço de acolhimento de jovens de até 17 anos e 11 meses, no qual, se ofereciam dormitórios, alimentação e atividades lúdicas e culturais, para atrair a população mais vulnerável ao crack. Em parceria com os serviços locais de saúde, acompanhava-se o tratamento dos usuários e o reingresso na escola ou no trabalho. A casa vivia cheia, beirando o limite de sua capacidade. Desde o final de 2010, a Embaixada não funciona mais.

*Imbróglio*

Hoje, se observa na política da cidade do Rio de Janeiro com relação às drogas duas tendências. Em primeiro lugar, o impulso às já famosas UPPs. Em segundo lugar, as rondas da Secretaria Municipal de Assistência Social, que gerencia o tal acolhimento compulsório.

Sobre o primeiro caso, pragmaticamente, nos resta pressionar o governo e torcer pelo melhor. Essa política não deve ser revertida. Ela traz valorização dos imóveis no entorno das UPPs, contribui para a imagem de um Rio de Janeiro calmo e pacífico, além de ter reduzido, de fato, os índices de criminalidade violenta nas comunidades pacificadas. Isso não quer dizer que a Polícia Militar do Rio esteja isenta de críticas ou que o governo do Estado não deva ser impelido a levar a cidadania plena às áreas antes dominadas pelas armas do tráfico e pelo tráfico de armas. Críticas à ausência das secretarias de Esporte e Lazer, de projetos de educação e capacitação profissional e de maior articulação com a sociedade civil são pertinentes e necessárias. Devemos consertar o que já foi feito. Trocar o pneu com o carro em movimento.

Já no que se refere à atenção ao crack e, mais especificamente, a quem o consome, é preciso, sim, questionar o que os governos federal, estaduais e as prefeituras estão pensando para a solução desse imbróglio. Talvez seja uma boa ideia buscar o que tem sido feito em outras cidades mundo afora. Se tivermos de passar por experiências mal-sucedidas, uma por uma, até encontrar aquela que satisfaça as demandas de uma sociedade democrática, alguém vai pagar um alto preço por isso. E não serão os políticos.

*Outros países*

Portugal descriminalizou todas as drogas em 2001. Já há dados que corroboram a tese de que a mudança de foco para uma abordagem concentrada na saúde foi um sucesso estrondoso, desde a redução do consumo, inclusive entre jovens, até o desafogamento do Judiciário e do sistema carcerário. Experiências mais ousadas, como a implementação de salas de consumo seguro na Suíça e no Canadá, são exemplos promissores, embora não tenham, ainda, o escopo necessário para impactar as estatísticas dos seus países.

Apesar desses exemplos, os indícios no Brasil não são encorajadores. Na esfera federal, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) foi transferida do Gabinete de Segurança Institucional, comandado por militares, para o Ministério da Justiça. É um passo na direção certa, embora ainda não suficiente para quem compreende o tema como multidisciplinar, portanto, mais apropriado para as pastas de Saúde e Desenvolvimento Social.

A demissão relâmpago de Pedro Abramovay, em janeiro de 2011, do governo federal, justamente quando ia liderar a Senad, depois de entrevista na qual sinalizou um caminho mais progressista para a política nacional de drogas, foi um gesto contraditório. Houve progresso, pero no mucho…

*E as outras drogas?*

Por fim, uma última questão é importante para nos aproximarmos de um sistema que dê atenção aos usuários e usuárias de drogas de forma mais humana e eficaz. Será mesmo que o crack deve ser o foco dos esforços do governo, centro da política pública no trato com as drogas? Ou será ele apenas mais uma das substâncias sobre as quais se deve trabalhar? Segundo dados do Sistema Único de Saúde, o SUS, o álcool é a droga que mais danos causa a nossa saúde. Proibi-lo não faz sentido ou não teria resultado, mas por que não se concebe um plano nacional para a consciência sobre o álcool?

Fazendo uma análise fria dos dados, a atenção quase exclusiva dedicada ao crack definitivamente não se justifica. O sistema de saúde precisa, sim, preparar-se melhor para acolher quem usa drogas. O problema não será resolvido por completo sem mudanças na legislação vigente e, principalmente, sem outro paradigma de políticas públicas para lidar com o problema. Esse deve ser o foco principal dos futuros debates.

Fonte: Ibase

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *