Por Alfredo Durães
no Estado de Minas
Cientistas da USP São Carlos, em parceria com universidade norte-americana, se debruçam sobre a combinação entre neurônios, chips e próteses para beneficiar, no futuro, pessoas com deficiências auditivas e de mobilidade.
Na letra da música Índios, feita há quase 30 anos, o cantor e compositor Renato Russo, da banda Legião Urbana, tascou a frase: “E o futuro não é mais como era antigamente”. Descontadas as décadas de uso, ela continua em pleno uso e o futuro vai cumprindo, fielmente, aquilo a que sempre se propôs, ou seja, ser incerto. Faz parte de sua natureza. No entanto, a força brutal da tecnologia, que se impõe cada vez mais no presente, demonstra que o amanhã se torna, a cada dia, muito mais imprevisível. Bem mais do que imaginou (ou desconstruiu) o cantor. No campo da tecnologia, não é mais possível fazer previsões mais ou menos aproximadas. Para ficar com um exemplo simples, basta lembrar o uso popular (ou até mesmo a existência) de telefones celulares, smartphones ou iPads, algo absolutamente impensável há poucas décadas. Esses aparelhos estariam muito mais para a ficção científica e o desenho animado dos Jetsons que para a realidade palpável.
Nessa seara, devemos incluir a medicina aliada com a tecnologia, que dá passos no sentido de criar pequenas máquinas acopladas ao corpo humano. O que também não seria nenhuma novidade se levarmos em conta a existência de aparelhos para combater a surdez ou o bom e velho marcapasso, ambos já com anos de estrada. No entanto, o desafio atual são os chamados impulsos cerebrais aliados a chips, que estão sendo estudados de forma a se tornar aliados no combate a vários males físicos ou de mobilidade. Aparelhos que, por exemplo, ajudariam um tetraplégico a andar, a partir da combinação de funções entre neurônios, chips e próteses robóticas.
Não é possível dizer que essa espécie de, diríamos, “parte homem, parte robô” será uma realidade num futuro próximo. Como também é impossível dizer que não será. Nesse caminho, pesquisadores do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, estão tentando desenvolver chips implantáveis (com cerca de um centímetro quadrado), que permitam a substituição (ou interação) de partes do corpo por equipamentos eletrônicos com o uso de carbeto de silício (3C-SiC), material que não provoca reações adversas no organismo.
O estudo “Projeto e fabricação de chips implantáveis utilizando materiais biocompatíveis para interfaces cibernéticas avançadas” é do ICMC junto com a Universidade do Sul da Flórida (USF), nos Estados Unidos, visando ao intercâmbio de cientistas e alunos de graduação na área de biocibernética. Ele é aprovado pelo programa Ciência sem fronteiras, do governo federal, na categoria visitante especial. As interfaces cérebro-máquina já auxiliam a vida de milhares de deficientes físicos em todo o mundo. Segundo um dos autores do projeto, o professor do ICMC Mario Gazziro, “na prática, implantes cocleares (auditivos) são usados por cerca de 120 mil pessoas no mundo, além de 80 mil usuários dos implantes conhecidos como “estimulação profunda do cérebro”, para auxiliar no tratamento do mal de Parkinson e dores crônicas”.
Mas, o que é mesmo essa tecnologia e como funciona no corpo humano? De acordo com Gazziro, embora interfaces cérebro-máquina já sejam utilizadas em diversas áreas da medicina de reabilitação e tratamento, não existe uma solução prática para realização das interfaces com o córtex-motor. “Mesmo que diversos cientistas no mundo tenham provado que isso é possível — incluindo o cientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor titular do Departamento de Neurobiologia e codiretor do Centro de Neuroengenharia da Duke University (EUA) — e, a partir daí, controlar próteses robóticas, todos enfrentam o problema de biocompatibilidade a longo prazo dos eletrodos (que são os dispositivos que entram em contato com os neurônios), além de todos usarem fios na interface”, acresenta Gazziro.
CARBETO DE SILÍCIO Segundo ele, a proposta desenvolvida na USP São Carlos usa eletrodos de carbeto de silício — pois os eletrodos tradicionais são feitos de silício, que param de funcionar com o tempo — e uma tecnologia de transmissão de rádio. Gazziro pontua ainda que os dois grandes desafios da biocibernética são a compatibilidade do material usado na fabricação do chip com o organismo humano e o consumo de energia gasta pelo eletrodo dentro do dispositivo.
Ele diz que a questão da biocompatibilidade foi solucionada pelo professor norte-americano Stephen Saddow, da USF, que participa do projeto como visitante. A equipe de Saddow estudou diversos materiais semicondutores para descobrir que o carbeto de silício tem as propriedades necessárias para o desenvolvimento de uma interface cerebral. Depois de 30 dias de implantação, o 3C-SiC não causou grandes problemas ao tecido neural das cobaias.
O professor Dilvan de Abreu Moreira, do Departamento de Ciências de Computação do ICMC, é o coordenador técnico do projeto. Participam também o professor Carlos Alberto dos Reis Filho, da Universidade Federal do ABC, e Claudius Feger, do Centro de Pesquisas da IBM de São Paulo. A IBM, gigante americana na área de tecnologia, se interessou pelo projeto, pois se o experimento for um sucesso, será preciso industrializar o processo de fabricação de chips com carbeto de silício. Para Gazziro, a solução do biochip poderá ser usada em esqueletos artificiais feitos de metais resistentes que ampliam a capacidade física de portadores de deficiência. “Bastará o leitor dos sinais do chip enviar os comandos captados no cérebro para que eles substituam o papel do membro não funcional”, disse. contraponto
“Do jeito que isso está sendo mostrado, uma mãe pode achar que seu filho paraplégico vai voltar a andar em breve. E não é verdade”, critica Sérgio Teixeira da Fonseca, orientador do curso de doutorado em ciência da reabilitação, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e editor da Revista Brasileira de Fisioterapia. Ele se mostra um pouco cético quanto ao assunto: “Penso que a interface homem-máquina está, atualmente, muito mais para a ficção científica do que para a realidade. Na minha concepção, é algo até viável, mas que atualmente enfrenta vários problemas. As pessoas não devem ficar muito animadas”, diz. Fonseca argumenta que um tetraplégico poderá até dar o chute inicial da Copa do Mundo em 2014, aqui no Brasil, como prometeu o cientista Miguel Nicolelis, mas será só isso. “A perna poderá sim ser estimulada, treinada para fazer o movimento do chute, mas daí até a pessoa andar, dar passos, é uma distância muito grande. O movimento do corpo humano é condicionado ao ambiente, ele se adapta para se relacionar com o mundo e isso a máquina não faz”, explicou.
Fonte: Estado de Minas