Convenção de Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU: uma ameaça à Lei de Cotas?

O martelo da justiça sobre um livro

Por Fernando Antonio Pires Montanari*

O último item do Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pela Organização das Nações Unidas, expressa o entendimento de que:

“uma convenção internacional geral e integral para promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência prestará significativa contribuição para corrigir as profundas desvantagens sociais das pessoas com deficiência e para promover a participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos.”

Sem dúvida, a Convenção trouxe novas perspectivas e avanços para a questão da deficiência, sendo um dos mais importantes, o que incorpora formalmente o ambiente como fator determinante na definição de deficiência.
No entanto, em nome dessa nova definição de deficiência, incorporada à legislação brasileira com força constitucional, uma interpretação da Convenção ganha força no Poder Judiciário em sentido contrário aos objetivos de correção das desvantagens sociais e ameaçando a promoção da participação econômica e social das pessoas com deficiência no Brasil.

A interpretação jurídica que vem sendo dada à definição de deficiência expressa na Convenção ameaça um dos mais importantes e efetivos instrumentos legais de inserção econômica de pessoas com deficiência: o art. 93 da Lei nº 8.213/91, chamada de Lei de Cotas.

É histórica a resistência do empresariado brasileiro em contratar pessoas com deficiência, seja por desconhecimento, atitudes ou necessidades de adaptação do ambiente de trabalho. A Lei de Cotas tem conseguido, ao longo dos anos, vencer essa resistência.

Ironicamente, ao adotarem uma interpretação do conceito de deficiência que pretende ampliar o universo das pessoas alcançadas pela Lei de Cotas, os tribunais brasileiros caminham no sentido de permitir a contratação, dentro dos números exigidos pelo art. 93 da Lei 8.213/91, de pessoas que nunca estiveram no rol daquelas excluídas por conta de suas deficiências.

No entanto, essa interpretação, por mais respeitáveis que sejam seus defensores, parte de uma leitura equivocada das definições trazidas pela Convenção da ONU, a começar pela premissa de que não seriam mais aplicáveis avaliações de natureza médico-funcionais na verificação do cumprimento das contratações estipuladas pela Lei de Cotas.

Não é isso que se extrai do texto da Convenção. Pelo contrário, nos conceitos trazidos pela Convenção, fatores sociais e médico-funcionais são complementares e indissociáveis na manifestação da deficiência.
Logo no Preâmbulo, letra “e”, a Convenção diz:

“e. Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas;”

Mais à frente, no artigo 1º:

“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.”

Portanto, a Convenção introduz no conceito de deficiência o fator social reconhecendo-lhe papel o papel chave na manifestação da deficiência. Reivindicação antiga dos movimentos sociais de pessoas com deficiência, o reconhecimento do meio social como fator de limitação da inclusão social atenua o foco colocado sobre a pessoa pelas antigas definições, as quais se restringiam à caracterização da deficiência a partir das limitações individuais em contraponto com o ambiente, ou com algo como um chamado “padrão normal”.

Não obstante, essa ampliação rumo ao fator ambiental não pode fazer perder de vista a existência de características pessoais essenciais na definição daqueles que são o alvo das políticas de ação afirmativa.
E, efetivamente, a Convenção trata a deficiência como um fenômeno cuja manifestação requer dois conjuntos de fatores em intersecção.

Primeiro, existem as características individuais, traduzidas em limitações, impedimentos, disfunções, que algumas pessoas apresentam e que as distinguem dos demais na interação social.
Em segundo lugar, existem as condições ambientais, materiais e atitudinais, que representam barreiras para que aquelas pessoas, que pertencem ao primeiro conjunto, atuem em seu ambiente social em igualdade de condições.
Na manifestação da deficiência, os dois conjuntos de fatores devem estar presentes concomitantemente, sem o quê, o fenômeno não se materializa. No entanto, o primeiro, que reúne as pessoas, tem precedência lógica sobre o segundo. Sem as limitações individuais não há sentido em se falar em barreiras ambientais.

Tanto é assim que o artigo 1º da Convenção, ao expressar o conceito de pessoa com deficiência, primeiro vetor do fenômeno da deficiência, assim se expressa:
“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial (…).”

O destaque do trecho acima é importante por evidenciar que as características pessoais são parte essencial no âmbito da problemática da deficiência e não desaparecem com a importância dada ao ambiente.
Nos termos acima, os impedimentos físicos, mentais, intelectuais e sensoriais caracterizam a existência do que podemos chamar de deficiência individual. São assim porque são indissociáveis do indivíduo, independentemente do ambiente. Por suas naturezas, essas características devem ser definidas e verificadas por critérios medico-funcionais, particularmente quando se trata da concessão de benefícios ou direitos previstos em lei.

A validade das definições utilizadas pela legislação brasileira, especialmente pela Lei de Cotas, tem sido questionada por se basear em critérios médicos, quando, segundo uma corrente de pensamento, a Convenção passou a definir a deficiência somente a partir do ambiente social. A partir desse ponto de vista, toda e qualquer característica pessoal que, em interação com o ambiente laboral, venha a produzir obstrução de participação social, tornaria o indivíduo elegível para ocupar uma vaga de trabalho no âmbito do art. 93 da Lei nº 8.213/91.

Em uma mudança de cento e oitenta graus na orientação anterior, o entendimento acima resumido deixa em segundo plano a deficiência individual para se ater, exclusivamente, aos fatores sócio-ambientais. Todos fariam jus à inclusão pela ação afirmativa, bastando para isso que enfrentem alguma barreira para sua inserção no mercado de trabalho. Isso independentemente de apresentarem algum tipo de impedimento de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nas palavras da Convenção.

Essa interpretação que, como dito no início, ganha força na jurisprudência brasileira, põe em risco os avanços conseguidos na inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, na medida em que permite que empresas não ofereçam vagas a pessoas com deficiência cuja contratação implique a realização de adequações ambientais custosas, assim como de mudanças de atitudes que revertam a exclusão social.

Se todo e qualquer “impedimento” permite que uma pessoa ocupe uma das vagas reservadas pela Lei de Cotas, e considerando o histórico de resistência à inclusão das empresas brasileiras, a tendência é de que sejam contratadas somente aquelas que mais se aproximarem do ideal social de “normalidade”. A atitude retoma uma realidade de exclusão dos demais e fere de morte os objetivos da Lei de Cotas e o espírito da Convenção das Nações Unidas.
O Poder Judiciário brasileiro, que sempre se posicionou no sentido da garantia dos direitos sociais e individuais, não pode adotar uma interpretação que, sob a capa de ampliação de direitos, revela-se uma armadilha mortal contra a Lei de Cotas e a inclusão econômica e social das pessoas com deficiência, que tem sido alcançada com sua aplicação.

*Servidor Público Federal, Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, ex-presidente do Conselho Municipal de Atenção às Pessoas com Deficiência e com Necessidades Especiais de Campinas, no período 2001/2002

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