Por Diana Luz Pessoa de Barros
na Com Ciência
No Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos, da Universidade de São Paulo (USP), há um grupo de linguistas que se ocupa de questões de intolerância em relação à linguagem, aos diferentes usos da língua, às línguas do “outro”, ao domínio ou não da escrita, e também da intolerância construída pela linguagem, em textos ou discursos. São duas preocupações diferentes no quadro das intolerâncias na e da linguagem: de um lado, a da intolerância linguística propriamente dita; de outro, a dos discursos preconceituosos e intolerantes, de qualquer ordem (racista, purista, separatista, homofóbico etc.). O objetivo principal é contribuir, na perspectiva dos estudos da linguagem, para a produção de conhecimento sobre a intolerância, que tem sido estudada por historiadores, sociólogos, psicólogos, entre outros, nos mais diversos campos do conhecimento.
A intolerância linguística propriamente dita é caracterizada por três aspectos:
1 – o uso da linguagem é muito marcado por intolerância e preconceitos, embora muitas vezes camuflados pelos valores éticos do erro linguístico ou estéticos da beleza de certos usos e línguas; com isso, por exemplo, revistas que nunca aceitariam publicar artigos racistas, acatam, sem problemas, textos intolerantes em relação a certos usos linguísticos ou a certas línguas;
2 – as relações entre os usos linguísticos ou entre as várias línguas são determinadas por seu caráter público ou privado: no domínio do público, a intolerância surge quando a lei regulamenta certos usos e línguas e proíbe os demais (vejam-se, por exemplo, a proibição, por Pombal, do uso das línguas indígenas ou das línguas gerais no Brasil; a discriminação, pelo governo brasileiro, do emprego de línguas estrangeiras, na época da Segunda Guerra; ou a não aceitação do uso de termos estrangeiros, com a lei Toubon, na França); no âmbito do privado, a intolerância aparece quando as preferências individuais ou de grupos discriminam usos e línguas e impedem que seus usuários tenham acesso a empregos, cargos ou funções (vejam-se, entre outros, a discriminação que sofrem os que usam o “r” caipira ou uma entonação que assinala determinada identidade sexual);
3 – a intolerância linguística (e a de qualquer outro tipo) está fortemente relacionada com outras formas de intolerância (sobretudo racial, religiosa, sexual, política, socioeconômica). Essas relações são, em geral, hierarquizadas, ou seja, há uma forma de intolerância de base, predominante, a que se subordinam as demais, como, por exemplo, ocorre no Brasil no caso do preconceito racial em relação aos negros, que pode ser considerado uma intolerância primária, em relação às intolerâncias quanto ao modo de falar dos negros, à sua religião etc. Os textos ou discursos muitas vezes mascaram a intolerância de base ou primária por meio da manifestação de uma intolerância associada ou secundária, considerada mais aceitável: assim, a intolerância racial pode manifestar-se como intolerância religiosa ou linguística, mascarando o preconceito racial com preconceitos mais facilmente justificáveis ou não proibidos: quando, por exemplo, se critica o uso linguístico do nordestino ou do imigrante ou a forma de falar do homossexual, considerando-o como um uso linguístico “errado”, “feio”, que compromete ou ameaça a língua, não se trata realmente ou somente de uma intolerância linguística, mas de intolerância socioeconômica, política, sexual, racial etc. Nesses casos, é preciso desmascarar o jogo de manifestação das intolerâncias, mostrar o que há em águas mais profundas.
A intolerância linguística está, portanto, fortemente relacionada com outras formas de intolerância, o que indica que a intolerância precisa ser observada, em princípio, de uma perspectiva multidisciplinar, mas, também, examinada, nas particularidades e especificidades próprias da linguagem. Veja-se, entre outros, o caso das relações entre o discurso racista, o separatista e o de intolerância linguística no livro de Irton Marx Vai nascer um novo país: República do Pampa Gaúcho. O discurso separatista, fortemente moralizante, é também um discurso racista (… “deixando de ser gaúchos para nos tornar sertanejos, perdendo cada vez mais a nossa identidade”) e de intolerância linguística (“Nossas emissoras de rádio serão mais potentes, e nossos locutores falarão corretamente o português, com boa dicção”).
A regulamentação linguística, no domínio do público, explica-se pelo papel que as línguas assumem na construção de impérios, nações, estados, na constituição de identidades nacional, regional, e, principalmente, na construção da língua nacional, com o apagamento das diversidades linguísticas. Nos livros didáticos de história do Brasil, por exemplo, não há uma única referência ao fato de que no período colonial falavam-se principalmente línguas gerais no país e não o português.
Ao regulamentar as relações entre os usos linguísticos de uma mesma língua, a lei determina um uso como mais correto, mais certo, mais bonito, mais patriótico, mais virtuoso, enfim, e hierarquiza os demais, que serão ditos possíveis, toleráveis ou proibidos. Esse uso mais virtuoso é o da norma explícita de uma dada língua, em geral chamada norma culta.
Os usos e línguas impostos ou preferidos mantêm relações diversas com os proibidos ou não preferidos. Os diferentes tipos de relação ocorrem tanto nas relações linguísticas internas a uma dada sociedade, entre variantes de uma língua, e tendo por referência a variante culta ou padrão, quanto entre línguas diferentes, tendo por referência a língua nacional. Assim, por exemplo, no Brasil, as variantes utilizadas por falantes de classe socioeconômica pouco favorecida ou da zona rural são excluídas da escola, da administração, dos meios de comunicação; variantes regionais desprestigiadas, como a caipira ou a nordestina, são segregadas, isto é, admitidas no espaço delas, mas não devem ser misturadas com os usos prestigiados, por exemplo, do rádio ou da televisão; ou, mais frequentemente, as variantes de menos prestígio são assimiladas às de mais prestígio (ensina-se, muitas vezes, na escola, o uso de regiões “ em que se fala melhor”).
No que diz respeito às línguas estrangeiras, as relações são também sempre assimétricas e dependem da posição econômica, cultural ou política que estabelecem relações de dominação entre os grupos e suas línguas. Dessa forma, a língua nacional pode encontrar-se na posição dominante (mais prestígio, mais força) ou de dominada (menos prestígio, menos força) em relação a outras línguas. Vejamos alguns exemplos em que a língua nacional ocupa a posição de dominante. Na Espanha, durante a ditadura de Franco, o basco, o galego e o catalão foram excluídos em favor da manutenção do espanhol (castelhano); no Brasil, houve também exclusão quando Pombal proibiu o uso de línguas indígenas ou das línguas gerais no país, ou, na Segunda Grande Guerra, quando se proibiu o ensino do alemão ou do japonês, na escola; em relação aos imigrantes, o discurso no Brasil foi, em certos momentos, de exclusão e, mais frequentemente, de assimilação; quanto às línguas indígenas, em certo momento foram excluídas e hoje são segregadas (aceita-se que os índios falem outras línguas, mas nas reservas indígenas).
As relações linguísticas geram, muitas vezes, conflitos, pois o outro, o dominado, cujos usos linguísticos se quer excluir, assimilar, agregar ou segregar, pode não querer que isso aconteça. Quando não há conformidade entre os discursos do dominante e do dominado, os conflitos se manifestam de diferentes formas: lutas, preconceitos, intolerância, de um lado, formas de resistência, de outro. Entre as formas de resistência à dominação linguística podem ser encontradas a do multilinguismo, a da aceitação das diferenças linguísticas e o diálogo entre elas. Segundo Roland Barthes, em sua Aula no Collège de France, “é bom que todos os homens, no interior de um mesmo idioma, tenham várias línguas”.
A segunda questão de intolerância em relação à linguagem é diferente da intolerância linguística propriamente dita, tal como foi acima esboçada, pois se trata da construção pela linguagem de textos ou discursos preconceituosos e intolerantes. Nesse caso, o objetivo é mostrar como se constroem esses textos ou discursos, que procedimentos e estratégias são usados nessa construção, em que quadro de valores eles se inserem e, finalmente, qual a identidade intolerante que criam.
Para caracterizar os discursos intolerantes e preconceituosos, três questões serão retomadas, de forma muito resumida, de nossos estudos anteriores sobre esses discursos: a organização narrativa dos discursos intolerantes como discursos de sanção; seu caráter fortemente passional, com ênfase nas paixões do medo e do ódio; os percursos temáticos da diferença, em que o diferente é considerado anormal ou contrário à “natureza”, imoral, não-humano, doente, louco e feio.
O discurso intolerante é, sobretudo, um discurso de sanção aos sujeitos considerados como maus cumpridores de certos contratos sociais: de branqueamento da sociedade, de pureza da língua, de heterossexualidade e outros. Esses sujeitos são, portanto, no momento do julgamento, reconhecidos como maus atores sociais, maus cidadãos – pretos ignorantes, maus usuários da língua, índios bárbaros, judeus perigosos, árabes fanáticos, homossexuais promíscuos – e punidos com a perda de direitos, de emprego, ou até mesmo com a morte.
Em relação às paixões construídas nos discursos, pode-se observar que os discursos intolerantes são fortemente passionais, que seus sujeitos são sempre sujeitos apaixonados e que predominam, nesses discursos, dois tipos de paixões – as paixões ditas malevolentes (antipatia, ódio, raiva, xenofobia etc.) ou de querer fazer mal ao sujeito que não cumpriu os acordos sociais acima mencionados; e as paixões do medo do “diferente” e dos danos que ele pode causar.
A malevolência parece ser o caminho para que as coisas sejam postas em seus “devidos lugares”, mesmo que a falta primeira não se resolva com isso, pois o sujeito, sem os valores almejados e em crise de confiança, procurará resolver sua falta e passará a querer fazer mal a quem o colocou, segundo o simulacro construído, nessa situação. O sujeito do ódio em relação ao estrangeiro, ao diferente, aos “maus” usuários da língua, é também o sujeito do amor à pátria, à sua língua, ao seu grupo étnico, aos de sua cor, à sua religião, ou seja, complementam-se as paixões malevolentes do ódio em relação ao “diferente” e as paixões benevolentes do amor aos “iguais”.
Distinguem-se duas etapas nos percursos passionais do ódio do sujeito intolerante, que, em geral, acorrem juntas nos discursos. A primeira é aquela em que o sujeito se torna malevolente em relação ao outro, que, “diferente”, não cumpriu o contrato de identidade, e benevolente em relação à pátria, aos iguais, aos idênticos. Essa primeira etapa, a mais passional da intolerância, é a do preconceito.
A segunda fase, a da intolerância propriamente dita, é aquela em que o sujeito preconceituoso passa à ação, ou seja, age contra o outro, que ele considera o causador de suas perdas e que odeia. As ações são as ações apaixonadas de vingança ou de revolta, que se distinguem da justiça desapaixonada. Essa questão apareceu bastante, por exemplo, nos debates travados na imprensa entre os que consideraram a morte de Bin Laden como justiça e os que a interpretaram como vingança.
Em relação às paixões do medo, é preciso dizer que o medo é inerente à natureza humana e necessário à sobrevivência da espécie, embora ter medo seja, em geral, moralizado negativamente pela sociedade, e a coragem, fortemente valorizada. Entre os diferentes tipos de medo, é o medo do outro, de suas ações e das privações por ele ocasionadas e que ocorre, sobretudo, nas situações de desigualdade social, que, geralmente, caracteriza o discurso intolerante. As paixões do medo muitas vezes provocam as paixões do ódio ou juntam-se a essas paixões malevolentes e fazem crescer de intensidade os percursos passionais e as ações intolerantes.
Embora o medo e também o ódio sejam, em geral, moralizados negativamente pela sociedade, nos discursos intolerantes, o medo do diferente, de sua violência, anormalidade ou imoralidade, e das perdas que ele poderá causar, e o ódio daí decorrente servem como justificativa para as ações intolerantes. Discursos políticos, muitas vezes, fazem uso do medo do outro e do ódio do diferente como estratégia ou plataforma política, levando, com isso, ao crescimento das ações intolerantes. O caráter passional da intolerância, mais fundamentada em emoções, sentimentos e sensações, é uma das razões que fazem com que as manifestações de políticos e de homens públicos levem, em geral, ao aumento do medo e do ódio do “diferente”.
Finalmente, nos discursos intolerantes, os temas e figuras estão relacionados à oposição semântica fundamental entre a igualdade ou identidade e a diferença ou alteridade e, a partir daí, esses discursos constroem alguns percursos temáticos e figurativos, de que ressaltamos quatro: a animalização do “outro”, a que são atribuídos traços físicos e características comportamentais de animais, desumanizando-o; a “anormalidade” do diferente, que é e age contra a “natureza”; o caráter doentio da diferença, tanto do ponto de vista físico, quanto mental, em que o diferente é considerado como doente e como louco, em oposição aos sadios de corpo e mente, e, enquanto “doente”, também como feio, como esteticamente condenável; a imoralidade do “outro”, a sua falta de ética.
Em síntese, o discurso intolerante considera o “diferente”, o “outro” como aquele que rompe pactos e acordos sociais, por não ser humano, por ser contrário à natureza, por ser doente e sem ética ou estética, e que, por isso mesmo, é temido, odiado e punido. Vejamos alguns exemplos: os textos racistas que apareceram na rede Twitter no dia seguinte à vitória de Dilma Rousseff na disputa pela presidência da República, e no Peru, um ano depois, por ocasião da eleição de Ollanta Humala; o texto homofóbico de aluno de faculdade de medicina; o texto de intolerância estética do “Rodeio das Gordas”, realizado por alunos da Unesp, em que aparecem a animalização do diferente, sua anormalidade e imoralidade, sua feiura e seu caráter doentio:
É tudo culpa dos nordestinos… seca eterna para vocês!!!! Dilma presidente Parabéns povo burro!!
Nordestino não é gente. Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado.
(…) Na internet, blogs e o Facebook amanheceram lotados de xingamentos aos “cholos” (termo depreciativo para se referir a indígenas) e “índios” favoráveis a Humala. “Porcaria de cholo, se você for presidente eu prefiro ser preso”, dizia um internauta. “Ollanta é um índio de merda, e todos os pobres votam nele porque vai tirar o dinheiro das pessoas normais”, afirmava outro. (…) Até os jornais peruanos entraram na guerra suja verbal. No editorial de ontem do jornal Peru21, o diretor Fritz Du Bois afirmava: “É tão evidente a tentativa de Humala de se branquear e se apresentar como moderado que é difícil dar resultados”. No diário Correo, o diretor ultraconservador Aldo Mariatégui foi mais longe e disse que “já começou a operação de pentear o macaco”. (Folha de S. Paulo, 11 de abril de 2011, p. A17).
Irado com a eleição de dois colegas homossexuais para coordenadores-gerais do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina de Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, um estudante do 2º ano conclamou os colegas por e-mail:
Está na hora de unirmos forças e, veladamente, fazer o que nos couber para dar fim – pouco a pouco – nesta peste. (….) O que resta a nós, seres normais, a não ser sentir vergonha e observar inquietos nosso país cair em decadência? (…) Eu vos digo, futuros colegas: e se a solução fosse cada um de nós tomarmos uma atitude no momento em que essa escória nos procurar para curar suas doenças venéreas e demais pragas de seus corpos nojentos?” (Folha de S. Paulo, 9 de dezembro de 2010, p.C10).
O vencedor era quem mantivesse garota presa nos braços por mais tempo, após dizer a frase “Você é a menina mais gorda que eu já vi na vida”. (Folha de S. Paulo, 29/10/2010, p. C4).
Nos dois primeiros textos acima, os nordestinos, o candidato de origem indígena e os seus eleitores não cumpriram o contrato de “branquear a sociedade” e de conservar sua “normalidade” e caráter humano, e são, por isso, sancionados negativamente, e com paixão. No caso brasileiro aparecem, sobretudo, as paixões malevolentes do ódio e as ações intolerantes de vingança: seca eterna e afogamento. Nos textos peruanos, além da paixão do ódio, expressa nos xingamentos, explicita-se também o medo das perdas ocasionadas pelo “diferente”: “Ollanta é um índio de merda, e todos os pobres votam nele porque vai tirar o dinheiro das pessoas normais”. O terceiro texto, homofóbico, trata da ruptura do contrato de heterossexualidade, e também desenvolve os temas da anormalidade, da imoralidade e do caráter doentio do “outro”. O último, o de intolerância às gordas, mostra a ruptura do contrato social de um dado padrão de beleza e constrói percurso estético da feiura que merece ser punida.
Para concluir duas considerações devem ser feitas. Tendo em vista, sobretudo, o caráter passional e emocional dos discursos intolerantes, o homem público – político, jornalista, professor e outros –, por sua posição de sujeito do poder e do saber, mesmo que não realize ações diretas de discriminação e intolerância, leva a que outros o façam, incentivando, dessa forma, a violência contra o “diferente”. Nessa posição, o sujeito não pode, portanto, ter o direito de expressar seus preconceitos.
Finalmente, se os discursos intolerantes apresentam as características acima descritas, para a construção de discursos de aceitação social é preciso elaborar discursos com estratégias, temas e valores contrários aos aqui examinados. Os contratos deverão ser os de multilinguismo, de mistura, de mestiçagem, de diversidade sexual, de diálogo com as diferenças, de pluralidade religiosa, para que o “diferente”, o “outro”, não seja mais considerado como aquele que rompe pactos e acordos sociais, por não ser humano, por ser contrário à natureza, por ser doente e sem ética ou estética, mas, ao contrário, seja visto como aquele que garante novos e promissores contratos sociais. A sanção positiva e as paixões benevolentes, que nos discursos intolerantes só se aplicam aos “iguais”, a “nós”, se estenderiam, assim, aos diferentes, a “eles”. Sem essas mudanças, não é possível haver aceitação social.
Diana Luz Pessoa de Barros é professora do Centro de Comunicações e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, professora aposentada do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo e líder do grupo de pesquisa Linguística e Intolerância no Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos.