Hulk, meu termômetro particular de interação escolar

De como o Hulk (o monstrengo, não o jogador da seleção), aniquilou meu heroísmo doméstico, sobrepujou minhas cautelas pseudo-educativas, tornou-se o meu termômetro particular de interação escolar e me ensinou quando é hora de botar a viola no saco.

O incrível Hulk sobre um fundo de parafusos

Por Lucio Carvalho *

Eu sabia que mais dia menos dia isso iria acontecer. Está no script da vida de todo o pai, não há como escapar ou fugir. O dia em que você acorda e entende que finalmente seu filho achou um substituto a altura para a figura masculina que você gloriosamente empunhava até ontem à noite. Mas, precisava ser o Hulk (o monstrengo, não o jogador)?

O nocaute só não raspou o fundo da panela da minha autoestima porque, por experiência pregressa, eu sabia que isso poderia e fatalmente viria a acontecer e eu jamais tomaria tanto anabolizante assim. De um modo muito mais lírico, minha filha, há quase cinco anos atrás, mostrou-me que era a chegada a hora de eu recolher-me em minha insignificância humana, em meu heroísmo vencido. Mas ela, que é uma fofa, me deu tempo para assimilar isso, que aconteceu entre sereias, lobos e fadas, conforme conto aqui, neste link. Com o meu menino foi na porrada mesmo. E porrada de Hulk, que é provavelmente a porrada das porradas.

Não vou entrar no debate enfadonho (necessário, mas enfadonho) de como eu permiti que o Hulk invadisse meu lar com toda a sua legião de amigos super-heróis enlatados para seduzir com seu transmonumental contorno muscular e poderes inigualáveis a mente incauta do meu menino. Pasmem, mas eu abri a porta. Mais, convidei todos para entrar.

Sim, eu permiti que essa violência toda entrasse na minha casa para substituir o mundo pueril de criaturas bondosas e mimosas que habitam o universo de personagens disponível ao público proto-infantil, ou seja, de crianças bem pequenas. Mas, antes que eu seja julgado e condenado como um vilão serviçal do sistema de entretenimento enlatado, vou apresentar minha defesa rapidamente, se isso for possível.

Consta o seguinte. Para começar, 19 entre 20 dos colegas do meu filho brincam de super-heróis. É natural que ele fosse atraído para esse universo, correto? A menos que possuísse uma máquina de lavagem cerebral, não tenho meios de evitar esse contato e, mais que isso, acho que essa espécie de violência cultural é tão ignominiosa quanto a que supostamente procura combater.

Segundo, ao que tudo indica meu filho ainda faz uma boa mistura entre pensamento real e mágico. Ele é fascinado por qualquer poder mágico. Chega a acreditar que ter de estudar e fazer suas tarefas, por exemplo, deveria ser resolvido dessa forma também, com um alakazan.

Alimentar-se com substâncias não crocantes exige igualmente um esforço doutrinário descomunal, pena que não haja ninguém para documentar o heroísmo que ronda tais atividades corriqueiras na vida familiar para a posteridade, eu então poderia figurar no panteão dos super-heróis. Mas não dá. O jeito é encarar o esforço e, heroicamente, convencê-lo de que o termo “esforço” é fundamental na vida, seja lá no que for preciso fazer, e que esse tipo de mágica é de efeito prolongado, diferentemente da cada vez mais falada “gameficação educacional”.

Tenho outros argumentos em minha defesa, mas vou pulá-los rapidamente e explicar que, embora não pretenda de modo algum suscitar compaixão (só quem me conhece de perto sabe que eu temo o efeito congelante desse superpoder), há uma justificativa racional para o meu comportamento, embora isso me desvie da linha pensada ao iniciar a escrever, pois através do Hulk eu finalmente tenho um modo de avaliar se o meu filho está efetivamente socializado na escola ou não, porque a brincadeira predominante entre meninos da sua faixa etária é, goste-se ou não, baseada na presença imaginária de super-heróis, o Hulk incluso. Saber que ele brinca do mesmo que os demais pode indicar-me que ele não está isolado ou segregado no ambiente escolar.

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É que, ao contrário dos filhos dos demais cidadãos, o meu não está apenas matriculado na escola. Ele está incluído. O termo, particípio do verbo incluir, deveria ser um fator tranquilizante, mas nem sempre é. Assim é dito de todas as crianças que nascem com alguma deficiência (o meu tem síndrome de Down) e vão para a escola regular. São alunos incluídos. Ou “de inclusão”, como dizem alguns especialistas educacionais.

Quando me dizem que são alunos incluídos, parece que eu ouço dizerem que são como peças colocadas ali por ação externa, que não deveriam estar ali, como um parafuso de bitola maior que é encaixado numa fenda desproporcionalmente diferente. Além disso, quando leio que meu filho e os filhos de tantas e tantas pessoas são alunos “de inclusão”, imediatamente me vem em mente um pote servindo de porta-parafusos repleta de parafusos “problemáticos”, sem bitola, sem tamanho certo, completamente irregulares.

Nesse sentido, o Hulk tem me sido um poderoso aliado. O Hulk é o meu termômetro particular de interação escolar. Parece um conceito elaborado, mas é de facílima compreensão. Quando meu filho chega da escola brincando de Hulk, eu sei automaticamente que ele brincou com os colegas em algum nível de igualdade ou, pelo menos, brincou das mesmas brincadeiras que eles. Nem que isso seja apenas correr e esbravejar pelo pátio da escola.

Para o escândalo de alguns amigos, eu tenho dito que se o meu filho não puder, “para o seu próprio bem e para o bem do seu desenvolvimento”, compartilhar do cotidiano escolar é que é chegado um limite que não serei eu a fingir que não está ali. É que sua escolarização não é minha, para meu orgulho o sei lá o quê. É para ele. É dele. Meu único dever como pai é zelar para que o tratem bem e, sendo o caso, criar alternativas, procurar melhores possibilidades, etc.

Se uma escola me informa que quer “incluir”, mas como um peso excepcional e cheio de implicações absurdas como professores exclusivos, taxas adicionais e etc., tenho certeza que ali é tempo perdido e dinheiro posto fora. Aquela escola é muito mais que “regular”, ela é impermeável, é um bloco monolítico que só assimila a existência de parafusos “regulares”. E é assim por opção própria e preferência, ou seja, nada que mesmo a melhor lei do mundo tenha por si só o poder de modificar, porque se trata de algo que está enraizado na mentalidade e expresso nas condutas pedagógicas e comportamentais do estabelecimento. As escolas públicas, embora não possam cobrar, por outro lado podem fazer um corpo mole básico. Ou conferir a mesma qualidade de educação oferecida aos alunos regulares, o que em boa parte das vezes significa pouquíssimo mesmo, uma educação capaz de fazer pouco mais que salvar um que outro do completo analfabetismo funcional ao fim do ensino médio.

É por essas e outras que venho adotando, com relativo sucesso, o meu termômetro particular de interação escolar, o Hulk. É um dispositivo simples, requer basicamente capacidade de observação e negociação, quando possível. Eu, que já havia sido batido pelo Hulk no quesito poder másculo, acabei fazendo da criatura um aliado, não iria ser bobo de querer brigar com alguém daquele tamanhão, ainda mais depois que ele caiu nas graças do meu filho. Seria uma hecatombe, fosse qual fosse o resultado do embate.

Curiosamente, eu sempre achei o Hulk um personagem melancólico. É um sujeito descontrolado que, a despeito do seu poder destruidor, sempre acaba levando a pior, tendo que procurar uma nova cidade para esconder-se. Por isso, o Hulk também pode ser inadvertidamente um agente educativo de primeira linha. Pretendo aprender com ele, por exemplo, a receita de evitar fúrias incontroláveis e o desejo de depredação, mesmo que isso custe muitas vezes apenas aprender a colocar a viola no saco. Se o Hulk conseguiu aprender isso, eu hei de aprender também. Ou não..

* Coordenador Geral da Inclusive – Inclusão e Cidadania (www.inclusive.org.br) e autor de Morphopolis (www.morphopolis.wordpress.com)

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