Por Marcos Weiss Bliacheris
Movido pela curiosidade de quem tinha visto o trailer e sabedor que o protagonista estava no espectro autista, assisti o filme “O Contador”. Neste momento, pausa para avisar que lá vem muitos spoilers. Então, se você quiser ver o filme, leia o artigo só depois de o assistir.
O filme, estrelado por Ben Affleck, é um filme de ação, com muito tiro, porrada e bomba. O contador é um aspie, uma pessoa com a síndrome de asperger, uma forma de trasntorno do espectro autista. Talentoso com números, serve a mafiosos ao redor do globo. Mas logo descobrimos que ele também é um exímio atirador, um excepcional matador e leva uma vida que faz o filme ser um misto de Rain Man com Batman.
Seria um filme esquecível e descartável como outros de tiros e explosões se não pretendesse ser um manifesto em favor da neurodiversidade e da valorização das diferenças. E se o super poder do herói não fosse sua característica de autista.
Foi por conta disso que eu disse para minha mulher enquanto rolavam os créditos na tela: vamos esperar todos saírem porque eu não quero encontrar ou falar com nenhum dos conhecidos que estão na sala. Não queria ter que falar sobre o filme naquele momento, pois quem vive o autismo não tem como sair impassível da sala de projeção, havia um enorme incômodo junto de nós.
O enredo defende a diversidade, fala todo tempo de “ser diferente”. No entanto, é um filme igual a tantos outros, um desfile quase ininterrupto de clichês. Foram tantos que eu agradeci a Deus por não terem dito que o autismo foi causado por alguma vacina. Nem foi o gênio que escreve em vidros o clichê mais surrado a desfilar. Isso para resolver sozinho em uma noite o que uma equipe chegaria perto em um mês de trabalho.
O grande clichê é o protagonista, o contador, personagem vivido por Bem Affleck. Um “rain man” sarado. A mesma inabilidade social, o mesmo talento com números mas com um corpo musculoso, perito nas lutas e na arte de matar aprendidas em 34 casas em 17 anos, da Indonésia a Israel. Tudo recheado a tortura sensorial.
A crítica do The Guardian chama atenção para a hipocrisia sem noção do filme o que levou a sua rejeição pela comunidade autista. Ainda que se proclame como um grito pelo respeito à diferença, o que temos é um personagem apresentado à luz de um capacitismo atroz cujo valor se justifica pela sua capacidade quase sobrenatural de decifrar fraudes contábeis.
É mais um filme que trata a pessoa com autismo como o detentor de um super poder que iluminados conseguem desenvolver. O fato da grande maioria dos autistas não apresentar habilidade especiais não tira a força do clichê e nem daqueles que esperam, na vida real, uma demonstração ao vivo do super poder da pessoa com autismo.
Mas o que me fez colar à cadeira e minha mulher chorar foi a violência desmedida vinculada ao autismo. O contador não é só um matador impiedoso, ele executa suas vítimas. Tiro na cabeça e mais um abatido.
Quando temos o que Andrew Solomon chama do “mito do atirador autista” sendo discutido com ares de verdade na grande imprensa, quando o autismo senta no banco de réus da imprensa sensacionalista como chave para violência e assassinatos, o filme traz um autista matando em quantidades industriais. Solomon faz referência a uma página de ódio criada no Facebook chamada “Families Against Autistic Shooters”. A página fala nos “olhos sem alma, sem vida das crianças autistas” que são definidas como “frias, máquinas de matar calculistas sem nenhum respeito pela vida humana”.
Difícil achar melhor descrição para o personagem interpretado por Ben Affleck do que a produzida por esta página de ódio que felizmente foi banida. O espectador é confrontado minuto a minuto, durante mais de uma hora com este personagem tirado de um libelo anti-autistas.
Porém, nos últimos minutos, as trajetórias cruzadas, os enigmas da trama são solucionados um a um e percebe-se que o autismo não é a causa da sanha homicida dos dois irmãos (um autista e outro neurotípico) mas sim a criação desalmada de seu pai.
Durante cerca de 110 minutos, a maior parte da ação é um autista de arma na mão atirando em tudo que se move. Mas temos dez minutos que nos mostra que o autismo não é a causa disso e que o filme tem propósitos nobres de promoção da diversidade.
O bolo que é servido é uma mistura de clichês e preconceitos da pior espécie, que somente poderiam resultar em uma massa desastrosa. Por mais doce que seja a cobertura que o diretor pretende colocar sobre essa mistura, o gosto final é intragável.
Marcos Weiss Bliacheris é advogado e autor dos livros “Sustentabilidade na Administração Pública” e “Panorama de Licitações Sustentáveis – Direito e Gestao Pública”