Histórias de uma mãe angelman – Parte 2

Histórias de uma mãe Angelman – Parte II

Dr. Aluísio me indicou um caminho e por ali eu fui. Segui o conselho do amoroso médico. Terapias nela!

Arrumamos uma fisioterapeuta tão dedicada e amorosa que a Ana Luísa se derretia só de olhar: sentou no primeiro mês de estimulação. Sabrina, nunca me esquecerei de você! Também conseguimos uma fonoaudióloga e uma terapeuta ocupacional. Pequenos e lentos progressos, mas cada um tão valioso quanto a final da Copa do Mundo.

Mas eu continuava a me perguntar o que ela tinha. Então, eu, tia Ana e meu pai cumpríamos uma extensa agenda de ida a neurologistas e geneticistas. Onde tinha um, entrávamos. Eu já tinha largado a advocacia nessa altura, então meu dia era dedicado a minha filha.

Diagnóstico pra quê te quero? Pra descobrir rumos, ter prognóstico e entender pra onde estamos indo. Eu não tinha mais assunto. Não sabia mais conversar com meus amigos, nem com o pai da minha filha. Entrava em todos os sites possíveis e ficava pesquisando sem parar. Paranóica, sem forças e sem entender o que estava acontecendo.

A suspeita dos médicos era quase sempre a mesma: paralisia cerebral ou autismo. Sobre paralisia cerebral, eu já tinha ido ao hospital que ela nasceu e pedido uma perícia da minha placenta, onde se verificou que não havia qualquer indício de anoxia. Por isso, eu não acreditava que era PC. Quando falavam em autismo, eu não aceitava por ignorância mesmo. Minha filha tem autismo associado à síndrome de Angelman. Mas, para mim, naquela época, autista tinha que ser igual ao menino do “Meu filho, meu mundo”, logo, minha filha não era autista. Aquele momento em que a completa estupidez salva alguém no mundo: se eu soubesse o que era autismo não tinha descoberto a síndrome de Angelman.

Ana Luísa começou a ter febres muito altas, diárias e frequentes sem qualquer causa aparente. E, nas febres, o tal nervoso aumentava. Já tínhamos ido a 15 neurologistas e 3 geneticistas. Ela já tinha completado um ano. Um neuro havia pedido um elétron. Estávamos fazendo o tal exame, quando o radiologista vendo minha cara de choro – naquele tempo eu tinha aquela cara de sofredora da Regina Duarte em novela do Manoel Carlos – perguntou por que estávamos fazendo o exame. Contei nossa saga. Ele olhou pra mim e pra tia Ana e perguntou se conhecíamos a Dra. Sandra. Eu disse que não. Ele falou: “- A paciente do horário faltou.” Nós nem deixamos ele terminar a frase direito e já estávamos dentro do consultório. Uma mulher bonita, sorridente e assertiva sem uniforme branco nos convidou para entrar. Nossas vidas mudariam ali. Nunca mais ficaríamos sem resposta. Achei um anjo em forma de gente.

Dra. Sandra Dias nos ouviu, virou a Ana Luísa de cabeça pra baixo e falou a frase mais doce da minha vida, segurando minhas mãos: “- Não sei o que sua filha tem, mas vamos descobrir juntas”. E ela vem segurando nossas mãos até hoje. Gratidão eterna.

 

Ok. Tínhamos uma neurologista! Dra. Sandra “chegou chegando” e pediu vários exames para a Ana Luísa. Descobrimos que ela tinha um pequeno cisto no cérebro, mas que ele não estava influenciando em nada no desenvolvimento dela e que a tal perna “nervosa” era parte de um quadro neurológico preocupante.

Suas convulsões eram muitas, de difícil controle e parciais. Nosso desconhecimento era tanto que não sabíamos ou nem sequer desconfiávamos que aquelas piscadinhas frequentes e sua boquinha (que abria e fechava com frequência) eram convulsões. Elas duravam em média 10 segundos e eram quase imperceptíveis, mas o estrago que faziam no cérebro era tão preocupante quanto o estrago de convulsões generalizadas.

A partir daí, começamos a tratar de um quadro que, hoje, eu creio que já existia desde quando ela tinha uns 2 meses, mas nenhum dos neurologistas nos quais a levamos soube identificar. Então, minha filha deve ter ficado mais ou menos 9 meses convulsionando sem parar e sem que eu soubesse ou fosse alertada para aquilo.

Voltando à saga do diagnóstico, Dra. Sandra nos orientou a procurar a geneticista Dra. Mara Córdoba do HUB. Mais um anjo de branco. Entramos no consultório, conversamos 10 minutos e ela me questionou: “-Você já ouviu falar de síndrome de Angelman?” Eu só conhecia síndrome de down e esse nome “síndrome” me pareceu algo apavorante. Enquanto ela me explicava o que era e me falava sobre a possibilidade de também ser “síndrome de Prader-Willy” (as duas síndromes são relacionadas ao cromossomo 15), minha mente não parava, meu corpo tremia por dentro e eu procurava me controlar e escutar atentamente. Ela nos deu o encaminhamento para o exame.

Saí de lá com a sensação de que não pisava no chão. Corri para casa, dei o almoço da minha filha e… partiu google! Li primeiro sobre a síndrome de Angelman. A descrição era assustadora, mas eu reconhecia minha filha em muitos pontos. Procurei a foto de alguma criança para ver se tinha algo a me dizer. Encontrei a de uma menina americana e ela parecia irmã da Ana Luísa. Meu coração dizia que minha busca tinha acabado. Era aquilo. Mas eu queria conversar com uma mãe, alguém que tivesse passado pelo que eu passei e que me dissesse o que fazer. Mestre Google me avisou que havia uma associação em São Paulo.

“ – Alô, eu queria falar com a Wilma…”

“ – É ela!”

“ – Boa tarde, meu nome é Adriana, achei seu nome na internet e pesquisei seu telefone na lista amarela. Acho que minha filha tem a mesma síndrome da sua. Você pode me ajudar?”

E assim, na cara de pau passada no óleo de peroba, eu tive o meu primeiro contato com uma mãe de Angelman: Wilma Helena Resaffi Picazio, mãe da Andreia, foi outro anjo. Quanta paciência pra responder tanta pergunta e ouvir tanto choro. Acho que falei e perguntei sem parar por 2 horas. Obrigada, querida, Helena! Você me tirou do limbo! Quanta irmandade em ouvir o outro…

Ao desligar o telefone, eu já tinha o diagnóstico. Mas eu o queria por escrito, correto e certeiro. Novo desafio: fazer o exame. Em Brasília apenas uma opção: Sarah Kubistchek. Mas, o hospital se recusou a fazer o exame dizendo que a Ana Luísa era autista e não tinha características de Angelman. E agora?

Dra. Sandra ligou para o Instituto Genoma na USP e a Dra. Célia Koiffman topou fazer o teste genético.

O resultado demorou 03 longos meses, pois o estudo da banda cromossômica é muito específico. Dia 19 de agosto de 2002, a Ana Luísa já estava internada há 30 dias com pneumonia, quando Dra. Sandra nos chamou ao seu consultório. Dra. Célia tinha enviado o resultado para ela e ela queria que fôssemos até lá para abrirmos juntos o envelope.

“Resultado: padrão compatível para síndrome de Angelman.”

Para muitos, uma tristeza. Para mim, a alegria de saber para onde ir e de dar nome a uma parte tão importante da identidade da minha filha.

FINAL

Sempre tentei escrever sobre essa trajetória que narrei até aqui, mas é a primeira vez que gosto do que escrevo, que escrevo sem dor e que me sinto totalmente em paz para falar sobre tudo que falei.

Não esperava que os textos tivessem o alcance que tiveram. Meu objetivo com eles era alertar sobre a existência da síndrome e marcar a data do dia 15.02 – Dia Internacional da Síndrome de Angelman. Obrigada imensamente aos que leram, comentaram e compartilharam. Fiquei realmente feliz.

Hoje minha filha completa comemorados e abençoados 16 anos de vida. Estamos desde a semana passada enfrentando sua 19ª pneumonia. Houve tempos de eu parar de contar as convulsões quando chegavam em 100. Houve tempos de eu ter medo quando ela salivava demais porque podia engasgar com a saliva.

Sei que narrando tudo isso, parece uma dor sem fim, novela mexicana e todo mundo deve pensar que é muito difícil estar no meu lugar. Entretanto, eu só tenho a agradecer e digo a vocês – e meus amigos podem testemunhar sobre isso – que eu sou uma pessoa muito, muito, muito feliz. E ela também é.

Procurei aqui não usurpar do lugar de fala de ninguém. Sei que não posso falar por ela. Só falo do meu lugar de mãe, pois o que sinto é completamente diferente daquilo que ela sente. Também não falo por seu pai, por seus avós, por seus irmãos, tios e primos, nem falo pelo meu atual marido. Falo só do meu lugar de mãe.

Não sei como ela seria se não tivesse síndrome de Angelman. Penso que seria outra criança completamente diferente, porque teria mais independência, conseguiria expressar com plenitude suas próprias vontades, mas também não teria tanta pureza naquilo que faz, nem teria essa alegria quase que incondicional de viver. Enfim, ela não seria a Ana Luísa que eu conheço. Seria outra Ana Luísa. Nem pior, nem melhor, mas seria outra pessoa. A síndrome de Angelman faz parte da identidade da minha filha, embora não resuma quem ela é.

Sinto muito quando percebo que 16 anos se passaram desde o seu nascimento e quase nada mudou em termos de glamourização da maternidade. Continuamos não preparando os casais para a possibilidade de seus filhos virem fora do script. Quero dizer a vocês que existem mais de 6.000 síndromes, muitas raras, complexas, difíceis e que qualquer um de nós está sujeito a ter filhos com alguma deficiência e, que, aliás, eu e você não sabemos se ao final desse dia continuaremos andando ou enxergando, pois a vida nos reserva surpresas a todo momento.

Então, a vida é para quem tem coragem de viver em plenitude, de aceitar o que lhe foi dado e, principalmente, para quem sabe transmutar dor em amor.

Fica aqui meu apelo por menos capacitismo, menos preconceito, mais humanidade, mais resiliência e mais valorização das diferenças.

Minha mestra Ana Luísa, parabéns a você! Que algum dia eu consiga minimamente retribuir todo o bem que você me faz todos os dias. Que Deus me dê saúde e força pra cumprir minha missão junto a você e seu irmão com dignidade e que te dê muitos e muitos anos de vida, cheios de muita alegria, saúde e amor.

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2 Comments

  1. Olá, sou avó de uma linda menina com sindrome de west (primeiro diagnóstico) ela tem 8 anos, mas vendo seu relato eu acho que se encaixa muito com a minha neta, qual foi o exame que diagnosticou a sindrome de Angelman?

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