Por Andréa Martinelli
Reproduzido do HuffPost Brasil
“Tive que deixar meu emprego… já que não tinha condições de continuar trabalhando e levar [meu filho] para seus tratamentos… Nós mães precisamos de apoio porque isso nos impacta também. Você deixa de viver sua vida para cuidar da vida do seu filho.”
“Nós temos muitos mosquitos. O esgoto não está coberto, e à noite está cheio de mosquitos. Ninguém escapou. Nós mal podíamos andar. Nossas pernas doíam muito. [Tivemos] febre, exantema. Eu tive dengue primeiro e depois chikungunya”
“Temos medo de ficar sem água. Então [quando a água vem], nós enchemos tudo. Onde eu moro, há vizinhos com muitos recipientes, e eles estão cheios de pequenas larvas [do mosquito], certo? A pessoa enche tudo o que pode, então, é complicado, porque não usamos toda a água e a guardamos para a semana seguinte e, assim, a situação piora.”
Kássia* mora em Pernambuco e é mãe de uma criança com a síndrome de Guillain-Barré, congênita ao Zika; Thaís tem 17 anos e deu à luz um bebê com síndrome de Zika em janeiro de 2016; Alícia, de 36 anos, residente da Paraíba e grávida de quatro meses.
Elas são mulheres. Mães. Brasileiras. E estão à sombra de um vírus. Esquecidas e desprotegidas.
Os depoimentos de Kássia, Thaís e Alícia, fazem parte do relatório “Esquecidas e desprotegidas: o impacto do vírus Zika nas meninas e mulheres no nordeste do Brasil”, realizado pela Human Rights Watch e divulgado em julho passado.
Apesar do governo brasileiro ter declarado, em maio deste ano, o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) para o vírus, dados coletados pela instituição fazem um alerta e concluem que a ameaça ainda existe e que investimentos para conter a epidemia foram inadequados: as mães e crianças que nasceram com microcefalia estão esquecidas e desprotegidas.
Segundo a pesquisa, o Brasil não solucionou os problemas de direitos humanos que permitiram que a epidemia se intensificasse (no período entre 2015 e 2016), deixando a população vulnerável a futuros surtos e a outros graves riscos de saúde pública — principalmente no nordeste do País, onde teve cerca de 75% dos casos confirmados de bebês nascidos com a chamada “síndrome de Zika” ou de Guillain-Barré.
O estudo expõe lacunas nas respostas das autoridades brasileiras e afirma que elas causaram impactos prejudiciais a mulheres e meninas e, ainda, deixam a população vulnerável a surtos contínuos de doenças graves transmitidas por mosquitos como o Aedes Aegypti. “Anos de negligência contribuíram para as condições de água e esgoto que permitiram a proliferação do mosquito Aedes e a rápida disseminação do vírus”, constatou a Human Rights Watch.
“Os brasileiros podem até ver a declaração do Ministério da Saúde sobre o fim da emergência para o Zika como uma vitória, mas riscos significativos ainda permanecem, assim como persistem os problemas subjacentes de direitos expostos pela epidemia”, afirma Amanda Klasing, pesquisadora sênior da divisão de Direitos da Mulher da Human Rights Watch e coautora do relatório.
O relatório foi realizado no fim de 2016 e início de 2017. A instituição entrevistou 183 pessoas em Pernambuco e na Paraíba – dois dos estados do Nordeste mais atingidos pelo vírus – incluindo 98 mulheres e meninas entre 15 e 63 anos de idade. 44 dessas mulheres estavam grávidas ou tinham dado à luz recentemente, e 30 criavam filhos com síndrome de Zika.
Homens e meninos em comunidades afetadas também foram entrevistados, assim como prestadores de serviços de saúde e outros especialistas e autoridades do governo. Dados da vigilância sanitária, orçamentais e relacionados a serviços de água e esgoto disponibilizados pelo governo também foram analisados para chegar ao resultado final do relatório.
Só em 2017, foram confirmados 230 novos casos de microcefalia em decorrência do Zika e 2.837 casos ainda são investigados. “Os direitos básicos dos brasileiros continuarão ameaçados caso o governo não reduza a infestação de mosquitos no longo prazo, não garanta o acesso a direitos reprodutivos e não apoie as famílias com crianças afetadas pelo Zika”, conclui Klasing.
O esgoto a céu aberto e a vulnerabilidade
O anúncio do fim da epidemia pelo Ministério da Saúde veio 18 meses depois que o governo declarou o vírus Zika uma emergência nacional, quando houve um aumento no número de bebês nascidos com microcefalia – uma condição em que a cabeça e o cérebro do bebê são subdesenvolvidos – e de outras complicações, conhecidas agora como síndrome congênita de Zika. “Mas os mosquitos Aedes continuam presentes no Brasil, e ainda carregam o Zika e outros vírus nocivos”, reforça o texto da pesquisa.
Danielle Cruz, pediatra em Recife que cuida de bebês com síndrome de Zika relata, em depoimento à pesquisa que “mesmo antes da crise [do Zika], tínhamos um déficit na oferta de serviços pediátricos. Não tínhamos fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos especializados em crianças suficientes, mesmo antes da crise. Você pode imaginar como está agora?”
À época, em resposta à epidemia, por recomendação do Ministério da Saúde, famílias foram encorajadas a fazer esforços a nível doméstico e familiar para combater a proliferação do vírus, como a limpeza de recipientes de armazenamento de água e a eliminação da água parada nas casas.
“Mulheres e meninas muitas vezes são as responsáveis por essas tarefas, mas seus esforços são onerosos e não podem preencher toda a lacuna deixada pela ausência de ações governamentais adequadas”, afirma o relatório. “As autoridades fracassaram em fazer os investimentos necessários em infraestrutura sanitária e de água para controlar no longo prazo a proliferação do mosquito e melhorar a saúde pública”, conclui o texto.
A pesquisa também destaca que mais de um terço da população brasileira não tem acesso a um abastecimento contínuo de água. Mais de 35 milhões de pessoas no Brasil carecem de instalações e serviços adequados para a eliminação segura de dejetos humanos. Apenas cerca de 50 % da população estava conectada a um sistema de esgotamento sanitário em 2015 e menos de 43 % do volume total de esgoto do país foi tratado. Na região nordeste do Brasil, em 2015, menos de 25 % da população estava conectada a um sistema de esgotamento sanitário e apenas 32 % do esgoto foi tratado.
“Esse acesso intermitente à água deixa as pessoas sem escolha e obrigadas a encher tanques e outros recipientes com água para uso doméstico, que podem se tornar involuntariamente focos potenciais de proliferação de mosquitos se deixados descobertos e sem tratamento”, afirma o relatório.
Júlia, 23, deu à luz seu filho mais novo em julho de 2016, e mora em uma comunidade na Paraíba que tem água parada e esgoto a céu aberto, onde seus vizinhos contraíram Zika e outras doenças transmitidas por mosquitos: “Eu estava preocupada e senti que não podia fazer nada para impedir que algo acontecesse com meu bebê. Eu só usava calças, mangas compridas, repelentes. Fiquei em casa, dentro de casa.”
Nas áreas pesquisadas, pesquisadores observaram que algumas mulheres e meninas não tinham acesso a informações abrangentes sobre saúde reprodutiva e a serviços do sistema de saúde público. Muitas não conseguem tomar decisões plenamente informadas sobre a gravidez ou evitar uma gravidez indesejada.
O relatório ainda cita o surto recente de febre amarela, doença que pode ser disseminada pelo mesmo mosquito, que matou pelo menos 240 pessoas no Brasil desde dezembro de 2016, o cenário de mudanças climáticas e o constante aumento das temperaturas como agravantes da disseminação das doenças transmitidas por mosquitos.
Segundo o Levantamento de Índice Rápido do Aedes aegypti (LIRAa), divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES), 99 dos 184 municípios pernambucanos estão em situação de risco para as chamadas “arboviroses”.
Ao todo, 88% das cidades têm risco elevado para a transmissão de dengue, zika e chikungunya. Nessas áreas, foi detectado grande número de residências com a presença do mosquito. O LIRAa mostra, ainda, que 64 municípios estão em alerta e 19 encontram-se em situação favorável.
Diante deste cenário, a HRW alerta que autoridades precisam fazer investimentos na “defasada infraestrutura de água e saneamento para controlar a reprodução dos mosquitos e melhorar a saúde pública” e que forneçam “informações abrangentes sobre saúde reprodutiva, serviços de saúde para mulheres e meninas, descriminalizem o aborto e garantam que crianças com síndrome de Zika tenham acesso de longo prazo a serviços que lhes proporcionem a melhor qualidade de vida possível”.
O Zika, o aborto e a falta de informação
Mulheres e meninas grávidas entrevistadas pelo relatório da HRW afirmaram que, durante suas consultas pré-natais, profissionais do sistema público de saúde não forneceram informações abrangentes sobre a prevenção da transmissão do Zika.
Desde 2015, relação entre a epidemia de Zika vírus e o surto de microcefalia fez as mulheres procurarem o aborto clandestino. A possibilidade da mulher decidir não ter o filho tem sido defendida pela antropóloga Debora Diniz, que luta para que o Supremo Tribunal Federal libere um pacote de medidas de saúde pública, incluindo a flexibilização do aborto.
“A epidemia é resultado de ineficiência do País no combate ao mosquito. Já fomos capazes de eliminar uma vez; se ele volta, quem tem que responder por isso não é a bacia do vizinho. Não há dúvida que houve demora para agir. Temos uma cena de epidemia onde as vítimas no sentido de maior dano são mulheres, pobres e nordestinas”, afirmou em entrevista ao HuffPost Brasil.
Desde 2005, mais de 900 mulheres morreram devido a abortos inseguros no Brasil – mortes, em grande parte, evitáveis. O risco de infecção por Zika durante a gravidez provavelmente levará ainda mais mulheres a buscar métodos inseguros e clandestinos de aborto, aponta o relatório da HRW.
Mais de 2.600 crianças no Brasil nascidas com microcefalia e outras condições do vírus Zika precisarão de apoio e cuidados no longo prazo, diz a HRW. “Seus principais cuidadores muitas vezes não recebem do governo e da sociedade o apoio integral de que precisam para criar crianças com deficiência, incluindo o apoio financeiro e logístico para ter acesso aos cuidados”, afirma o relatório.
Um pai contou à Human Rights Watch que ele teve que gastar quase todo o seu salário mensal para comprar medicamentos para o filho com síndrome de Zika.
Em 2017, o número de casos de Zika, assim como o número de bebês nascidos com deficiências relacionadas ao vírus, diminuiu drasticamente se comparado com o mesmo período em 2016, mas as autoridades não conseguem identificar a causa dessa redução, diz o relatório.
*Algumas mulheres e meninas tiveram seus nomes modificados para proteger sua privacidade.