As pessoas com deficiência na Constituição de 1988

Patricia Almeida

O primeiro grande feito político do movimento social organizado das pessoas com deficiência foi a mobilização para inserção das pessoas com deficiência no texto da Constituição de 1988.

print de tela do documentário, onde aparece panfleto com desenho do símbolo do cadeiramte e uma mulher na janela de Libras. Título - A Constituição e os portadores de deficiência.

“Os principais atores deste processo não estão mais aí, o Paulo Roberto Guimarães, que morava em Brasília na época e o Messias Tavares, de Pernambuco, que tinha relação direta com alguns parlamentares, incluindo o deputado Thales Ramalho, que era pessoa com deficiência. Eu fui a Brasília em 1987, com minha filha, Mel, na época com 2 anos”, lembra a ex especialista sênior do UNICEF em crianças com deficiência, Rosângela Berman-Bieler.

“Paulo e Messias contam como foi no livro e documentário da História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência”, afirma Izabel Maior, ex-Secretária Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e organizadora da publicação. 

O livro revela que a articulação do movimento das pessoas com deficiência para participar da Assembleia Nacional Constituinte ocorreu de duas maneiras:

  • Ciclo de encontros “A Constituinte e os Portadores de Deficiência”, organizado pelo Ministério da Cultura em 11 capitais brasileiras pelo Ministério da Cultura entre 1986 e 1987.

Participaram de todos os debates Cândido Pinto de Melo, do MDPD; Luzimar Alvino Sombra, assessor jurídico do Centro Nacional de Educação Especial
(Cenesp); e Paulo Roberto Guimarães, coordenador do Programa de Cultura e Portadores de Deficiência do Ministério da Cultura.

  • 3° Reunião de Conselhos e Coordenadorias Estaduais e Municipais de Apoio à Pessoa Deficiente, de 5 a 7 de dezembro de 1986 e que contou com representantes de coordenadorias e conselhos de todo o Brasil, além de entidades de e para pessoas com deficiência.

Após os encontros, era consenso no movimento a contrariedade em relação à adoção de um capítulo específico para tratar das pessoas com deficiência na Constituição.

Mas as propostas do movimento das pessoas com deficiência não foram incorporadas ao texto da Constituição da forma esperada, e o movimento preparou
a Emenda Popular n° PE00086-5 que contou com 32.899 assinaturas, conseguindo que as pessoas com deficiência estivessem em vários capítulos da carta magna.

Messias Tavares, em sua entrevista ao livro, destacou quais os ganhos conquistados na Constituição brasileira pelo Movimento das Pessoas com Deficiência: “Foi a inserção de um sem-número de normas, artigos, reconhecendo os direitos, e a partir dali havia como fazer uma referência e dizer: ”No artigo tal da Constituição eu tenho direito a isso”. Então, quando se ia propor uma reivindicação para qualquer nível de governo, havia um embasamento legal. Sem dúvida, esse foi o grande ganho, porque antes da Constituinte havia pouquíssimas normas legais específicas para a pessoa com deficiência na própria Constituição.”

Manuel Aguiar tinha a mesma opinião: “Tivemos grandes conquistas. Foi a primeira vez que o segmento foi referenciado em vários capítulos e artigos em uma Constituição brasileira. Na Saúde, na Seguridade e na Assistência Social, no Trabalho, na Acessibilidade, e não somente na Educação. Tudo, para nós, caía onde? Na educação! Tudo, cara.”… “Isso foi um marco, uma conquista de nossa Luta. Foi um divisor de águas. Como lhe disse, passei a ser uma pessoa”.

Alguns dos ativistas que participaram do processo:

Rosângela Berman Bieler, Izabel Maior, Maria Paula Teperino, Maurício Zeni, Lilia Pinto Martins, Chico Teófilo, Ethel Rosenfeld, José Carlos Morais, Ana Rita Paula, Lia Crespo, Lígia Assumpção Amaral, Cândido Pinto, entre outros.

Confira a íntegra do capítulo 4 do livro História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. No final do livro estão as entrevistas com ativistas.

O Movimento das Pessoas com Deficiência e a Assembleia Nacional Constituinte

Capítulo 4


O Movimento das Pessoas com Deficiência e a Assembleia Nacional Constituinte
A Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi um importante acontecimento
para o movimento das pessoas com deficiência, em decorrência da comoção e da
mobilização social diante da expectativa de uma nova Constituição. A história da
República brasileira foi marcada por dificuldades para implementar a democracia.
A República oscilou entre períodos liberais na Primeira República (1889-1930) com
instável experiência democrática (1945-1964) e períodos de regimes de exceção,
durante as ditaduras de Getúlio Vargas (1930-1945) e a ditadura militar (1964-
1985). Após o fim da ditadura militar, criou-se uma grande expectativa no Brasil
para a consolidação de um sistema democrático de governo efetivo e duradouro,
e, para isso, iniciou-se o processo de elaboração de uma nova Constituição. Todas
as esperanças dos brasileiros e das brasileiras que sofreram por 21 anos a
repressão do Estado comandado pelos militares foram depositadas na nova Carta
Magna. O movimento das pessoas com deficiência também participou desse
processo, na busca pela inserção de suas demandas no texto constitucional.
A Emenda Constitucional n° 26, de 27 de novembro de 1985, atribuiu
poderes constituintes aos membros da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal e determinou sua reunião, unicameralmente, em Assembleia Nacional
Constituinte (ANC), a partir de 1° de fevereiro de 1987. Um anteprojeto de
Constituição foi elaborado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais,
criada pelo Poder Executivo em 1986 e que ficou conhecida como “Comissão
Afonso Arinos”, por ser dirigida pelo jurista e ex-deputado federal Afonso Arinos
de Melo Franco.
O texto constitucional foi construído com base nos trabalhos de 24
subcomissões que compunham nove comissões temáticas. O Regimento Interno da
ANC determinou, dentre outras medidas, o recebimento de sugestões de órgãos
legislativos subnacionais, de entidades associativas e de tribunais, além de
parlamentares; a realização de audiências públicas pelas subcomissões para ouvir
a sociedade; a apreciação de emendas populares respaldadas em pelo menos 30
mil assinaturas; e a obrigatoriedade do voto nominal nas matérias
constitucionais.
Os trabalhos das comissões foram intensos e, entre os dias 7 de abril e 25 de
maio de 1987, ocorreram mais de 200 audiências públicas realizadas com as
subcomissões. Tanto os resultados das discussões nas subcomissões quanto as
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emendas populares foram encaminhados à Comissão de Sistematização. Em 24 de
novembro, o Projeto aprovado pela Comissão de Sistematização foi entregue ao
presidente da ANC. Entre fevereiro e setembro de 1988, o projeto foi discutido,
quando representantes das entidades da sociedade civil defenderam as emendas
populares. O plenário aprovou a redação final do texto em 22 de setembro e,
finalmente, em 5 de outubro, foi promulgada a atual Constituição da República
Federativa do Brasil, que, pela abertura dada à participação popular no processo
de sua elaboração – algo inédito no histórico constitucional do país –, recebeu a
adjetivação de “Constituição Cidadã”.
Até esse momento da história, em termos constitucionais, a única
referência aos direitos das pessoas com deficiência era a Emenda n° 12, de 1978,
conhecida como “Emenda Thales Ramalho”, que no seu artigo único define:. “É
assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica
especialmente mediante: I. educação especial e gratuita; II. assistência,
reabilitação e reinserção na vida econômica e social do país; III. proibição de
discriminação, inclusive quanto a admissão ao trabalho ou ao serviço público e a
salários; IV. possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.”
Segundo Messias Tavares, militante da FCD e coordenador da Onedef na
época da Constituinte, esta emenda foi gestada em Pernambuco, em discussões
entre a Associação de Deficientes Motores de Pernambuco (ADM), a Fraternidade
Cristã de Doentes e Deficientes (FCD) e o deputado Thales Ramalho, que possuía
uma deficiência física por sequela de um acidente vascular cerebral.
As pessoas com deficiência participaram ativamente das discussões da ANC.
Assuntos relacionados a esse grupo foram tratados na Subcomissão dos Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, subordinada à Comissão
Temática da Ordem Social, que realizou oito audiências públicas, sendo três
destinadas a discutir questões atinentes às pessoas com deficiência: a audiência do
dia 27 de abril, “Deficientes Mentais; Alcoólatras; Deficientes Auditivos”; a do dia
30 de abril, “Deficientes Físicos; Ostomizados; Hansenianos; Talassêmicos” e a do
dia 4 de maio, “Deficientes Visuais; Hemofílicos; Negros”.
A articulação do movimento das pessoas com deficiência para participar da
ANC ocorreu de duas maneiras: em 1986, por meio do ciclo de encontros “A
Constituinte e os Portadores de Deficiência”, realizado em várias capitais
brasileiras pelo Ministério da Cultura entre 1986 e 1987.
Os debates no âmbito nacional sobre a nova Constituição tiveram início já
em 1986, mesmo antes da instalação da ANC. Um importante fator que fomentou
essas discussões foi a presença de Paulo Roberto Guimarães, militante do
movimento das pessoas com deficiência desde o final da década de 1970 e
membro da Comissão Organizadora do 1° Encontro Nacional de Entidades de
Pessoas Deficientes, realizado em 1980, no Ministério da Cultura. Em 1986, Paulo
Roberto era responsável pelo “Programa de Cultura e Portadores de Deficiência”
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e organizou um ciclo de encontros, durante o segundo semestre de 1986, em 11
capitais brasileiras. Paulo Roberto Guimarães foi o cidadão “não parlamentar”
que mais pronunciamentos fez durante as audiências públicas na Assembleia
Nacional Constituinte.
Durante a última audiência da Comissão da Soberania e dos Direitos e
Garantias do Homem e da Mulher, Paulo Roberto falou logo depois do ex-
governador Leonel Brizola.
“É com muita alegria e admiração rara que vejo que Vossa Excelência
também se preocupar com os não indivíduos, os exilados, os velhos. Sua
Excelência também se preocupa com os não-indivíduos, os exilados
internos, os apátridas. Vossa Excelência não é mais um exilado, mas muitos
ainda o são. Os negros e os velhos são exilados neste país. Nós mesmos
somos exilados dos banheiros, das escolas das instituições, dos palácios, da
nossa própria casa. Somos exilados internos deste país, e o Sr. Governador
percebeu isso. Alias, ele é positivamente esperto por que percebe a
realidade, justamente porque viveu a lógica dos que perderam a cidadania.
Somos os sem sujeito, histórica, política e culturalmente deserdados, e
vamos, com certeza, herdar cultura. (…) A soberania de uma nação reside
no fato de ela poder respeitar todos seus integrantes. Aí sim, ela será
forte. Como pode haver uma nação forte se seus indivíduos são mutilados
em progressão geométrica, enquanto o assistencialismo e o paternalismo
auxiliam em progressão aritmética?”
Na mesma ocasião, Paulo Roberto concluiu:
“Senhor Governador, estou encantado com as suas palavras. E acho que as
autoridades brasileiras precisam parar de falar que os nossos problemas são
de saúde, de educação e, quando muito, de transporte. Na verdade, o nosso
grande problema é de direito, de cidadania, de existência. Estamos sendo
massacrados, quem não sabe disso? Os pobres estão sendo massacrados.
Desprezam e massacram toda a forma de pobreza, a deficiência, a velhice,
o fato de ser menor e não ser criança. Este país está sendo massacrado,
completamente massacrado.”
Paulo Roberto publicou, em 1990, o livro “Cultura, Diferença e
Deficiência”, coletânea de artigos e pronunciamentos.
Ele recorda que naquela época não existia CORDE ou qualquer outro órgão
gestor da política da pessoa com deficiência. “Durante a Constituinte, não existia
nada; tínhamos que começar do zero. Nessa época, quem elaborava a política do
governo para pessoas com deficiência era o Ministério da Educação e o da
Cultura”. Ainda segundo Paulo Roberto, o trabalho da Educação ainda era muito
voltado às associações filantrópicas e assistenciais. “A primeira vez que se teve
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um trabalho do ponto de vista da garantia dos direitos das pessoas com
deficiência foi via Ministério da Cultura”.
O ciclo promoveu encontros em São Paulo – em duas ocasiões –, Rio de
Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Recife, Florianópolis,
Belém, Curitiba e Goiânia.
Participaram de todos os debates Cândido Pinto de Melo, do MDPD; Luzimar
Alvino Sombra, assessor jurídico do Centro Nacional de Educação Especial
(Cenesp); e Paulo Roberto Guimarães, coordenador do Programa de Cultura e
Portadores de Deficiência do Ministério da Cultura. O objetivo com o ciclo de
encontros era estimular o debate e articular as pessoas com deficiência para
reivindicarem direitos e garanti-los no texto constitucional. Após o término dos
encontros, o Ministério da Cultura continuou a auxiliar o movimento das pessoas
com deficiência assessorando e patrocinando viagens a Brasília de alguns líderes
para negociações com parlamentares constituintes.
Uma das principais reivindicações das pessoas com deficiência discutida nos
encontros era que o texto constitucional não consolidasse a tutela, e, sim, a
autonomia. Nesse sentido, os argumentos do movimento não eram consentâneos
ao anteprojeto de Constituição, elaborado pela Comissão Provisória de Estudos
Constitucionais, que tinha um capítulo intitulado “Tutelas Especiais”, específico
para as pessoas com deficiência e com necessidades de tutelas especiais. O
movimento não queria as tutelas especiais, mas, sim, direitos iguais garantidos
juntamente com os de todas as pessoas. A separação, na visão do movimento, era
discriminatória. Desde o início da década de 1980, a principal demanda do
movimento era a igualdade de direitos, e, nesse sentido, reivindicavam que os
dispositivos constitucionais voltados para as pessoas com deficiência deveriam
integrar os capítulos dirigidos a todos os cidadãos.1 O movimento vislumbrava,
portanto, que o tema deficiência fosse transversal no texto constitucional.
A segunda etapa de discussões do movimento ocorreu entre o final de 1986
e 1987, nos encontros de conselhos, assessorias e coordenadorias de pessoas com
deficiência de todo o Brasil. Durante a 3° Reunião de Conselhos e
Coordenadorias Estaduais e Municipais de Apoio à Pessoa Deficiente – realizada
em Belo Horizonte, de 5 a 7 de dezembro de 1986 e que contou com
representantes de coordenadorias e conselhos de todo o Brasil, além de
entidades de e para pessoas com deficiência –, o movimento aprovou uma
proposta a ser levada à Assembleia Nacional Constituinte. No documento que
sintetizava as propostas (QUADRO 4) para a Constituição, a preocupação em não
se criar um capítulo específico para as pessoas com deficiência ganhou destaque,
conforme relatado em um jornal do movimento:
1 A CONSTITUINTE que…, 1986.
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A alternativa de incluir na Constituição um texto, à parte, abordando,
simultaneamente, os direitos fundamentais das pessoas portadoras de
deficiência, é admissível, mas, com muita probabilidade, reforçadora da
segregação e do estigma. A distribuição da matéria pelos temas básicos da
Carta Magna contribui para o reconhecimento de que as pessoas portadoras
de deficiência mereçam ter seus direitos assegurados nos lugares próprios,
onde são disciplinados os direitos de todos os cidadãos.2
Era, portanto, consenso no movimento a contrariedade em relação à adoção
de um capítulo específico para tratar das pessoas com deficiência na Constituição. O
documento que consolidou as discussões organizadas pelo Ministério da Cultura e
dos encontros de conselhos, assessorias e coordenadorias resultou nas propostas
aprovadas na 3° Reunião de Conselhos e Coordenadorias. Esse documento foi a base
do texto entregue ao presidente da subcomissão das minorias, deputado Ivo Lech.
Após a fase de sistematização do texto da Constituição a ser votado em
plenário, as propostas do movimento das pessoas com deficiência não foram
incorporadas da forma esperada. Em decorrência disso, o movimento preparou
um projeto de Emenda Popular e iniciou campanhas em todo o Brasil para
recolher as 30 mil assinaturas necessárias para submetê-lo à ANC.
A Emenda Popular n° PE00086-5 foi submetida à ANC sob a responsabilidade
de três organizações do movimento das pessoas com deficiência, a Onedef, o
Movimento de Defesa das Pessoas Portadoras de Deficiência (MDPD) e a
Associação Nacional dos Ostomizados, e contou com 32.899 assinaturas. A
proposta continha 14 artigos sugerindo alterações no projeto da Constituição,
onde coubessem temas como igualdade de direitos, discriminação,
acessibilidade, trabalho, prevenção de deficiências, habilitação e reabilitação,
direito à informação, educação básica e profissionalizante.
Messias Tavares de Souza, à época coordenador da Onedef, foi o escolhido
pelo movimento para defender a Emenda Popular na Assembleia Nacional
Constituinte. Em discurso pronunciado no plenário, afirmou que várias das
propostas das pessoas com deficiência não estavam sendo contempladas no
texto constitucional. Messias Tavares expôs um histórico das lutas das pessoas
com deficiência por autonomia, destacou as diferenças entre as organizações
de e para pessoas com deficiência e criticou o relatório da Subcomissão dos
Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, no qual as
propostas do movimento das pessoas com deficiência perdiam espaço para as
das entidades assistencialistas:
2 O QUE foi …, 1987.
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A organização de entidade de cunho assistencial e paternalista, no Brasil,
começou há mais de trinta anos. Cabe a ela, historicamente e ainda hoje,
desafogar a consciência pesada, coletiva, do sistema „feudal‟ e capitalista
emergente, provocada pela miséria progressiva e a crescente perda do valor
do ser humano, em prol do culto à máquina, ao capital.
No decorrer dos anos 50 e 60, a miséria causada pela pobreza e
deficiências, se organiza nos grandes centros. A esmola disfarçada ou o
subemprego, como a venda organizada de balas, vêm criar as pequenas
iniciativas de organização, sem liberdade ou usando a exploração, o que
perdura até hoje.
Na década de 70, os portadores de deficiência, bem como os negros, as
mulheres e outros grupos da sociedade civil, resolvem se organizar, por
uma questão de sobrevivência. O abandono e a atomização, pelas quais
passam as minorias, chegam a um grau insuportável. Surgem, então, pelos
recantos mais politizados do País, associações que, ainda usando o lazer
como pretexto, promove a conscientização, comandadas por líderes
eventuais e raros. Implantam-se então as discussões regionais, sem que
cada uma saiba da existência das outras.
De 1979 até nossos dias, formam-se as organizações nacionais de cegos,
hansenianos, portadores de deficiências físicas, surdos, ostomizados,
talassêmicos, diabéticos, renais crônicos, paralisados cerebrais, entre
outros, sem que haja uma representação geral destes segmentos, como
resposta a uma necessidade, que já se faz sentir.
[…].
O relatório inicial da Subcomissão tinha o tom do relatório da Federação
Nacional das APAEs. Estava em jogo a vitória do passado assistencialista e
paternalista e o presente de luta por direitos burgueses, mínimos e
necessários à cidadania, à possibilidade de sermos sujeitos além de objetos
das políticas da sociedade e do governo.
O que Messias Tavares defendia, na ocasião do discurso, era que o texto
constitucional garantisse às pessoas com deficiência a possibilidade de uma vida
autônoma e de exercício pleno da cidadania. Voltava-se, dessa forma, às
principais bandeiras de luta do movimento desde o início de sua organização: a
autonomia e o protagonismo.
Na emenda popular sugeriu-se, por exemplo, para o capítulo “Dos Direitos
Individuais”, a seguinte redação: “Art. […] Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas ou por
ser portador de deficiência de qualquer ordem.” A intenção era inserir a
explícita igualdade de direitos para as pessoas com deficiência. Na redação final
da Constituição determinou-se: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza”, sem especificá-las.
Na emenda popular também se propunha transformar a “aposentadoria por
invalidez” em “seguro-reabilitação”. O objetivo era permitir que a pessoa com
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deficiência trabalhasse em uma função diferente após a reabilitação, mas, quando
em situação de desemprego, contaria com o seguro, que subsidiaria o período de
recolocação profissional. Essa foi uma das propostas que não foi incorporada à
Constituição promulgada em 1988. Proposta diferenciada substituiu esse artigo e
foi encaminhada por outra Emenda Popular, n° PE00077-6, de autoria da
Associação Canoense de Deficientes Físicos, da Escola Especial de Canoas e da Liga
Feminina de Combate ao Câncer, e que previa o pagamento de um salário mínimo
mensal às pessoas com deficiência que não tivessem meios de se manter. Essa
proposta gerou o Benefício da Prestação Continuada (BPC).
Para parte do movimento das pessoas com deficiência, a proposta do BPC
representa uma tutela que afronta os paradigmas que estimularam o surgimento
de organizações de pessoas com deficiência, ocorrido desde o final da década de

O principal argumento dos que são contrários ao BPC é que ele estimula a
tutela ao invés de proporcionar às pessoas com deficiência mecanismos de
conquista da autonomia. Teresa Costa d‟Amaral, à época coordenadora da
Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
(CORDE), explica que a proposição do BPC partiu de uma iniciativa individual:
Por exemplo, tem um fato interessante da Constituinte: há um artigo que
cria o Benefício da Prestação Continuada. E, em relação à criação desse
benefício, o movimento era contra, eu fui contra. Mas uma senhora, mãe
de um deficiente do Rio Grande do Sul, resolveu que ela ia fazer passar um
benefício para o filho dela que era deficiente intelectual e para os outros
deficientes. Conseguiu o número de assinaturas que eram necessárias para
uma Emenda Popular e conseguiu incluir sua proposta. (Teresa Costa
d‟Amaral. Depoimento oral, 28 de abril de 2009)
O movimento das pessoas com deficiência articulou-se de forma efetiva em
torno do objetivo de incorporar suas demandas no texto constitucional. Mesmo
quando, ainda durante a fase de sistematização, tais demandas não foram
incorporadas ao projeto do texto constitucional, o movimento mostrou força e
se rearticulou rapidamente na elaboração da emenda popular. O principal êxito
dessa luta foi o fato de o movimento ter conseguido superar a lógica da
segregação presente na proposta do capítulo “Tutelas Especiais” e incorporar,
mais do que direitos ao longo de todo o texto constitucional, ao menos pelo viés
legal, o princípio da inclusão das pessoas com deficiência na sociedade.
As impressões do movimento sobre as conquistas na Constituição de 1988
podem ser percebidas nos depoimentos de Rosângela Berman Bieler e Romeu
Kazumi Sassaki:
A gente conseguiu, na reforma constitucional, distribuir o tema da
deficiência em todos os artigos constitucionais, o que já é vanguarda. […]
Quando você pega um texto constitucional, há duas opções estratégicas: ou
se cria um bloco inteiro sobre deficiência […], pega tudo e joga ali naquela

caixinha, que não só é mais fácil de botar como é fácil de tirar; ou se

integra o tema em todo o corpo constitucional, nos tópicos do direito do

cidadão, do direito à saúde, do direito à educação. (Rosângela Berman

Bieler. Depoimento oral, 2 de fevereiro de 2009)

Em 1986, já estava pronto o anteprojeto da Constituição. Se você comparar o

anteprojeto com a Constituição de 1988, vai ver a grande diferença, o

quanto nós conseguimos interferir. O anteprojeto era muito fraco, com

aquela visão antiga, paternalista, sobre pessoas com deficiência. Ali

realmente nós crescemos. (Romeu Kazumi Sassaki. Depoimento oral, 5 de

fevereiro de 2009)

O esforço de unificação nacional das pessoas com deficiência, durante a

década de 1980, passou por rearranjos políticos importantes que resultaram na

organização do movimento por grupos com a mesma manifestação da deficiência.

Esse rearranjo foi visto por muitos militantes da época como insucesso na tentativa

de criar uma grande organização nacional, unificada em torno da Coalizão. No

entanto, a experiência de articulação do movimento adquirida no início da década

de 1980 foi bastante profícua para que, independentemente do tipo de

deficiência, se conseguisse incorporar os princípios de igualdade na Constituição

de 1988.

Fonte: https://www.inclusivenews.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Movimento1.pdf

Documentário: https://youtu.be/uSZsJs3TN70?si=nYl4cDD0BOjXbAQS

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