Texto de Francis Guimarães
Quem não gosta daquele cafezinho, não é mesmo? Quase todos nós paramos para tomar um café e dar aquela relaxada. E convido você a viajar nesta leitura e experimentar um café diferente. Um café bebido diariamente por muitas pessoas, enquanto outras fingem que ele não existe. E há ainda uma parcela da sociedade que realmente desconhece sua existência.
Lá estou eu, pensando nas diversas barreiras de acessibilidade e inclusão presentes em todas as esferas da sociedade. Reflexões bombardeiam minha cabeça e me fazem tentar criar estratégias para resolver conflitos que venho vivenciando. Leio artigos, livros, faço pesquisas, encontro muito conteúdo que fala sobre acessibilidade e sobre nossos direitos como pessoas com deficiência. Por alguns instantes, chego a me emocionar ao estar de frente para o arcabouço jurídico, lendo tantos artigos, incisos e belas redações que garantem direitos às pessoas com deficiência no Brasil.
Ao mesmo tempo, desespero-me ao ver que quase nada do que está no papel conseguimos, de fato, colocar em prática. Mas, em busca de resiliência, tento desopilar. Visto meus calçados, pego o equipamento de trabalho da minha cão-guia e decido caminhar pela cidade. Chego à calçada e dou o comando para minha cão-guia, Una: “Em frente!” E lá vamos nós, caminhando rumo ao centro da cidade, com o objetivo de esquecer os conflitos que martelaram meus pensamentos durante todo o dia. Porém, logo ao percorrer algumas quadras, chegamos a um cruzamento extremamente perigoso. Tateio, encontro o poste, encontro a botoeira no semáforo sonoro e pressiono o botão. Mas o sinal sonoro está desativado. Preciso esperar que alguém me ajude a atravessar a avenida ou confiar na minha audição e arriscar a travessia.
Com minha habilidade auditiva, atravesso a avenida e sigo em frente, agora tentando esquecer não apenas os pensamentos anteriores, mas também o maldito sinal sonoro desligado. Após percorrer um longo caminho, já voltando para casa, resolvo entrar em uma cafeteria e tomar aquele cafezinho para relaxar. Entro na cafeteria e vou até o balcão:
— Boa tarde!
Um senhor, com a voz desconfiada, responde:
— Boa tarde!
— O senhor poderia me conduzir até uma mesa?
Ouço a resposta:
— Cachorro não pode entrar aqui.
— Senhor, não se trata de um simples cachorro. Ele é um cão-guia, eu sou cego e este cão é treinado. Existe uma legislação que garante meu acesso.
O homem responde:
— Mas não posso aceitar. Ele vai sujar o restaurante. Vou colocar uma mesinha para você lá fora, na rua.
Novamente argumento, agora um pouco mais impaciente:
— Não, senhor. Não sentarei na rua, vou sentar aqui dentro. Já lhe expliquei que é lei, e o senhor tem que respeitá-la.
Dou o comando para meu cão-guia encontrar um assento. Encontro a mesa, sento-me e fico com o braço erguido, sinalizando que preciso de atendimento. Ouço o homem conversar com uma mulher, que lhe explica que sim, eu poderia ficar ali. Ela diz ao homem:
— Ele pode ficar. Este é um cachorro especial, que carrega os ceguinhos de um lado para o outro.
Apesar de ser reduzido a um “ceguinho”, e do conceito um pouco deturpado sobre o cão-guia, ao menos aquela mulher sabia da existência de um cão-guia. Ela chega até a minha mesa:
— Meu querido, perdoe o mal-entendido. O que deseja?
— Um café preto e um pão de queijo, por favor.
Depois de algum tempo, ouço o “track track” da colher mexendo algo que se aproximava de mim. Eu imaginei que poderia ser o café, mas não quis acreditar, já que eu não bebo café doce. Ela me traz o pão de queijo e o café, avisando que o cafezinho e o pãozinho estavam muito quentes, falando comigo como se fala com uma criancinha. Quando provo, percebo que o café está extremamente doce. Novamente levanto a mão e explico à senhora que meu café é sem açúcar. Ela insiste que eu beba, dizendo que adoçou com muito carinho e que não poderia trocar o café, pois ela está acostumada a fazer assim para outro cego que frequenta o estabelecimento.
Neste momento, meu desejo já não era mais esquecer nada, nem mesmo tomar o café, mas sim ser abduzido por uma nave espacial que me levasse para uma dimensão de seres mais esclarecidos, onde o capacitismo fosse menos presente. Esse café doce, repugnantemente doce, representa muito mais do que um simples café adoçado. Esse café fala sobre o despreparo da sociedade diante das adversidades da vida. É a prova de que nós, pessoas com deficiência, ainda somos muito desrespeitados, inclusive em nosso direito de escolha. Muitas vezes, nem sequer somos vistos como consumidores.
Talvez aquela xícara de café tenha representado, naquele momento, a gota d’água que faltava para transbordar meu mar de indignação. O café doce, somado à solicitação da senhora para que eu o tomasse mesmo estando doce, é a sociedade nos dizendo: aceite o sinal sonoro desligado, aceite o descumprimento da Lei Brasileira de Inclusão, rasgue a lei que dispõe sobre o cão-guia. Aquele café representa a resistência das pessoas em implementar acessibilidade em seus produtos, sejam eles físicos ou digitais. Porque de um café doce, não temos como tirar o açúcar, diferentemente do café amargo, que está em nossas mãos adoçar ou não.
Quando ouvi daquela senhora: “Beba, adocei com muito carinho, como faço para outro cego que vem aqui”, foi o claro eco de uma grande parcela da sociedade que diz: “Cegos, vocês são todos iguais!” E sim, a sociedade insiste em dizer isso. Desde que me mudei para Criciúma-SC, já perdi a conta de quantas vezes fui chamado de Valentim, que é outra pessoa cega que caminha pela cidade. Um homem totalmente diferente de mim, mas que para muitos somos a mesma pessoa, porque não nos enxergam, enxergam apenas a nossa deficiência.
Esse café também representa a Lei de Cotas, que existe, mas inclui pouca gente. E os poucos que são incluídos acabam por engolir o café doce, em situações muitas vezes adversas a tudo aquilo que está na lei. Muitos de nós nos tornamos meros preenchimentos de cotas. Na cafeteria da vida, o justo seria que todos nós pudéssemos escolher como beberíamos o nosso café, mas a vida não é justa, e as leis não são cumpridas. Se essa senhora que serve o café fosse uma construtora civil, seria daquelas que deixa a calçada e a faixa onde passam os carros na mesma altura, impossibilitando que as pessoas cegas se localizassem. Se ela fosse uma desenvolvedora de software, seu código seria sem semântica, sem descrição de imagem, totalmente desordenado, com fundo e letras claras, tornando péssima a experiência de uso para pessoas cegas e com baixa visão. Se essa senhora entrasse para a vida pública, seria daquelas que diz que pessoas com deficiência atrapalham, que pessoas com deficiência não têm vez.
Depois de eu dizer que não tomaria o café, que se ela não trocasse, eu não pagaria por ele, e que falasse comigo como se fala com um adulto, não como se eu fosse uma criancinha, eu disse: chega de cafezinho, xicrinha e pãozinho, eu quero beber um café amargo. E eu não sou igual a ninguém. Meu nome é Francis Guimarães, e meu café é amargo, muito amargo e muito quente. Ela trocou o café, extremamente contrariada, e eu tomei aquele café muito desconfiado, pensando que ela poderia ter cuspido ou colocado alguns pentelhos na minha xícara. Fui até o caixa para pagar a conta, mas, chegando lá, a máquina era de touchscreen. Era a maior prova de que o universo tenta constantemente testar minha paciência.
Cada vez que me deparo com uma máquina de cartão touchscreen, é como se eu ouvisse: “Por ser uma pessoa cega, você não tem direito ao sigilo das suas senhas. Você, por ser uma pessoa cega, não é consumidor. Você, por ser uma pessoa cega, não tem direito à autonomia e liberdade.” É essa a mensagem que essas máquinas nos apresentam se pensarmos no que representa ter que falar nossa senha para outra pessoa.
Felizmente, eu tinha um cartão de crédito com pagamento por aproximação. Paguei a conta e voltei quase correndo para casa, mas com os pensamentos martelando ainda mais forte. O que é preciso fazer para virar este jogo?
Reconheço e sou grato pela luta de muitas pessoas em prol da acessibilidade, inclusão e no combate ao capacitismo. Mas até quando beberemos doses desse repugnante café doce?
Existe uma pergunta que constantemente faço a mim mesmo: o que estou fazendo para mudar o mundo, para mudar essa realidade tão cruel?
Às vezes, não encontro de forma clara a resposta.
E você? Já se perguntou qual café está bebendo e, principalmente, qual café tem servido?
Francis Guimarães
Pedagogo – Pós-graduado em Educação Especial
Analista de Qualidade Digital