A história de hoje vai mostrar um elemento fundamental para que gente “Assim como Você” atinja o sucesso: bons amigos.
O doutor Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, 49, ficou cego em pleno tempo de faculdade, aos 23 anos. Para se tornar advogado, os colegas da turma de 1984 da Faculdade de Direito Largo de São Francisco, da USP (Universidade de São Paulo) tida como a melhor do país, gravavam o conteúdo das aulas diariamente para que ele pudesse estudar.
Hoje, doutor Ricardo é procurador do trabalho atuando na Procuradoria Regional do Trabalho da 9ª Região, em Curitiba (PR). Ele, que afirma ter ganhado um presente com a cegueira, pois passa o tempo todo vendo caleidoscópios, foi aprovado em 6º lugar em um concurso em que disputaram 5.000 candidatos.
O procurador, que tem mestrado e doutorado, chegou a ser reprovado em um concurso para juiz, no qual havia passado no exame escrito, em 1990, com a justificativa de que a Justiça não poderia aceitar uma pessoa cega. Ele aprendeu a linguagem Braile, mas devido à dinâmica do trabalho no Ministério Público, se utiliza mais da tecnologia e usa programas que lêem os documentos direto do computador.
Agora, abram bem os olhos ou aumentem o volume do seu som, e aproveitem a entrevista que fiz com o homem que vê caleidoscópios, o marido da Suzana e pai da Maíra e da Iara.
Assim como você: Como o sr. foi reprovado num concurso de juiz por ser cego, quer dizer, então, que a máxima que Justiça é cega não é verdade?
Doutor Ricardo Tadeu: O Judiciário, à época do meu concurso, desconhecia as possibilidades reais de um deficiente visual. Preocupados com a segurança da Justiça e a minha própria segurança, acabaram me reprovando. O Poder não estava pronto para uma pessoa cega naquela ocasião. Hoje em dia, tudo mudou e tenho sido convidado para disputar uma vaga nos tribunais de segunda instância. Estou pensando no assunto. Gosto muito do Ministério Público. Entendo que atualmente as dúvidas já estão superadas sobre as minhas capacidades. Acredito que um dia uma pessoa cega vai conseguir ser juiz e pode ser breve.
Assim como você: Qual a cor da cegueira do sr.?
Doutor Ricardo Tadeu: Cada um vê sua cegueira de um jeito. Depende das referências que você tenha tido, se chegou a enxergar em algum momento da vida ou não. No meu caso, tenho uma visão muito bonita. Devo ter algum resíduo de funcionamento da retina, bem pequeno, menos de um 1%, e isso me proporciona uma visão muito interessante. Vejo formas geométricas se misturando a cores que vão se intercalando: amarelo, verde, vermelho, azul. É muito bonito. Me lembra muito um caleidoscópio. Acho que é a resposta do cérebro ao mínimo de luz que ele consegue captar, mas não tem nada a ver com a iluminação externa. Considero essa visão como um prêmio que ganhei ao ficar cego.
Assim como você: Por que as empresas continuam oferecendo apenas trabalhos de baixa qualificação para as pessoas com deficiência?
Doutor Ricardo Tadeu: Você está colocando a questão de um ponto de vista bastante otimista. Nem estas vagas mais simples grande parte das empresas estão oferecendo. Elas sempre encontram obstáculos para contratar pessoas com deficiência. E existe uma corrente muito forte, principalmente aí em São Paulo, contra a lei de cotas no mercado de trabalho. Em relação ao progresso para vagas mais qualificadas, acho que falta uma sintonia fina, é uma questão muito complexa e estamos numa etapa muito inicial. Embora a lei de cotas seja de 1991, ela começou a ser aplicada em 2000, quando foi regulamentada. Na Europa, as leis de cotas têm 50 anos. Acho que vamos levar algumas décadas para amadurecer a legislação. O que não é possível é abdicar deste direito.
Assim como você: O sr é um grande craque no drible da deficiência. Conta um pouco os gols que o sr. marcou e os tombos que o sr. levou.
Doutor Ricardo Tadeu: Vejo nos outros os problemas que eu vivo e vivi. Há de ter consciência de que estamos transformando a sociedade brasileira e não somente em relação à visão sobre a pessoa com deficiência, mas em relação ao próprio processo democrático. Acho que a luta dos grupos mais vulneráveis é uma luta inerente ao amadurecimento da democracia. As mulheres lutam por suas questões, os negros no Brasil lutam por suas ações afirmativas, os homossexuais procuram seu espaço e seus diretos. Na minha trajetória pessoal, o mais difícil eu pontuo o meu desgaste e as minhas responsabilidades de representar bem os cegos. Sou o único membro do Ministério Público do país a ter essa condição. Meu trabalho é muito observado e sou rigoroso no que faço. Quanto às conquista, ressalto que sou fruto de um grupo que me cerca, dos meus colegas da turma de 1984, que sempre rendo homenagens, da minha família, da minha mulher. As pessoas não devem acreditar nas barreiras que são impostas a elas, mas, sim, em suas capacidades de vencê-las. Não fiz nada sozinho e tive muitos privilégios na vida.
Assim como você: O sr. acredita que há uma projeção de falta de capacidade intelectual na pessoa com deficiência?
Doutor Ricardo Tadeu: Não. Não avalio assim. Acho que muita gente olha a pessoa com deficiência com desconhecimento e tentam a superprotegê- las ou subestimá-las. É uma questão cultural. À medida que a gente é conhecido e se manifesta, passa a haver um respeito muito grande. É preciso romper a barreira do desconhecimento. Não que, necessariamente, as pessoas considerem a pessoa com deficiência incapaz. É que, necessariamente, não conhecem o assunto.
Escrito por Jairo Marques, em 19/06/2008, às 22h27