por Lucio Carvalho
Em vésperas do Dia do Índio, impressiona a notícia de que – como os espartanos faziam no Monte Taijeto – populações indígenas do Brasil sacrificam crianças que nascem com algum tipo de deficiência. Na verdade fazem isso há anos, e não poucos anos. É uma tradição cultural que eles querem ver respeitada, tanto que lideranças das nações Yawalapiti, do Mato Grosso, e Kayapó, do Pará, denunciaram à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados duas organizações evangélicas que sequestrariam essas crianças sob o pretexto de salvá-las do infanticídio. Para os indígenas em questão, não basta eliminar do convívio social crianças com síndrome de Down e outras deficiências: elas devem ser mortas. Certamente, em sua mitologia, essas crianças representam ser o que, na realidade, não são. São inúmeras as versões culturais dadas às pessoas com deficiência. Podem ser anjos, podem ser demônios – isso não importa tanto quanto o fato de que a sua condição humana e seu destino encontram-se na dependência de alguém que realize essa interpretação e tenha o poder de fazer a opção entre deixá-las viver ou não. *
A proteção das populações indígenas ainda é percebida pela população de um modo geral e também por alguns grupos de defesa dos direitos humanos como meramente uma questão conservacionista. Preservar essas pessoas de qualquer relação com outros grupos sociais, a pretexto de saldar uma dívida colonial, significa insistir em que os indígenas são seres inferiores, que devem ser tutelados e mantidos conservados, isentos do desafio de dialogar com a diversidade sócio-cultural e negando qualquer contribuição que, por sua parte, possam oferecer à sociedade. Coincidentemente, mentalidade semelhante existe ainda hoje também em relação às pessoas com deficiência, principalmente às pessoas com deficiência intelectual. Não por acaso figuravam até o Novo Código Civil, de 2002, praticamente como um grupo único, no Código Civil brasileiro de 1916 eram descritos assim: “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos, os loucos de todo o gênero, os surdos-mudos, que não puderem exprimir sua vontade” e “os maiores de 16 anos e menores de 21, os pródigos (pessoas que assumem comportamentos irresponsáveis) e os silvícolas”.
Apesar dessa visão datar de 1916 e de uma nova concepção de direitos humanos haver vicejado no mundo inteiro principalmente a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e instrumentos jurídicos internacionais posteriores a ela (a Declaração Universal dos Direitos da Criança é de 1959 e a recente Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que é o mais recente tratado internacional de direitos humanos incorporado à legislação constitucional brasileira, é de 2008) e ainda, no caso da legislação brasileira, do Estatuto do Índio, de 1973, a compreensão obtida no senso comum e também por setores até mesmo dentro do âmbito jurídico ainda está muito marcada por essa visão incapacitante. A relação que a sociedade brasileira mantém com as populações indígenas, a bem da verdade, ainda está muito bem representada na imagem caricatural do colonizador que troca bugigangas por ouro e prata. Hoje, trocam-se territórios para o agronegócio por muito pouca coisa ou mesmo coisa nenhuma. Além desse ponto, ainda é muito tímida a interlocução entre as fronteiras das reservas e, quando ocorre, não poucas vezes é no sentido de trazer condutas depredadoras e extrativistas às próprias populações indígenas, desfazendo sua própria cultura de relação com os recursos naturais. Em essência não há nada de errado nisso – afinal esse é o modo de produção dominante do lado de fora da reserva, a não ser que isso desfaz um pouco a aura de ingenuidade perpétua que ainda é veiculada aos índigenas de um modo geral. Afinal, isso mostra que as relações de trocas (e não apenas as trocas simbólicas) estão acontecendo e marcando em definitivo o presente e o futuro dessas pessoas.
O horror da situação vivida por estas crianças, como mencionado, ainda traz um outro componente como carona. O fato de que organizações vinculadas a instituições religiosas, sob o pretexto de práticas de salvação, estariam agindo criminosamente no sequestro de crianças pertencentes a grupos vulneráveis. Estes fatos estão evidentemente ocorrendo à margem da legalidade. Nenhuma pessoa, grupo, entidade, instituição ou governo tem a prerrogativa do sequestro de quem quer que seja. Assim como o infanticídio agride frontalmente os direitos fundamentais da pessoa humana mesmo em grupos mantidos à deriva dos direitos civis, o sequestro é crime hediondo. O fato em si invoca a atenção das autoridades legais porque crimes estão sendo cometidos mas, além disso, provocam a sociedade a refletir sobre as situações-limite com que se defrontam os direitos humanos.
Se o respeito a diversidade significasse puramente a cristalização dos direitos, muitos outros horrores permaneceriam intocados pela sociedade. Os avanços no respeito aos direitos humanos das minorias excluídas devem-se mais ao fato de que há um confronto e uma dinâmica social em questão e que seus atores não são apenas o objeto final dos direitos, mas seus agentes. A manutenção da imagem do bom-selvagem ou do canibal são ambas retóricas do imobilismo. Se como perspectiva futura transparece a manutenção dessa imagem, é sinal de que pouco avançou-se, do descobrimento para cá, no sentido de apropriação social dos valores culturais dos povos indígenas. Essa manutenção explica também como atos de selvageria como estes podem continuar acontecendo, visto que o tempo histórico de algumas populações indígenas permanece como congelado, ao passo em que o mundo transforma-se e novos princípios ético-políticos entre os grupos sociais, baseados em valores e direitos universalizados, são estabelecidos passando a emprestar dignidade, em primeiro lugar, às pessoas humanas de modo indistinto.
* A notícia completa sobre o fato está em http://www.diariodepernambuco.com.br/2009/04/18/brasil5_0.asp
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