por Guga Dorea
O mundo contemporâneo vive um momento intenso de transformação, sendo o progresso tecnológico o carro chefe nesse processo. A escola, portanto, deve preparar o adulto do futuro para enfrentar uma realidade em avassaladora metamorfose. Frases como essa estão a toda hora surgindo nos meios de comunicação de massa. Mas o que é preparar esse aluno e como o educador está incumbido dessa tarefa?
Encerrando mais um ciclo em contato direto com professores das redes pública e particular, tenho cada vez mais sentindo a necessidade de resgatar o pedagogo e pensador Paulo Freire. Não pretendo, como tenho feito, escrever sobre a inclusão da chamada pessoa com deficiência, ainda mais que a educação dialógica proposta por ele já inclui a todos, indiscriminadamente.
Freire deixou um desafio instigante para quem deseja pensar as reais transfigurações pelos quais passou, não só a educação, mas a nossa sociedade nos últimos tempos. No ainda atual “Pedagogia do Oprimido”, além de estar preocupado com o tema da liberdade, tão difícil de conquistar nos dias de hoje, ele buscou, sobretudo, a conexão teoria/prática para debater a relação educador-educando. Como o professor está transferindo seu suposto saber?
“Falar da realidade, como algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação” (Freire, 2005:65).
Nesse contexto, a relação é de submissão. De um lado, o agente do saber, aquele que deposita envelopes normativos e fechados; de outro, o que apenas recebe o conteúdo programático. Na “educação bancária”, diz Freire, o educando é obrigado a se adequar ao autoproclamado dono do conhecimento. É como se o aluno, ao entrar em sala de aula, fosse induzido a deixar a sua experiência de vida em um cabide, para vesti-la novamente na saída.
É diante dessa perspectiva que filósofos conservadores, como Le Bon e Gasset, defendem o principio de que as “massas” jamais serão capazes de se transformar em seres genuinamente pensantes. Apenas uma elite minoritária, disseram, estará apta a tamanha proeza, cabendo à educação regá-la ao máximo para que ela pense pelo todo condenado a se eternizar no mundo das sombras platonista.
É essa elite, portanto, que escolherá o que, a quem e porque ensinar, estabelecendo um conceito sedimentado, meritocrático e mesmo autoritário do que é aprender e ser inteligente. Nessa concepção, segundo Freire, resta aos concebidos como “seres fora de” serem “integrados” a um “hoje normalizado”. Trata-se aqui de domesticar o outro e não de investir no principio de que ele pode se tornar realmente autônomo em sua vida particular.
Para ele, ao contrário, a educação não pode mais ser pensada como se fosse de mão única, em que o educador informa e o educando recebe. Ambos, em uma nova forma de conceber o ato de ensinar, educam e são educados.
“A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo “encha” de conteúdos. (…). Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo” (Idem:77).
Como se estabelece, diante disso, a alfabetização e o ensinar? Freire nos oferece uma pista essencial, já discutida por outros pensadores, ao falar da idéia do “tema gerador”, que deve sempre partir da realidade e do contexto social no qual o educando está inserido, em sua própria práxis e na relação com o outro.
“O educador problematizador re-faz, constantemente, seu ato cognoscente, na cognoscitividade dos educandos. Estes, em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador critico também” (Idem: 80).
No campo da alfabetização, temos ainda a denominada “palavra geradora”, imersa na realidade do alfabetizando, o que significa produzir um sentido para que ele possa se conectar ao mundo do conhecimento, passando a ser também agente transformador de si mesmo e do mundo. Na prática, disse ele em entrevista pós “Pedagogia do Oprimido”, não é possível fragmentar palavra e tema geradores. Ambos fazem parte do mesmo processo.
“A educação autêntica, repitamos, não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo” (Idem: 97).
Como não é objetivo desse artigo encerrar esse complexo tema, nada como recuperar um outro filósofo não menos polêmico. O que é, para Nietzsche, ensinar História. Transmitir apenas informações conteudistas, disse ele, é o mesmo que paralisar o presente e engessar qualquer chance de transformação futura, seja para que pessoa for.
Conceber à História um sentido prático, em outra perspectiva, é torná-la útil à criação, além de potencializar o educando a se interessar pelo aprendizado em conexão com suas experiências existenciais de vida. Descortina-se, nesse instante, a possibilidade do aluno buscar experimentar em si mesmo e por opção própria todo um passado histórico fundamental e significativo para seu desenvolvimento pessoal.
Trata-se de pensar os homens como seres em constante devir e não como indivíduos prontos e acabados, alguns até circunscritos, por exemplo, sob o rótulo de deficientes e estigmatizados como limitados em relação à sua capacidade de aprendizagem e de se posicionar diante de si mesmo e do outro.
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Sobre o autor:
Guga Dorea é Jornalista e doutor em Sociologia. Atua hoje em dia como professor de cursos de pós-graduação em Educação Inclusiva e do curso de especialização em síndrome de Down, organizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas Clínicas (CEPEC), além de pesquisador e articulista nas áreas social, educacional e inclusiva. É também integrante do Instituto Futuro Educação, uma entidade sem fins lucrativos que tem como forma de atuação projetar e propor cursos, seminários e oficinas que abrangem desde a filosofia e a sociologia da diferença até a educação democrática e inclusiva. Contato: gugadorea@uol.com.br