Amostras para o futuro: em 2010, precisamos de menos proteção à diversidade

Vista espacial do Planeta Terra.Lucio Carvalho

No primeiro ou segundo dia, todos nós apontávamos para os nossos países.
No terceiro ou quarto dia, estávamos apontando para os nossos continentes.
No quinto dia, só percebíamos uma única Terra.

Princípe sultão Bin Salmon Al-saud, astronauta da Arábia Saudita,
citado por Carl Sagan em Bilhões e Bilhões: reflexões sobre vida e morte na virada do milênio.

Antes de mais nada a resposta é não. Nem eu fui tomado de assalto por um espírito anti-natalino nem o título acima refere-se a um objetivo de algum tipo de organização ultra-conservadora. Muito menos foram os lemas de “A Onda” que serviram para fundar dentro de mim esse tipo de crença. Pelo contrário, é tudo verdade. Eu acredito mesmo nisso, que precisamos de fato de menos respeito e proteção à diversidade em 2010. E no futuro também.

Diversidade foi, sem dúvida, uma das palavras que qualquer um de nós mais deparou-se no ano que se encerra e engana-se que pensa que no próximo será diferente. Diversidade foi, sem nenhuma dúvida, a palavra tomada em sentido mais desigual o possível que ouvimos, lemos e também dissemos no ano que vai se encerrando e também engana-se quem imagina que, em 2010, isso será diferente.

Em 2010, todas as vezes em que a diversidade for novamente mencionada com o sentido de reforçar fronteiras, de instituir ou reforçar as diferenças entre as pessoas e grupos de pessoas, vou insistir nisso, em que respeitar a diversidade não pode ser um argumento para que se insista em segmentar a sociedade ou a cultura. Em que se perpetue a incomunicabilidade das diferenças sob o pretexto de valorizá-las. Em que não se fale da diversidade como se ela já não existisse e precisasse ser criada e fundamentada permanentemente. Em que se divorcie a diversidade da intersubjetividade inerente ao convívio humano. Toda vez que a diversidade for tomada como um conjunto generalista de identidades incomuns, eu estarei insistindo que este é o tipo de idéia que deve ser combatida. Que, se procurarmos reter os conflitos sociais indefinidamente, estaremos congelando a imagem da sociedade em uma idealização fantasiosa e em realidades sempre particulares.

A sacralização conceitual em torno do conceito de diversidade é o tipo da armadilha na qual muitas interpretações da sociedade contemporânea tem amarrado-se com impressionante veemência. São, como denominou o antropólogo Clifford Geertz, os patíbulos teóricos nos quais é possível testar a prevalência de dominâncias culturais e ideológicas sem risco algum, como numa experiência controlada, como se tratasse disso. Então sei muito bem o risco de afrontar esse conceito que ficou tão caro a políticos, organismos internacionais, governos, ONGs e publicitários. Mas, sem o risco, como posso estar certo que também estou apto a errar?

A impressão de que criamos referências para demarcar nosso tempo histórico parece algo muito simples de perceber quando um ano se aproxima de chegar ao fim. Ao lado de retrospectivas, dos fatos que inscreveram-se com maior ou menor importância na história das sociedades, sejam fenômenos naturais ou decisões politicas, sejam filmes, músicas ou o comportamento que melhor caracterizou uma determinada época, algumas idéias sobressaem-se entre outras. São as idéias que “pegam”. São tão boas que parecem ter sido criadas por publicitários, mas estes apenas a perceberam num tipo de frequencia na qual são especializados em captar e também em revender, é o seu ofício. Essa retroalimentação tem, por sua vez, a funcionalidade de providenciar o reforço da própria idéia, então mais e mais ela é explorada, dimensionada e equacionada, até que se chegue a um quase completo esgotamento de seu significado. Na mente das pessoas, é como aquela propaganda que não resiste ao zap depois de dois segundos. Então a idéia está batida. E então ela é uma sucata. Deixa de ser possível ao ser humano mortal distinguir entre o que ela guarda de referência, de original, e o que é criação, adereço ou fantasia.

Em 2010, não podemos correr o risco de sucatear a diversidade, tornando-nos brandos e acuados como exemplares de espécies em extinção. Mais que enxergar a diferença, temos a urgência de aprender a trocar com ela, mudar através dela, transformar contextos a partir da nossa capacidade ilimitada de comunicação para então podermos, enquanto humanidade, transformar a maior chaga que criamos entre nós mesmos: as condições de desigualdade entre quem somos. Em 2010, espero sinceramente que a diversidade não possa existir para justificar a desigualdade, exilando a perspectiva de uma humanidade que precisa aprender a querer menos proteção individual e a oferecer mais de si mesma. Não podemos proteger a diversidade como numa redoma, mas provocarmo-nos a tentar ver até que ponto guardamos mais em comum que um genoma e um planeta. Poderemos mesmo fazer diferente em 2010 ou continuaremos os mesmos de sempre, como sentenciou Caetano Veloso, os velhos homens humanos? Que amostras de nossa capacidade queremos e podemos oferecer desde já para o futuro?

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *