A cegonha me deixou na família certa

rapaz sinalizando em Libras no plenário do senado federal.
Gabriel Camargo.

Marta Gil

Diz a lenda familiar que, aos 3 anos de idade, eu me referia a ela como Senhora Dona Cegonha, com muito respeito.

Meus avós maternos, Alvarina e Augusto Esteves tiveram seis filhas. A última, Itaé, nasceu 10 anos depois de Glaucia, em 1938. Já na maternidade a Síndrome de Down foi diagnosticada.

Eles eram pessoas amorosas e com uma fé inabalável – principalmente minha avó, que tinha uma profunda convicção que era possível investir em seu desenvolvimento. Antes que eu me esqueça: Itaé significa “pedrinha de açúcar” em Tupi Guarani e minha avó dizia que ela tinha fortalecido seu casamento.

Quando eu era pequena, minha família morava com meus avós, Maria (a filha mais velha) e Itaé numa casa grande.

Itaé recebia massagens de uma profissional alemã, para fortalecer seus músculos.

Minha avó soube que em Belo Horizonte, na Associação Pestalozzi, havia uma professora ensinando o Método Montessori. De comum acordo ficou lá, durante semanas, enquanto o marido permanecia em São Paulo com as filhas. Todas cuidavam da caçula, principalmente as duas mais velhas. Minha mãe, a segunda, registrava as atividades e progressos de Itaé.

De volta a São Paulo, vovó localizou dona Carolina, professora especializada em Montessori, que resolveu fazer uma “inclusão doméstica”: eu participava das aulas de Itaé, a partir dos meus dois anos.

Itaé tinha vários sobrinhos e crescemos convivendo com ela. Amigos, parentes do Interior e do Rio de Janeiro tratavam-na com carinho. Era família.

A puberdade trouxe questões de saúde mental. O tratamento da época eram choques elétricos. Meus avós se opuseram firmemente. Ela ficou em casa, cercada de carinho e tratada da forma que era possível na época.

A crise passou, porém o desenvolvimento de Itaé regrediu: não falava mais e tinha dificuldade para andar.

A busca por outros médicos e tratamentos continuou até sua passagem, com pouco mais de 20 anos de idade – longevidade pouco comum para a época – sempre em casa, recebendo carinho, atenção e cuidados.

Foi com uma emoção profunda que vi ontem a Priscilla, jovem com Síndrome de Down falando do púlpito no Senado da República, sendo interpretada em Libras pelo Gabriel Camargo, que também tem a síndrome[1], outros falando em suas páginas no Instagram, nas Câmaras de suas cidades e em lives.

Muito obrigada, Senhora Dona Cegonha!

(*) Marta Gil – Socióloga, uma das Fundadoras e Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas; atua na Produção, Comunicação e Disseminação de informações sobre Inclusão de Pessoas com Deficiência na Educação, Trabalho e Acessibilidade desde 1990.


[1] https://www.instagram.com/reel/C42I-KXPBJQ/?igsh=ZDJkNGc4YWswbGpi

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