Reproduzido do Observatório do Direito à Comunicação, 27/1/2010; título original “Conferência Nacional de Cultura pede diversidade na mídia”
Foco de mais um ataque das maiores empresas de comunicação do Brasil, a 2ª Conferência Nacional de Cultura (CNC), marcada para acontecer de 11 a 14 de março, em Brasília, segue na reta final dos seus preparativos. Dentre os pontos importantes da pauta da CNC está a associação entre as políticas de comunicação e cultura. Esta diretriz está expressa no texto base da conferência, que traz críticas ao monopólio das comunicações e à falta de regulamentação do capítulo da comunicação na Constituição Federal, mais especificamente os artigos que dizem respeito à regionalização e produção de conteúdo.
Foram exatamente as interseções entre comunicação e cultura e a parte do documento que trata deste ponto que fez com que, na terça-feira (19/1), a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) lançasse nota criticando o texto base da II CNC. A reação das associações empresariais, por meio de notas e de matérias nos principais veículos a elas vinculados, se dá quase seis meses após a divulgação do texto base, que está disponível desde agosto na página do Ministério da Cultura (Minc), órgão responsável pela organização da conferência.
De acordo com a interpretação feita pela Abert, que credita ao documento uma previsão de controle dos meios de comunicação, “o texto base da II CNC representa uma ameaça à liberdade de expressão”. Além da nota da Abert, os jornais O Estado de S. Paulo e O Globo (“Ideia fixa”) lançaram editoriais e matérias referindo-se à conferência como um atentado à liberdade de expressão, além de entrevistas questionando o formato e a representatividade de conferências sobre quaisquer temáticas.
“Controle social”
O Estado de S. Paulo, em seu editorial (“Nova investida contra a democracia”), referiu-se à 2ª CNC como “mais um ataque à liberdade de informação e de opinião, preparado não por skinheads ou outros grupos de arruaceiros, mas por bandos igualmente antidemocráticos, patrocinados e coordenados pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. E completou: “O texto-base da conferência poderia figurar num museu de teratologia política, como exemplo do alcance da estupidez humana.”
Apesar de concordar com a avaliação de que com o monopólio das comunicações não há democracia, o editorial do Estadão afirma que “não existe esse monopólio no Brasil nem nas verdadeiras democracias”. O jornal do Grupo Estado dá a entender que afirmar que a comunicação é monopolizada no Brasil é uma desculpa “dos companheiros do presidente Lula, entre eles alguns de seus ministros” para impor a censura no país.
Já O Globo registrou sua opinião em matéria assinada pela jornalista Martha Beck, segundo a qual “o governo Lula não desistiu de aprovar algum tipo de controle de conteúdo dos meios de comunicação no Brasil, como aconteceu recentemente na Argentina e na Venezuela”. A matéria deixa claro que a CNC somou-se ao rol alvos recentes da grande imprensa formado pela Conferência Nacional de Comunicação e o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. “Depois da discussão do tema na Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e da criticada abordagem no Programa Nacional de Direitos Humanos, o governo agora prepara uma nova investida para estabelecer o `controle social´ dos meios de comunicação. A II Conferência Nacional de Cultura promete trazer à tona, mais uma vez, o debate sobre liberdade dos meios de comunicação no país”, registra o jornal das Organizações Globo.
Papel educativo
Joãozinho Ribeiro, secretário executivo da 2ª Conferência Nacional de Cultura, defende o texto base lembrando que a conferência de cultura é bem maior que esta questão do monopólio dos meios de comunicação. “O nosso tema é `Cultura, diversidade, cidadania e desenvolvimento´ e, com essa abrangência, não tinha como deixar de se discutir a cultura como um direito fundamental e isso tem uma ligação muito forte com o direito à informação, que também é muito importante”, afirma.
O secretário lembra também que o texto base da 2ª Conferência Nacional de Cultura foi elaborado pelo Ministério da Cultura, mas foi apreciado e aprovado pelo Conselho Nacional de Políticas para Cultura. “Tanto o texto base quanto o regimento interno da 2ª CNC foram aprovados pelo Conselho Nacional de Políticas para Cultura. Inclusive, esse sub-eixo da comunicação foi inserido pelo conselho. A discussão estava presente, mas não como um sub-eixo específico”, relata Joãozinho.
Uma semana antes da nota publicada pela Abert contra o texto base da CNC, a associação e também jornais da mídia tradicional, além da Rede Globo, fizeram críticas semelhantes ao 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3). O PNDH3 também questiona a falta de controle da sociedade sobre o conteúdo audiovisual produzido por emissoras de rádio e TV, que muitas vezes desvirtuam os princípios constitucionais, deixando de cumprir seu papel educativo e passando a atuar como violadores de direitos humanos.
A comunicação na 2ª CNC
As questões que tratam das comunicações estão inseridas no 1º eixo temático do Texto Base da 2ª Conferência Nacional de Cultura, intitulado “Produção Simbólica e Diversidade Cultural”. Dentro desse eixo, existem quatro pontos e, dentre eles, o de “Cultura, Comunicação e Democracia”. Vale ressaltar que, antes de chegar aos eixos, o documento fala da visão que o Ministério da Cultura (MinC), órgão responsável pela convocação dessa conferência, adotou para trabalhar as políticas de cultura do país.
Primeiramente o texto diz que a cultura, desde a gestão do ex-ministro Gilberto Gil – empossado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 – é vista pelo MinC a partir de três dimensões: a simbólica, a cidadã e a econômica. O texto diz ainda que “os direitos culturais são direitos humanos e devem constituir-se como plataforma de sustentação das políticas culturais”. Mais adiante, o documento ressalta que a cultura é um elemento estratégico da nova economia, que se baseia na informação, na criatividade e no conhecimento.
Ao iniciar o único ponto do texto em que fala da comunicação, o documento faz a seguinte contextualização:
“As atividades relacionadas à informação estão adquirindo importância crescente no mundo atual. A produção, difusão e acesso às informações são requisitos básicos para o exercício das liberdades civis, políticas, econômicas, sociais e culturais. O monopólio dos meios de comunicação (mídias) representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso cumprem função relevante na vida cultural.”
Mais adiante o texto fala da integração entre cultura e comunicação. “Tão necessário quanto reatar o vínculo entre cultura e educação é integrar as políticas culturais e de comunicação”, aponta o documento.
A segunda parte deste trecho do texto base aponta a necessidade de se regulamentar o capítulo “Da Comunicação Social” da Constituição Federal. Este capítulo, dentre outras coisas, prevê que sejam estabelecidas regras para que se promova a regionalização e a veiculação de produção independente, o que pode ser claramente entendido como o estabelecimento de cotas a serem respeitadas pelos concessionários de rádio e TV.
Os fóruns de cultura e de comunicação, diz ainda o documento,…
“…devem unir-se na luta pela regulamentação dos artigos da CF/88 relativos ao tema. Entre eles o que obriga as emissoras de rádio e televisão a adaptar sua programação ao princípio da regionalização da produção cultural, artística e jornalística, bem como o que estabelece a preferência que deve ser dada às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, à promoção da cultura nacional e regional e à produção independente (art. 221)”.
Justamente este trecho sobre a regulamentação da Constituição é que, ao lado do primeiro parágrafo que acusa o fato de a formação de monopólios na comunicação de ser uma ameaça a democracia, serviu de mote para a reação dos empresários de mídia. Na lógica empresarial, estabelecer normas para o setor da comunicação e fazer com que sejam cumpridas deve ser considerado como censura, mesmo que estas normas sejam obrigações constitucionais previstas para concessionários de um serviço público – as emissoras de rádio e televisão.
Faltou leitura
A exposição desta lógica nos grandes veículos da mídia tradicional tem obedecido um roteiro que quase sempre ignora a apresentação das opiniões expressas nos documentos pelos atores responsáveis, quando não deixa de citar o próprio processo que deu origem as propostas. No caso da CNC, tanto o MinC como movimentos historicamente ligados às análises e demandas expostas no texto base da conferência não foram ouvidos.
Na opinião de Joãozinho Ribeiro, o debate em torno da democratização dos meios de comunicação vem sendo feito desde 1988, com a promulgação da Constituição Federal, e a discussão já atravessou vários governos, sempre gerando polêmica. “Na verdade, essa situação se parece muito com o famoso poema de [Mário] Quintana quando diz que os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e, em sabendo, não o fazem”, diz o secretário.
Os textos cuja leitura não foi feita por aqueles que atacam a Conferência Nacional de Cultura, aponta o secretário, mostram que a questão da democratização dos meios de comunicação é parte da maioria dos tratados e convenções internacionais assinadas pelo Brasil, inclusive a Convenção da Diversidade Cultural da Organização das Nações Unidas, de 2005, e também da Agenda 21 das Culturas, aprovada em Barcelona em 2004.
Fonte: Observatório da Imprensa
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=574IPB006