Por Letícia Duarte
Che Guevara está pendurado no varal, ao lado de Bob Marley. O cliente pode escolher se quer um Che amarelo, verde ou vermelho, os bordões “hay que endurecerce, sin perder la ternura jamás” ou “hasta la victoria siempre”. Bob Marley pode ser preto ou vermelho. Ali também está o educador Paulo Freire, o herói nacional uruguaio José Artigas. Todos à venda, por R$ 15. Lado a lado, sustentados por prendedores de madeira no varal azul, ora estendido entre duas árvores, ora entre dois pilares, na loja ambulante de Richard Nunes, 40 anos. Com uma bolsa preta a tiracolo, esse uruguaio que adotou a Bahia como lar durante 12 anos viaja pelo Brasil vendendo suas estampas em algodão. Mas não se engane. Embora venda camisetas, ele não é um vendedor de camisetas.
Se fosse pelo diploma, o correto seria identificar como fisioterapeuta o homem que agora estende seu varal diante do prédio da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, trajando bermuda até os joelhos, camiseta preta lisa e um par de chinelos com tiras rasgadas. Filho de militar reformado uruguaio e de uma gaúcha, irmão de um chef internacional de cozinha e de uma médica, formou-se em 1996 pela tradicional Universidad de La República, em Montevidéu. Na época, andava engravatado e sonhava em ostentar um avental branco que lhe abriria todas as portas nos corredores lustrosos das clínicas de reabilitação física.
Só que fisioterapeuta tampouco é a definição apropriada para quem abandonou seus quatro empregos no Uruguai um ano após terminar a faculdade para se aventurar pelo Brasil. Os que passam apressados pelo seu varal multicolorido podem não entender. As camisetas que tremulam com a brisa morna do verão gaúcho são meios, não fins. Richard não quer vender um pedaço de pano. Quer compartilhar uma visão de mundo. Passar mensagens, ainda que por vezes contraditórias. Richard é na verdade um vendedor de ideias. Ou seriam ideais?
O evento que o traz a Porto Alegre desta vez é o Fórum Social Mundial. Poderia ser um encontro de universitários, um simpósio de Letras. E agora ele está ali, vendendo Che Guevara. O ícone anticapitalista oferecido ao preço de um Big Mac completo, com batatas fritas e Coca-Cola. Da mesma forma que o sanduíche é o carro-chefe das vendas da mais famosa rede de fast-food do mundo, o MacDonald’s, Che é o líder de vendas de Richard. De cada 10 camisetas que o fisioterapeuta aventureiro vende, cinco carregam a imagem do barbudo com boina que morreu lutando pelo socialismo.
Uma afronta ideológica? Richard garante que não. Diante dos de que estranham a transformação da imagem do revolucionário em um produto e questionam se Che aprovaria sua própria mercantilização, carrega uma resposta na ponta da língua. “Se Che viesse aqui hoje e visse como eu produzo, que gasto R$ 10 para fazer as camisetas e vendo por R$15 para me sustentar, acho que ele aprovaria, porque é a minha forma de vida, não é exploração. Agora, se Che visse uma loja grande vendendo a camiseta dele por R$ 50, aí acho que ele não aprovaria”, reflete.
Richard pensa em tudo, o tempo todo. Demora até seis meses para criar um modelo novo. Como se as camisetas fossem obras de arte à espera de inspiração. De sentido. Às vezes, descobre uma frase e não encontra o símbolo para acompanhá-la. Em outras, pensa na imagem e demora a achar a frase exata para legendá-la. Para resolver o impasse, pesquisa na internet, revira livros à procura de poesias, frases de efeito. “Aprendo muito fazendo camisetas”, repete o vendedor, que discorre sobre a trajetória de Che, a formação cultural da Libéria, a pedagogia de Paulo Freire e o sincretismo de Iemanjá, todos estampados em suas camisetas, com o mesmo ardor.
A família não entende. Por que o acadêmico bem-sucedido, que no verão chegava a ganhar US$ 150 em uma tarde, fazendo massagens terapêuticas em empresários e madames que veraneavam em um condomínio de luxo em Punta del Este, largou tudo para vender camisetas? Por que o fisioterapeuta que poderia ter seu emprego, sua casa, seu carro, sua mulher e seus filhos, vaga como um hippie, sem nunca ter constituído família e nunca ter sequer aprendido a dirigir? Nem Richard sabe explicar direito. Só sabe que faltava alguma coisa. Que depois de conquistar o canudo e ganhar o avental branco tão almejado descobriu que não era feliz com a vida que levava, correndo entre quatro empregos. E que aquele roteiro seformar-casar-terfilhos-comprarcasaprópria-carro-etudomais, que desde sempre aprendeu como o caminho seguro para uma vida feliz, em algum momento perdeu todo o sentido. “Antes queria ter sucesso econômico e reconhecimento das pessoas. Mas a vida te leva por caminhos que às vezes a gente não imagina. No começo meus amigos diziam que eu era louco. Anos depois, quando eu voltava ao Uruguai, aqueles mesmos amigos diziam que tinham inveja de mim, que não tinha patrão. Acho que eu gosto de transgredir, ser como sou”, analisa, num português cadenciado pelo sotaque espanhol.
O Brasil entrou nesse roteiro quase como um sonho. A evocação de um sonho de infância. Em meio ao rigor do inverno uruguaio, via pela televisão e pelos relatos da mãe as paradisíacas praias do país onde ela nasceu. A imagem do paraíso. Encantava-se com a musicalidade das conversas de uma língua que ele não entendia e que reinava na casa quando a tia e a avó brasileiras apareciam para visitar, nos sucessos de Roberto Carlos que ele escutava no rádio e tentava imitar. Em sua memória afetiva, o Brasil tinha sabor de abacaxi, a fruta pela qual se apaixonou à primeira mordida, quando as parentes gaúchas a levaram até sua casa em Maldonado, no Uruguai.
Desiludido com a rotina de fisioterapeuta em início de carreira, o jovem decidiu refugiar-se em seu paraíso imaginário. Cogitava ir para o Rio de Janeiro, que conheceu durante um congresso de fisioterapia, ainda durante a faculdade, em 1992, mas um livro o fez mudar de ideia. “Troquei o Rio pela Bahia quando em minhas mãos caiu o livro Capitães de Areia, de Jorge Amado”, lembra. Pela obra do autor baiano, confirmou o imaginário do paraíso tropical que acalentava desde criança. Juntou as reservas do primeiro ano de trabalho depois da formatura e planejou uma viagem a Salvador, em maio de 1997. O plano inicial era ficar três meses. Richard ficou 12 anos.
Não que tenha sido fácil. Ao desembarcar, logo descobriu que o paraíso só existia na sua cabeça. As ruas sujas, os sem-teto dormindo nas calçadas e a má qualidade do serviço de saúde público manchavam o retrato idealizado. Mesmo assim, não desistiu. Falou mais alto a alegria do povo brasileiro. A informalidade de uma gente que dançava em meio às sucessivas crises econômicas. E o calor, claro. “O uruguaio é um povo mais triste. Mais consciente, também. Talvez por causa disso mesmo, seja mais triste porque é mais consciente”, analisa.
Cinco meses depois de chegar a Salvador, com visto de turista vencido, enfrentou seu primeiro teste de sobrevivência. Tinha apenas R$ 40 no bolso. Recorrer à família no Uruguai soava como atestado de fracasso. Quando contou seu drama a um amigo brasileiro, ouviu como conselho:
– Pega esses R$ 40 e compra um isopor. Eu te ajudo, vamos vender cerveja.
Richard caçoou da ideia.
– Eu, fisioterapeuta, vender isopor na praia? E se algum uruguaio passar e me ver?
A vergonha sucumbiu em nome da necessidade. Depois de três semanas vendendo cerveja na praia, ele se deu conta de como era supérflua aquela preocupação com o que os outros poderiam pensar. Trabalhou também em restaurantes, deu aulas de espanhol em cursinhos. No verão, voltava para Punta del Este, onde trabalhava como fisioterapeuta, contando com indicações de amigos do tempo da faculdade. Mas sempre retornava para Salvador. “Quando vim para o Brasil pensava que eu ia me ajeitar e ser bem-sucedido, aquele sonho de imigrante, fazer dinheiro. Às vezes, a gente tem vergonha de voltar sem ter realizado o sonho”, confessa.
Richard bem que tentou trabalhar como fisioterapeuta na Bahia, mas já na primeira tentativa percebeu que não seria tão fácil. Ao colocar anúncio no jornal A Tarde oferecendo massagens, recebeu muitos telefonemas. Só que os clientes brasileiros queriam outro tipo de massagem. “Perguntavam se as mulheres são morenas ou loiras, se eu fazia relaxamento, depois que fui ver que o anúncio tinha saído junto com a seção de prostituição”, lembra.
O emprego em uma clínica apareceu em seu terceiro ano em Salvador, mas meses de trabalho foram suficientes para acumular novas frustrações. Os donos da clínica pressionavam para que as consultas não durassem mais do que 10 minutos e para que prescrevesse tratamentos não custeados pelos planos de saúde, como o laser. Enfrentava batalhas intermináveis. “Eram umas cinco brigas por dia, aí larguei tudo”, resume.
O negócio com as camisetas começou em 1999, com um empurrãozinho de uma baiana “branquela e magrinha”, por quem se apaixonou, contrariando as próprias expectativas de namorar uma mulata corpulenta. Responsável por uma lojinha de um partido de esquerda, a futura companheira por 10 anos o incentivou a fazer cursos de estamparia. Richard começou produzindo materiais para campanhas políticas, sem perder sua visão independente e crítica de todos os partidos políticos. Com a técnica dominada, partiu para suas próprias criações. No início ainda tinha constrangimento em andar com uma mala por aí, feito camelô. Tomou gosto pelo negócio quando percebeu que ele tinha uma função pedagógica. “É uma satisfação poder explicar para as pessoas cada camiseta, o sentido, tem gente que nem conhece Paulo Freire, ou Che Guevara. Outros chegam com soberba, pensando que sou um ignorante, camelô, e no final descobrem que não é bem assim”, orgulha-se.
Em 31 de janeiro, depois de vender aproximadamente 80 das cem camisetas que trouxe para o Fórum Social Mundial – desorganizado confesso, ele não costuma se ater aos números de venda – Richard botou a mala preta sobre os ombros e retornou para o Uruguai, em uma viagem de 11 horas de ônibus. Voltou a morar em Maldonado há pouco mais de dois meses para cuidar de sua mãe, que tem 69 anos e está com Alzheimer. Apesar de seus outros cinco irmãos viverem lá, achou que era hora de se aninhar novamente.
Quando questionado se encontrou o que viera procurar no Brasil 12 anos atrás, Richard ergue os olhos, como quem procurasse a resposta no ar. Responde citando uma camiseta. Mais precisamente, uma frase de Gandhi que já estampou em uma de suas criações. “Não existe um caminho para a felicidade, a felicidade é o caminho.”
Acostumado à incerteza da vida, não faz planos para o futuro. Sabe que planos são traiçoeiros ou, no mínimo, ilusórios. Prefere brincar com as possibilidades, as estradas a percorrer. Por enquanto, o sonho verde amarelo também está suspenso no varal. “Não penso nem ‘despenso’ em voltar a morar no Brasil. Tudo pode acontecer. Posso vir a me apaixonar no Uruguai, aí quem sabe volto a gostar da fisioterapia, boto paletó e gravata, te encontro e digo: camisetas, eu? Eu não, sou fisioterapeuta, minha filha!”, brinca, com um sorriso tão aberto como seu próprio destino.
7/2/2010
Fonte: ViaPolítica/A autora
A jornalista e videomaker Letícia Duarte assina esta contribuição para Cartola –
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O vídeo e a reportagem “O homem que vende ideias no varal” podem ser livremente reproduzidos, na condição de que seja respeitada sua integridade e citadas a autora e as fontes.