Também publicado no Xiita da Inclusão , na Rede Saci , na Envolverde , na Pauta Social , na Adital , na Apnen Nova Odessa e no Morphopolis .
Há poucos dias li uma reportagem que, como já fazia algum tempo não acontecia, me provocou a uma terceira releitura. Apesar de plenamente desperto e até satisfeito com o que lia, afinal a notícia tratava de uma bem sucedida experiência de trabalho de pessoas com deficiência intelectual numa grande empresa, aquelas palavras sacudiram alguma parte do meu subconsciente e fizeram com que meus olhos estalassem e paralisassem por um momento, mesmo que nessa altura da minha vida os ossos já tenham se adiantado a eles nesse hábito.
Ainda agora fico pensando se tinha razão para me surpreender com a informação que vasculhava no cristal líquido da tela ou se eu é que estava numa conjunção astral que favorecia o espírito à desconfiança, como num jogo aleatório de astros e posições solares e lunares. Creio que não. Mas, então, por que raios eu vacilara tanto diante de uma notícia desse tipo? Afinal, tudo parecia certo e inquestionavelmente adequado: a notícia anunciava em tom magnânimo o esforço que se empregara para que aquelas pessoas pudessem estar incluídas naquele ambiente de trabalho, que inclusive parecia ótimo: corredores limpos, móveis novos em folha, funcionários sorridentes.
Já estou tão acostumado a essa idéia de concessão para a inclusão das pessoas com deficiência intelectual que, definitivamente, posso assegurar que não foi isso o que me surpreendeu. O que me causou o estalo foi a maneira pela qual a situação foi narrada, o mérito que ainda se dá a iniciativas que visam cumprir um rito social baseado numa representação de papéis. A idéia de incapacidade subjacente ao tom de favor da iniciativa. A incapacidade do sistema produtivo em incorporar essa força de trabalho sem que seja preciso identificá-la como “trabalho especial”, ou pior, “trabalho realizado por pessoas especiais”. A bem da verdade, pior que o estalo em si mesmo é o seu efeito ca scata e a enxurrada de sensações que a leitura é capaz de causar. O lado bom é que isso pode também servir para sacudir (e estalar) um pouco estes ossos aqui.
A idéia de que os problemas relacionados à inclusão da pessoa com deficiência intelectual serão solucionados com o seu adestramento e adaptação ao mundo tal como ele é tem ganho uma força impressionante na mentalidade social vigente: de legisladores a educadores, de familiares a formadores de opinião. Parece não restar mais dúvidas a respeito de que estamos vivendo em legítimos paraísos, lugares e espaços sociais os quais não comportam um questionamento sequer. Parece que estamos tratando de um processo no qual a única adaptação que se pode desejar é a que se opera no sujeito, pois a ele é debitado todo o ajuste necessário. O sujeito é que deve ser incluído. A sociedade apenas deve abrir suas portas (nesse caso, é bom avisar a imprensa) e a mágica finalmente estará feita.
Assumir essa narrativa, esse discurso, é como dizer que vivemos na sociedade perfeita, que aprendemos através da educação ideal e compartilhamos as mais justas oportunidades sociais no mundo do trabalho também. Por outro lado, basta questionar-se por um breve momento o funcionamento da escola convencional ou do trabalho enquanto espaços sociais de produção de mentalidades, para que as forças de guarda exijam a palavra. Mas aqui, e diga-se de passagem infelizmente, não há novidades nem risco de surpresa: há uma grande abundância de nomes, manchetes e ainda uma extrema carência de coisas, de realidades. Nesse contexto, a inclusão obedece a modelos tão rígidos que não oferece perigo aos modelos de organização social ao qual submetem-se alunos e trabalhadores, educadores e também patrões.
Sem reflexão, sem impostura, sem diálogo, sem contradição, sem discordância, sem que os alunos levantem-se das cadeiras, sem que os trabalhadores assumam a consciência de seu lugar e papel, sem que educadores e famílias assumam seus erros, sem que a liberdade seja um direito efetivamente exercido, nós só teremos uma imagem pálida de um nome de algo que precisa ser real. Em sã consciência, ninguém quer que seus filhos sejam incluídos, o que é preciso é que eles possam incluir-se por si próprios, por existir espaço inclusive para eles e para suas particularidades humanas.
Uma dinâmica social que propõe como natural uma inclusão feita unilateralmente, como à forceps, é o reflexo exato da imagem de um mundo que se recusa à transformação mas que quer de imediato parecer transformado. Sei que tentarão me convencer de que as mudanças ocorrem mesmo dessa forma, gradualmente, a seu tempo, etc. Eu concordo, desde que me reserve ao direito eventual da dúvida. A dúvida é uma maneira saudável de mantermo-nos despertos.
Nesse caso, não duvido do fato de que podemos causar mudanças profundas no mundo em que vivemos. Mas também não tenho direito a deixar de duvidar, nem que seja por um instante, na possibilidade de que o mundo é quem esteja nos transformando. E o fato de que nós possamos estar sendo transformados sem esforço, e a inclusão oferecida como brinde, tem me deixado mais aflito do que exatamente em dúvida.
Olá Lúcio,
excelente o seu texto! Sou mãe de uma linda menininha de 3 anos com SD que frequenta uma instituição na qual atuo como representante dos pais. Achei o parágrafo sobre a necessidade de se exercer o direito da liberdade inspirador, me ajudou muito a ordenar meus pensamentos na minha luta por políticas institucionais de valorização das famílias. Vou usá-lo de abre alas, devidamente citado. Obrigado por tê-lo escrito!
Duda
Prezados Senhores!
Boa tarde
PArabenizo pelo excelente texo, sou pedagoga com especialização em deficiência da audiocomunicação,tambèm faço um trabalho com intérprete em LIBRAS,Diariamente muitos fatos acontecem nas escolas e ai as duvidas” Inclusão… o que e como fazer? …