Uma empregada doméstica uniformizada serve a refeição. Na mesa estão pai e filho, que conversam. A empregada se retira.
A conversa continua. Fala-se de sentimentos, desejos, vida de novela. A empregada é negra, seus patrões são brancos. A empregada veste-se de modo a nos fazer imaginar que nunca será escolhida como mulata do Ancelmo Gois. Aquelas que o serão um dia têm a pele mais clara e coxas grossas bem visíveis.
Minha imaginação não pode acompanhar a empregada sequer até a cozinha. A empregada desaparece, some. Ela pode reaparecer na porta de casa, com o casaco esquecido por um dos filhos dos patrões. Ele dirá, enternecido: o que seria de mim sem você? E lhe fará um breve afago, antes de entrar no automóvel e seguir para as ocupações e atribulações de um dia de trabalho.
Precisamos realmente interrogar-nos sobre o sentido dessas representações? A criação de seres inferiores destinados a compor um cenário, no qual circulam os verdadeiros humanos, sua opulência e beleza, suas necessidades e desejos.
A ficção televisiva é um imenso sumidouro de pessoas pretas. Não lhes resta nem um fluxo invisível de vida, uma conspiração na cozinha, nos jardins: posições, opiniões, proposição de soluções. Pode esquecer.
Não há a rigor também um poder que nos oprima, uma vez que ninguém se queixa de nada. Todos parecem muito felizes. Aceitamos o lugar, as funções, a desumanização – ao que parece há grande consenso em que se deve viver a vida dos outros. Só se pode mesmo ser mais feliz numa cerimônia da Seppir, onde se transita pelas mesmas formas de dominação, vive-se também um clima de fulgurante consensualidade, mas as bandejas e os talheres se disfarçam.
Que nos dizem mesmo essas tramas de novela, de racismo explícito, construídas com a conivência negra? Elas dizem o seguinte: você acaba de testemunhar como as coisas são. Há dor e sofrimento aqui entre nós? Sobra ainda lugar no seu coração para algum ressentimento, ou rancor, ou ódio, ou mesmo alguma vaga aspiração humana? Ninguém pode transcender em elevação àqueles que se dispõem a bem servir a beleza e a humanidade verdadeira.
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Fonte: Irohin