Na semana passada no dia 13 de abril, entrou em vigor o sexto Código de Ética Médica através da Resolução Nº. 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina, o qual não era revisto há cerca de 20 anos. O documento destaca, entre outros avanços, a relação médico-paciente e a responsabilidade profissional. Quatro dias após iniciado o novo modelo, tive a oportunidade de experienciar alguns (des) impactos de tais mudanças nos serviços de saúde.
Na última sexta-feira, dia 16, ao iniciar um típico dia de trabalho, recebi a notícia de que uma conhecida senhora havia passado mal e estava sendo atendida no posto de saúde próximo do meu trabalho. Resolvi ir até o local saber notícias da mesma e acompanhar sua melhora.
Dona Zélia sentia fortes dores na cabeça e no olho direito, além de ter tido a queda da pálpebra e de todo o lado direito da face. Ela foi atendida no CMS Hélio Peregrino na Rua do Matoso, Praça da Bandeira. Dona Zélia sabia que aquele talvez não fosse o local mais adequado para um atendimento emergencial, mas tentou ser avaliada. Foi atendida por um neurologista que identificando o seu quadro, teve a suspeita de lesão no 3° nervo óptico do olho direito. O médico preencheu uma guia de referência e contra-referência do SUS com uma letra impossível de compreensão, e conseguimos entender apenas que ele estava encaminhando-a para um neuro a fim de realizar uma tomografia com urgência em outra unidade de saúde, sugerindo o Hospital Municipal Souza Aguiar. Daí, pensamos: ora, mas não é o novo código de ética médica que diz que é vedado ao médico “Art. 87. Deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente”? Será que o médico ainda não leu isso, ou será que ainda não comprou o caderno de caligrafia? Outra coisa: será que nossa contribuição, num dos países campeões em arrecadação de impostos, não está sendo suficiente para que as autoridades pensem um novo modelo de atenção que possibilite suprir minimamente a atenção básica com equipamentos tecnológicos que sejam capazes de identificar a gravidade inicial de um quadro de saúde? FRUSTRANTE.
Bom, tomamos o carro da instituição em que trabalho imediatamente em direção ao hospital. Agora, éramos quatro: Dona Zélia, eu, o motorista do carro e sua esposa, na caça ao tesouro. Ao chegar, passamos por uma triagem realizada por uma enfermeira que já de cara (e com uma expressão de quem diz: Desiste!), nos disse que não tinha neuro. Ora, estaríamos diante da violação do artigo 9 do novo código? A saber:
“É vedado ao médico: Art. 9º Deixar de comparecer a plantão em horário preestabelecido ou abandoná-lo sem a presença de substituto, salvo por justo impedimento.
Parágrafo único. Na ausência de médico plantonista substituto, a direção técnica do estabelecimento de saúde deve providenciar a substituição.”
Insistimos em saber de que forma a enfermeira poderia nos ajudar, se saberia onde realizar o exame. Ela então, nos encaminhou para o balcão de atendimento do hospital que nos informaria isso. O atendente coletou alguns dados e perguntou o endereço da Dona Zélia, nos encaminhando para o CMS Marcolino Candau no Centro do Rio, fato que me pareceu muito estranho, uma vez que se tratava novamente de uma unidade de saúde de atenção básica e me levou a questioná-lo: “Tem certeza que nesta unidade vamos conseguir atendimento de um neuro para fazer a tomografia em seguida? Não satisfeita com a resposta, perguntei de que forma poderia ter uma cópia daquela lista de contatos de unidades de saúde, que ele consultava e o atendente riu para mim (ou de mim). Insisti nesta idéia e fui ao Serviço Social do hospital pedir uma cópia daquela lista e a assistente social me disse que só “eles” (tipo “O estranho que mora ao lado”) tinham aquilo. FRUSTRANTE.
Partimos para o CMS Marcolino Candau e ao chegar, adivinha? “Nem tem neuro aqui, minha filha.” Procuramos imediatamente a direção da unidade que nos recebeu e logo disse: “Só podia ser. Tá vendo aqui? – mostrando o encaminhamento. É funcionário contratado. O Estado contrata estas pessoas que não sabe nem o que estão fazendo e encaminham vocês para cá.” A atenção da diretora conosco, revelando uma mistura de piedade com culpa, fez com que a mesma tivesse a preocupação de, pelo menos, descartar a possibilidade de um derrame na Dona Zélia, que já havia ouvido até que poderia estar com paralisia facial. Estando todos ainda de pé, a diretora que era médica perguntou (sem aferir) como estava a pressão arterial de Dona Zélia e fez uns testes rápidos de movimento facial, pedindo-a que abrisse e fechasse a boca e girasse os olhos. Depois isso, ela ficou uns minutos em silêncio franzindo a testa e levantando a sombracelha, como quem diz: “Não tenho como fazer mais do que isso.” Atendimento humanizado? Hã? Quem? Onde? Depois ela disse que seria muito difícil fazer o exame porque teria que ser marcado por um sistema do serviço de saúde. Acho que ela tentava nos explicar o funcionamento do SISREG – Sistema de Regulação. Por fim, ela leu para nós o que o primeiro médico havia escrito e disse que iria reescrever a palavra Emergência no encaminhamento (para não escrever no braço da usuária!?!?) a fim de nos ajudar a conseguir a tomografia onde, segundo a mesma, talvez tivesse: no Hospital Geral de Bonsucesso. FRUSTRANTE.
Acatamos a última sugestão e seguimos para o Hospital Geral de Bonsucesso.
Tínhamos mais esperança agora, devido ao porte do hospital e porque uma amiga de trabalho havia ligado para o setor de tomografia de lá e a recepção do setor garantiu que estava funcionando e que poderíamos ir para lá, passando pela emergência do hospital. Ali sim, compreendemos, pelo avesso, como deve ser a porta de entrada de um serviço de saúde. A Emergência não estava funcionando e um comunicado escrito em letras garrafais dizia: “Esta emergência só está atendendo casos de risco de morte” Opa! Nos surgiu a dúvida: Quais seriam as concepções sobre saúde e doença que os profissionais deste hospital fazem? Como forma de expressar nossa revolta, pensamos em tirar fotos daquele comunicado. Não sabíamos bem o que poderíamos fazer com aquilo depois, mas queríamos de alguma forma registrar o que estava acontecendo. Enquanto uma família gritava na porta da emergência para tentar que uma senhora – que passava muito mal – fosse atendida, o atendente da recepção nos dizia: “Ah, vocês querem tirar foto? Pode deixar que ajudo. Sou contratado. Eles que são funcionários públicos que deveriam estar aqui. Chamem a televisão porque rapidinho aparece um monte de médicos” – mostrando revolta por ter que ouvir a reclamação de tanta gente. Pois é. Na entrada principal do hospital, haviam folders a serem distribuídos com o título na capa “Direitos e Responsabilidades dos usuários”, onde apresentava 12 pontos que não cabe nem discutir aqui porque é a contradição da contradição. Pura ironia! A idéia de registrar o aviso da Emergência veio de outras pessoas que também estavam buscando alguns contatos a fim de que Dona Zélia pudesse ser atendida. Neste momento, tal situação já havia mobilizado várias pessoas que iam nos dando indicações e caminhos para tentar chegar ao setor de tomografia do HGB. É a partir daí que, sob uma ira e esgotando-se nossas forças, tentamos usar o tráfico de influência e burlar as regras de acesso ao setor. Nossos amigos indicaram que procurássemos uma médica, chefe do setor de outra especialidade porque ela poderia nos levar até um oftalmologista e ele poderia prestar o atendimento adequado e encaminhar para onde fosse necessário. Passava das 16:00. Que pena! O usuário sempre chega atrasado para acessar um direito, né? Não havia mais ninguém em atendimento ambulatorial. Fomos ao Serviço Social do hospital que também é separado por setores. Desta vez, tentamos a parceria da categoria profissional. Me apresentei como assistente social e relatei a situação. Até então, com todas as pessoas com as quais falamos, minha preocupação era de não dar entender que estávamos pedindo um favor. Queria me sentir cidadã, agir como se eu é que estivesse precisando daquele atendimento e não fazer o papel de cumadre para conseguir o que era de direito. A companheira de classe, não sabia nada sobre o funcionamento do hospital e pediu para que perguntássemos em outro lugar. FRUSTRANTE.
Aproximadamente às 18:00 e como última cartada, decidimos junto aos nossos amigos por telefone, através de mais uma indicação, que partiríamos para o Hospital Salgado Filho. Sabe aquela história que o filme só acaba quando as luzes se acendem? Dona Zélia já não era mais a mesma, nem a sua fisionomia. E eu me sentia completamente responsável por aquela situação, pelo fato de estar causando (ou não evitando) tanto desgaste, especialmente ao motorista do carro da instituição em que trabalho e sua esposa que nada tinham a ver com tal situação e certamente, não estavam preparados para um dia cheio como esses.
A Emergência do Salgado Filho estava lotada. Óbvio! Ela estava funcionando. Mas, já na entrada, mais um daqueles comunicados: “Esta Emergência não tem X, Y, incluindo, neurologia.” Era mais fácil, dizer que especialidades estavam sendo oferecidas. Onde estariam então, os outros especialistas? Voltamos à violação do artigo 9 do novo código de ética. Ainda tínhamos esperança. Não satisfeitas, mesmo assim, pensamos em mostrar na recepção, o encaminhamento que indicava a urgência do exame e daí, nos pediram pra conversar com uma enfermeira. Ouvindo a história a enfermeira disse: “Mas gente, todo mundo sabe que a Emergência do HGB não está funcionando há 1 mês?” Pois é. As obras acabaram, mas os médicos não voltaram.
Logo ela “liberou” nossa entrada no hospital, indicando onde aguardar porque o neurologista passaria perguntando quem precisava de avaliação. Ué, mas não estavam sem neurologista? O tal aviso então, era para que as pessoas nem tentassem atendimento. Em meio às coisas ruins que ninguém gosta de ver nos hospitais, ouvimos uma piada em alto e bom tom de um médico que ria de um paciente que acabava de chegar sem o braço e seu amigo vinha correndo atrás com o braço na mão, tentando recuperar o membro. É o novo código de ética médica que fala de respeito nas relações médico-paciente? É isso mesmo, gente? Depois de uma longa espera sem nenhuma informação, descobrimos que o neuro estava na cirurgia deste paciente. As 19:00 havia sido feita a troca de plantão e o nosso desespero: “Meu Deus, será que ficamos sem neuro agora?” Já passava das 20:00 quando, sem querer, vimos o médico que poderia ser o novo neuro, sentado na sala. Fomos até lá. Dona Zélia, finalmente, foi atendida e encaminhada ao setor de tomografia. O exame foi realizado faltando parte do procedimento. Parece que o filme do aparelho estava quebrado. Voltamos com o resultado do exame incompleto para análise do médico. Mais 1 hora de espera. Quando conseguimos fazer uma abordagem nada amistosa ao médico, ele passou “a bola” para outro, que por sinal estava em atendimento. Depois de muita insistência e de ser chamada a atenção por estar em uma sala reservada, conseguimos que o último médico indicado pudesse avaliar o resultado do exame de Dona Zélia. Considerando que se tratava de um problema gerado pela diabetes da paciente, ele solicitou que Dona Zélia fosse a outro setor para conferir o açúcar e receber soro. Por que será que, no final, a gente sempre é encaminhado para tomar soro? A enfermeira do setor disse que não havia material para coletar o sangue. Definitivamente à exaustão, Dona Zélia disse que não queria mais ficar ali recebendo soro. Sem conferir o açúcar, saímos do hospital depois das 21:00, com a informação de que o que Dona Zélia teve é como se fosse um derrame (ele usou este exemplo para nos explicar), onde ela precisaria fazer fisioterapia nos olhos para recuperar a fisionomia facial.
Aqui a gente consegue identificar também um dos princípios descritos no código de ética médica que envolve o trabalho médico, “III – Para exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico necessita ter boas condições de trabalho e ser remunerado de forma justa.” Poderíamos citar aqui inúmeros exemplos que mostraria total inversão deste princípio. FRUSTRANTE.
O que dizer deste dia?
Bom, se culturalmente sabemos que nossa sociedade é marcada pela hegemonia e hierarquização do saber médico sobre outros saberes, cabe aos demais profissionais que atuem na saúde, bem como todos os cidadãos – como a Dona Zélia, de posse de instrumentos legais fazer valer seus direitos. Neste sentindo, cabe destacar o trabalho de enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais e outras categorias que compõem a rede, incluindo – como não sou uma pessoa classista – assistentes sociais, que se empenhem em entender minimamente o funcionamento de um serviço de saúde e prestar um atendimento adequado ao usuário, especialmente, pautado na escuta. O SUS é um sistema, somos nós quem o fazemos a cada dia. Isto não é balela. Pode crer. E não adianta vir com essa de: ”Ainda bem que eu pago meu plano de saúde porque não quero depender do SUS.” Não é só uma questão de ser mais ou menos solidário. Ora, mais então, de que forma você recebe vacinação? E mais: quem é que fiscaliza a qualidade da água que você bebe? Não seria a vigilância sanitária? E esta também não compõe o SUS? É óbvio que gostaria muito de ter conseguido um pronto atendimento para a Dona Zélia em uma rede privada que, mesmo com todo o seu inchaço atual, continuando, pelo menos, amenizando a dor inicial dos pacientes. Partir para a alta complexidade, aí são outros quinhentos. Mas, se tivéssemos esta oportunidade neste dia, certamente, no dia seguinte, estaríamos nós, tentando vaga para outros usuários. O direito à saúde com qualidade não é para todos. A universalização nunca é universal. Enfim, a combinação de sentimentos – impotência, frustração, culpa, cansaço, indignação – que me levaram a colocar esta experiência no papel, teve inspiração na ausência e omissão da sociedade, em especial, dos profissionais da saúde quanto ao atendimento às pessoas que necessitam. Parece que nós cidadãos, temos que pedir todos os dias desculpas por existir.
*Lilian Dutra é assistente social e pós-graduanda em Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ e em Serviço Social e Saúde – UERJ
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Fonte: Jornal O Cidadão/ABONG