A banda Hollywood Remédio não tinha tocado nem três músicas do seu repertório de rock gaúcho dos anos 80 quando um dos microfones pifa. Os músicos tentam consertar o equipamento, enquanto a voz sensual de Nina Simone começa a preencher o constrangedor silêncio da banda. Sentados nas poucas mesas embaixo de um mezanino do bar com ares de pub londrino, convidados de um aniversário parecem não ligar para o percalço e dão baforadas para o alto como se tivessem comemorando a falta de regras antifumo. Nem percebem que o local não tem equipamento de som próprio, o que obriga os músicos de Esteio, da região metropolitana de Porto Alegre, a improvisar. Há 24 anos é assim.
Encravado entre uma sinagoga e um mercadinho no Bom Fim, um dos bairros mais tradicionais de Porto Alegre, o Vermelho 23 tem a cara do seu dono – que não é uma cara lá muito comum. Filho de militar, engenheiro civil, ex-comunista, ex-candidato a governador do Rio Grande do Sul pelo Partido Verde e, mais recentemente, escritor, José Maria Rodrigues de Vilhena, mais conhecido Zé Maria, criou o bar em 1985 para colocar em prática um novo ideal de vida.
Desiludido com o mundo corporativo – ele trabalhou em indústrias petroquímicas –, não queria mais manter um ritmo frenético de acordar-trabalhar-dormir que, segundo ele, “só serve para nos transformar em maus amigos, maus amantes e maus patriotas”. A perda do pai, vítima de um assalto, e do único irmão, morto por um câncer raro no cérebro aos 24 anos, contribuiu para a decisão.
Como eles, pensava Zé Maria, poderia morrer de uma hora para outra sem ter aproveitado o mundo como o pai havia lhe ensinado, com deslumbramento e responsabilidade. Abriu mão da estabilidade financeira e do status do cargo de engenheiro de uma grande companhia para montar um espaço de convivência e de música – para ele uma das formas de libertação. “Queria montar um bar como eram as esquinas antigamente”, revela Zé Maria, nascido em Bagé há 55 anos. Encantando com o formato dos pubs londrinos, transformou o casarão de número 23 em uma pequena rua de passagem chamada Bento Figueiredo no primeiro do gênero da capital gaúcha.
Mas, desde o início, estabeleceu regras próprias. Em mais de duas décadas de existência, o Vermelho 23 só recebe, em um palco de madeira apertado, bandas com repertório restrito: jazz, blues e rock n’roll. Desde meados de 2002, funciona só aos sábados e algumas sextas-feiras, não aceita cartões de crédito e é conhecido por manter um estoque de cerveja que mal alcança às primeiras horas da madrugada. “Nunca fiz nada na minha vida como negócio. Não tenho amor ao dinheiro”, alega Zé Maria.
O desapego ao lucro e a simpatia pelo comunismo criaram uma situação insólita no Vermelho 23. O garçom do bar, Jair Lussani, mais conhecido como Alemão, se transformou em sócio. Há cerca de quatro anos, propôs ao chefe abrir o pub ao meio-dia para servir almoço e dar mais uma serventia ao sobrado alugado, que permanecia fechado de domingo à quinta. Zé rejeitou a proposta do funcionário de mais de uma década. “Incentivei-o a seguir adiante. Sabia que tinha futuro, mas aquilo não é para mim. Não se pode fazer as coisas na vida cujo objetivo seja ganhar dinheiro. Isso é muito vulgar”, justificou.
Apesar de nunca ter tido qualquer espécie de conflito com o chefe, Alemão, 38 anos, respirou aliviado com a desistência do ex-patrão. Seguiu adiante com ideia e criou um buffet livre, que funciona de segunda à sábado. “Num restaurante, não pode faltar comida nem sobrar demais. E tinha vezes que o Zé Maria não queria nem comprar cerveja com medo que sobrasse demais. Isso que cerveja não envelhece rápido. Assim cada um cuida do que é seu”, alegou. Eles decidiram, então, rachar o aluguel do pub. Alemão administra durante o dia, e Zé Maria fica com as noites – mas só algumas, as de sexta e sábado.
O empreendimento capitaneado pelo ex-garçom teve um crescimento meteórico. Desde 2005, Alemão serve uma média de 250 refeições diárias ao custo de R$ 7,90 com direito a uma carne. Recentemente, expandiu o negócio. Comprou a casa ao lado e criou um apêndice na lateral do sobrado, onde posicionou uma TV LCD de 42 polegadas para receber torcedores fanáticos de Grêmio e Inter, ávidos para assistir as disputas da dupla fora de Porto Alegre.
Zé Maria parece alheio às investidas capitalistas do parceiro – que já emprega cinco funcionários, além da mulher e do enteado – e faz questão de manter o estilo sóbrio e avesso às regras do mercado aos sábados, quando é ele quem assume o comando da casa. “Criei o bar para bandas terem um espaço de manifestação artística e para pessoas que não se conhecem se encontrarem e trocarem idéias e pensamentos. Mas, agora, a maioria só sai de casa para encontrar quem elas já conhecem. Não se arriscam mais a conhecer pessoas diferentes. Ficam no mesmo grupinho, que se torna cada vez mais fechado. Os adolescentes de classe média só tomam contato com gente de etnia, credo ou cultura diferente quando viajam à Europa”, filosofa, justificando o porquê não abre mais o pub durante a semana.
Nos últimos anos, Zé Maria também se desiludiu com o comunismo, e a fachada rubra do Vermelho 23 ficou bordô. Em 2002, na mesma época em que a migração de outros bares do bairro deixou o pub isolado do circuito noturno porto-alegrense, decidiu apostar na carreira política.
A convite de uma amiga, candidatou-se a governador do Rio Grande do Sul pelo Partido Verde. Achou que era o momento de reforçar seu engajamento político, mantido desde 1975, quando integrara a segunda fase da resistência ao regime militar. Mais uma vez, não se rendeu às leis do capitalismo. Recusou ajuda financeira de terceiros e bancou do próprio bolso R$ 5 mil da campanha, que lhe rendeu 6,3 mil votos. “Até que não fui mal. Mas não me importavam os votos. Eu queria era ter o espaço na mídia para passar a minha mensagem. Tinha de mostrar para todo mundo que aquilo (a política partidária) era uma farsa”, diz Zé Maria.
Com apenas 33 segundos de TV, mal conseguia completar uma frase inteira. Mas tem certeza que cumpriu seu papel. Angariou uma certa popularidade na cidade que, apesar de não alimentar o orgulho comum aos políticos, lhe agradou. “Tenho certeza que algumas pessoas entenderam a minha mensagem, principalmente a de que a política nada tem a ver com partidos, mas com a busca da felicidade. Ser político é uma obrigação de todo o cidadão”, vaticina.
Perder a eleição, porém, reforçou a sensação de isolamento que ele já sentia por não compactuar com os valores do mundo moderno, competitivo e pobre. Leitor voraz, decidiu passar sua mensagem escrevendo livros. No primeiro, Alquimia Verde, quis resgatar o respeito pelo mundo de um ponto de vista ecológico e social. Suas crônicas vão desde o problema do lixo até os problemas da democracia.
No segundo, Transgênicos: afinal quem decide nosso futuro, centrou a artilharia contra aquilo que considera a nova forma de dominação, a biotecnologia. “Empresas com poder de fazer sementes mais fortes podem controlar a produção de alimentos do mundo e decidir se a humanidade vai comer ou não. O mundo está mudando muito rapidamente, e as pessoas não percebem. O maior exemplo disso é a melancia. Quando era criança, havia melancia de tudo quanto é tamanho. Hoje, só existem as redondas, porque são mais vendáveis. As melancias são a forma mais patente da pasteurização do mundo em benefício do comércio”, preocupa-se Zé Maria.
Os livros assinados por ele estão à venda no Vermelho 23 e dividem lugar com tequilas, camparis, vodkas, cachaça, pôsteres do Buddy Guy, Ray Charles e uma centena de porta-copos, grudados com tachas no bar de madeira. Apesar do pouco tino comercial do seu dono, o Vermelho 23 sobrevive, porque lá o mais importante são as conversas densas com seu criador, que vão desde a decadência do casamento até as maravilhas da civilização grega, que recheiam dois mil livros da sua biblioteca particular. “Eu não sou um, sou muitos, sou uma multidão”, diz Zé, parafraseando T.S. Eliot, um dos seus poetas favoritos.
9/5/2010
A jornalista e videomaker Sílvia Lisboa, que assina esta produção exclusiva para ViaPolítica, é colaboradora da Cartola – Agência de Conteúdo.
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Fonte: ViaPolítica/Cartola