Lucio Carvalho
Também publicado no Obsevatório da Imprensa, Via Política e Correio da Cidadania.
Tenho um problema em minha vida. Todos têm, com maior ou menor gravidade, em maior ou menor número. Alguns problemas de algumas pessoas chegam a durar uma vida inteira e passam, mesmo assim, insolúveis. Problemas podem mesmo dar causa ao fim de muitas vidas. Podem mudar seu rumo. Podem tirar do rumo uma vida que parecia ter tido desde sempre e para sempre um destino certo. Um problema pode ser um tipo de fatalidade, mas também pode ser previsível. Imprevisível é maneira como as pessoas tratam dos problemas. Os seus e os dos outros. Em seu tempo, o Barão de Itararé diria que o “mal alheio pesa como um cabelo” mas, no tempo presente, nos dias de hoje, no modo de vida contemporâneo (hoje é 12 de maio de 2010, são 10 horas da noite), inventou-se um modo prático de exorcismo dos problemas alheios, chama-se o “cyberativismo”.
Trinta anos antes de morrer, ainda em 1978, o francês Jean Baudrillard anunciava o fim do social e a sobrevivência passiva das massas, as multidões, a maioria silenciosa. O cyberativismo é como o corolário do fatalismo denunciado por Baudrillard e, apesar, da interconectividade rondar cada impulso elétrico do planeta, cada bit emitido e recebido, ela não chega a romper o silêncio do real, o silêncio do deserto do real. Não que o cyberatvismo vá, por seu próprio instrumento, provocar a derrocada do movimento social feito na sola do sapato, mas ele traz consigo a mesma sina da democracia representativa, ou seja, o fim da necessidade do diálogo social, da contraposição, da denúncia, do debate, do embate, da dúvida. É como a sacralização da representação política através de um único motor: simplesmente a razão do indivíduo. Esse é o ponto, aliás, que responde bem às expectativas contemporâneas: os dilemas sociais resolvidos num mero exame de consciência. Os efeitos, as consequências dos problemas soam como nomes remotos de coisas que acontecem aos outros. Miséria? Sim. Dá-se um clique contra a miséria. Na fantasia proposta, o problema passa a estar nas mãos de quem os pode resolver. Fome? Um horror. Dá-se um clique contra a fome, mas um bilhão de pessoas continua a sem ter o que comer e o clique, o fabuloso clique, não converteu sequer um centavo em favor destas pessoas. E o seu problema continua lá. Lá dentro. Na barriga delas.
Não é estranha a adesão dos indivíduos a estes instrumentos da impessoalidade que a internet propiciou. As causas pelas quais se procuram adesão através das e-petitions (petições eletrônicas) são mesmo nobres e não nega-se a importância de que as pessoas criem canais de manifestação que, de outra forma, estariam fechados e circunscritos aos interlocutores privilegiados da burocracia inerente ao sistema de representação. O que está em questão não é uma disputa ideológica, mas a extensão do instrumento enquanto potência criadora de interesses e o que é feito dessa energia. O que está em questão é que o instrumento em si mesmo não significa a expressão do sentimento individual ou coletivo, mas uma amarração em torno de uma idéia representada virtualmente, um tipo de intenção delegada com efeito demonstrativo. Demonstrada a simpatia ou antipatia por uma idéia, a adesão ou condenação de um gesto ou ato político, então, o que vem a seguir?
A falta de respostas, a replicação e manutenção dos problemas: este é o nosso deserto do real. Muito em breve talvez a cyberparticipação seja a forma exclusiva de manifestação cívica. Talvez faça parte da televisão interativa, que deveria acompanhar a televisão digital. Talvez os orçamentos públicos sejam decididos como se decide o Big Brother, por telefone, talvez o voto deixe de ser obrigatório, o fato é que nada disso garante a operacionalização concreta do real no real, que sempre dependerá de que alguém imprima um gesto e altere o gesto de outra ou outras pessoas. Talvez isso pudesse garantir que os problemas de todas as pessoas fossem resolvidos. Na pior das hipóteses, que pudessem ser redimensionados, reequacionados. Mas a dimensão fantástica da experiência virtual impõe como uma película revestindo o real, o intocável real.
O cyberativismo não é um novo movimento social, mas é um novo movimento de massas. Talvez possa ser o único instrumento aceitável numa sociedade de indivíduos cada vez mais enclausurados nos seus instrumentos de conexão, seus computadores, telefones e dispositivos. Campanhas virtuais estão mobilizando cada vez mais as pessoas a pensar e a clicar. O desafio agora está em ir além do clique, além da decisão do clique, além da intenção. Um clique não é uma procuração de interlocução social. O indivíduo não pode se abster da sua vontade política, mesmo que seja para exercer a passividade e pregar o ceticismo mais completo.
Quando um organismo como a FAO propõe como ação uma petição on-line para pressionar os governos a erradicar a fome (ver aqui), é de pensar se seu objetivo é simplesmente mobilizar as pessoas a dar um clique e nada mais ou se efetivamente há alguma expectativa concreta de que os governos sintam-se pressionados por esse tipo de iniciativa e que, por conta disso, resolvam solucionar o problema da fome em definitivo. Betinho, o irmão do Henfil, foi a pessoa que mais lutou contra a fome no Brasil e no seu documento de fundação da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, a primeira grande rede de pessoas e instituições que se reuniu em torno de um objetivo no Brasil pós-ditadura, disse que “quando uma sociedade deixa matar crianças é porque começou seu suicídio como sociedade.” O que é preciso pensar nesse momento é se o cyberativismo e sua rede de cliques sem face tem alguma proposta para conter esse suicídio, pois ele já se encontra em curso. Caso contrário estamos ainda falando do mesmo deserto do real. E nele tudo segue igual: nem sequer a chuva chove mais no molhado. Se estiver vendo alguma coisa, leve em consideração a possibilidade de ser um holograma ou uma miragem.
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Se ainda não leu, leia também. Se já leu, leia novamente: A alma da fome é política, por Herbert de Souza e Carla Rodrigues.
Saiba também o que diz o presidente da FAO. Mas cuidado que ele está furioso!!
Muito legal seu artigo, Flávio, parabéns! Mas ainda tem gente que sabe da importância de não ficar só atrás de um teclado: veja o caso da manifestação que estão organizando para protestar contra o IBGE novamente pesquisar as deficiências só por amostragem…
Grande abraço