E-gov e redes sociais: participação real ou espetáculo?

Por Gilda Maria Azevedo em 1/6/2010

O aumento da oferta de redes virtuais talvez possa ser explicado não só pela onipresença e democratização das TICs, como também pelo aprofundamento da desmobilização social que se percebe a cada dia: conhecemos pessoas no mundo todo e, muitas vezes, pouco ou nada do nosso vizinho ou do local em que vivemos.

Hoje, o ambiente virtual é visto como uma dimensão potencialmente perfeita para a troca de ideias e de lutas em torno de causas com interesses mais abrangentes e também como um espaço de resistência à lógica neoliberal, tão avessa às mobilizações políticas voltadas para mudanças sociais. Mas, por contraditório que possa parecer, essas mesmas tecnologias são também apropriadas por pessoas, empresas e governos e utilizadas para objetivos não tão democráticos ou legais. Controles são criados e praticados, principalmente depois que governos totalitários “descobriram” que através dessas tecnologias podem ampliar a adesão e a manutenção de seus regimes.

Há também outro aspecto que deve ser considerado: o fato de as TICs contribuírem para o aumento da desigualdade social, especialmente daqueles cidadãos que vivem em locais periféricos nos quais a internet ainda não chegou; cidadãos que já vivem uma exclusão social, econômica e política, agora vivem a exclusão digital.

O cidadão consumidor

Mas, curioso que possa parecer, mesmo em um cenário onde a exclusão digital é protagonista, entra em cena a “cidadania digital” e o governo eletrônico, o e-Gov, como aposta de melhoria do relacionamento entre Estado e sociedade.

Os recentes acontecimentos mundiais comprovaram o que os críticos ao modelo neoliberal sempre denunciaram: o desastre que seria a opção pelo mercado como regulador de suas próprias atividades.

No caso específico do Brasil, onde a figura do cidadão sempre foi relativizada e que teve a sociedade desmobilizada nos muitos anos de regime militar, a adoção do regime neoliberal promoveu o agravamento da precarização política, social e cultural da sua população, o aumento da miséria e das diferenças sociais, que alteraram os padrões de relacionamento. Cabe aqui lembrar Milton Santos, que dizia que no Brasil os pobres nunca puderam ser cidadãos e as classes médias sempre foram condicionadas a querer privilégios, e não direitos.

Hoje, mais do que antes, percebemos o choque existente entre os interesses individuais e os coletivos, pois há entre eles o egoísmo, presente na postura individualista. O indivíduo vive isolado e indiferente, em cidades modernas e submissas às determinações econômicas externas, cidades sem cidadãos, local da conformidade e da resignação, onde se perde a ideia de espaço público e de homem público. Sem resistência, o cidadão seduzido pelas maravilhas do mundo do consumo passa então a cuidar e atender seus interesses privados; o cidadão torna-se então um consumidor.

Quadro de avisos eletrônico

Ao tornar-se consumidor, a idéia de cidadania que compreende o mundo não só de direitos, mas também de deveres e responsabilidades recíprocas, se esvazia. O discurso neoliberal “vendido” a uma sociedade civil desarticulada e enfraquecida foi mais do que depressa incorporado ao cotidiano das pessoas. A ditadura do consumo passou a determinar as ações, tanto do setor privado, quanto do setor público, e o Estado, mercantilizado, passa então a enxergar o cidadão como um cliente dos seus serviços.

Essa lógica vai fundamentar as propostas de modernização do Estado dos anos 90 e os discursos sobre o governo eletrônico (e-Gov), definido como o uso de tecnologias de informação e comunicação internas ao governo para informatizar suas operações e serviços e aproximar-se do cidadão.

Do uso da internet para oferecer ao público informações através dos primeiros sites governamentais, à disponibilização de serviços públicos nesses mesmos sites (e-Gov), muitos recursos foram alocados para o setor da tecnologia, recursos que não se mostraram tão eficazes para a promoção da participação cidadã.

Porém, mesmo tendo sido concebido para ser um novo e eficiente canal de comunicação entre Estado e cidadãos, o e-Gov mantém, ainda hoje (quase quinze anos depois de implantado), características de um quadro de avisos eletrônico no qual são divulgadas informações julgadas importantes por quem as publica e com baixa possibilidade de interação real.

A lógica espetacular

Esta, quando existe, é retroalimentada com respostas padronizadas, repassadas pelas empresas privadas, as centrais de atendimento (os famosos call-centers) contratadas pelos governos. Participação e transparência existem mais no reino das promessas. Ainda persiste a impressão de que nossos governantes não se preocupam com o que pensamos e com o que temos a dizer.

Na virtualidade das redes encontramos as Comunidades Virtuais e os Relacionamentos, também virtuais. Com características de modernidade, esse espaço de encontro é apontado como uma nova possibilidade de mobilização social, fazendo frente a organizações mais rígidas e verticalizadas e às instituições representativas, hoje muito desacreditadas.

Esses encontros mediados pela tecnologia, que se dão no âmbito privado da vida de todos nós, vão ao encontro de um novo modo de vida, do individualismo, que tanto prejudica o espírito coletivo da convivência, aprofunda a desagregação e cria a cidadania segmentada, que transforma cidadão em consumidor. Uma sensação de segurança é obtida pela não-presença que o ciberespaço propicia.

Guy Debord indica que vivemos isolados em conjunto e mesmo os defensores das redes virtuais não podem desconsiderar a importância do associativismo local, da circulação e do encontro real dos indivíduos, sob pena de tornarem-se espetaculares, portanto, débeis e passageiras. Isso porque o sentimento de pertencimento que o engajamento às redes/comunidades virtuais traz às pessoas produz a sensação ou ilusão do encontro, porém não o encontro em si. É a lógica espetacular, na qual o indivíduo não vive o acontecimento, apenas o contempla.

Credibilidade para obter apoio

O que hoje podemos constatar são indivíduos que se juntam em torno de alguma causa para logo depois mudar sua atenção para questões de interesses mais pessoais ou para algum novo movimento, outra novidade, ou apenas desistem do vínculo, se desconectam, sendo então substituídos por novos militantes. São engajamentos emocionais, na maioria das vezes, provocados por um evento ou crise pautados pela mídia espetacular que, ao deixar de abordá-los, faz com que caiam no esquecimento e desestimulem a continuidade da participação.

É interessante notar que o uso freqüente do termo “comunidade virtual” para identificar os diferentes tipos de ajuntamento on-line em torno de um tema comum e que nos dá a ilusão de pertencimento, trouxe também certo esvaziamento do conceito de comunidade. Seu uso indiscriminado e banalizado faz com que deixemos de pensar no ponto essencial da questão a que esse conceito remete, que é o sentido de conjunto, de pessoas que vivem no mesmo local, sob o mesmo governo ou compartilham do mesmo legado cultural e histórico e se organizam sob os mesmos interesses.

O encontro com “quem nós somos” não nos parece ser a principal motivação buscada nas comunidades virtuais, tidas como alternativa à sociabilidade concreta e ao individualismo exacerbado, que estabelece a competitividade e a falta de solidariedade, que transforma o outro em uma coisa, dificultando o convívio social saudável e a formação de vínculos.

Hoje, mais do que antes, entende-se que boa parte do sucesso dos governos está vinculada à capacidade que esses governos têm de se comunicar com a sociedade, trabalhar com grupos e de formar uma rede de colaboração com o compromisso de participarem ativamente no e dos assuntos públicos, que os ajudem a atingir suas metas e lhes dêem também credibilidade para obter apoio nas suas ações.

Potencial democrático e de mobilização

A questão da mobilização é então um objetivo a ser seguido. É consenso hoje a importância da publicação de informações como um incentivo à participação da sociedade, tanto nos assuntos de governo, como nos assuntos das empresas privadas, pois tanto um como outro dependem dos seus públicos para sobreviver.

A divulgação de informações no serviço público não é mera estratégia de marketing, mas uma obrigação, um compromisso com a sociedade, que é o motivo de sua existência. A publicação de informações concede ao cidadão a possibilidade de controle, pois é a partir do conhecimento e análise das informações que o cidadão, contribuinte e usuário dos seus serviços, poderá avaliar o que lhe é oferecido. A publicação transparente e atualizada de informações pelas empresas públicas é um instrumento de controle social e de participação cidadã.

Porém, embora governos ofereçam em seus sites oficiais acesso às principais redes sociais, como o Twitter, o Facebook, o Flickr, e governantes seus blogs e twitters pessoais como forma de se comunicar com a sociedade, ainda insistem em usar essas ferramentas para fins pouco motivadores, com conteúdos inexpressivos, com viés de promoção pessoal, também com características de um quadro de avisos divulgando, ou o que já está feito no “seu” governo (seus feitos!) ou algum detalhe de sua vida pessoal. Presidente, governadores, secretários, administradores vivem também no mundo virtual a lógica do espetáculo, das celebridades.

O que vemos é o contrário do que se promete: uma comunicação verticalizada, de cima para baixo; o antigo convivendo com o novo, ou seja, modernas ferramentas de relacionamento utilizadas para formas ultrapassadas e autoritárias de comunicação. Se, como dizem, o objetivo primeiro do uso das redes sociais pelos governos é o de ampliar o diálogo já existente oferecido pelos meios eletrônicos do e-Gov, para que a opinião do cidadão faça parte da construção de políticas públicas e que norteiem as decisões governamentais, então muita coisa ainda tem que mudar, a começar pelo uso que se dá às TICs, passando a explorar mais seu potencial democrático e de mobilização.

Usuário na posição de espectador

É claro que essa vocação do e-Gov não torna menos importante outra dimensão sua: suas qualidades técnicas e o empenho de seus técnicos em levar à população facilidades de acesso aos serviços públicos, oferecidos on-line. Mas há que se lembrar que a função do Estado não é só de prestador de serviços compulsórios (on-line ou presenciais). Portanto, tratar o cidadão apenas como cliente, vislumbrando apenas a sua satisfação (que nem sempre acontece), faz o Estado medíocre e reduz a dimensão social do e-Gov.

Como no e-Gov a maior oferta dos serviços oferecidos está relacionada às obrigações que o cidadão deve cumprir (poucas ofertas relacionadas aos serviços que dão acesso aos seus direitos, ou seja, às obrigações do próprio Estado), a participação do cidadão nesse relacionamento cidadão x Estado mediado pelo computador, ainda continua orientada pela obediência, sem questionamentos.

Continuamos ainda encontrando as mesmas dificuldades de sempre para fazer chegar aos governos nossas vontades e necessidades e para julgar o que eles têm feito; continuamos sem saber o que deve ser sabido; não temos informações suficientes à nossa disposição e continuamos sem saber o que devemos procurar.

O segredo ainda impera dissimulado nas intenções de melhor informar e na promessa da transparência presentes nos discursos de modernização apresentado à sociedade, discurso isolado do ambiente real e do próprio passado. Enquanto o conflito entre passado e presente não se resolve, o usuário do e-Gov (e do governo real) permanece esperando o que mais vão lhe oferecer, assumindo a posição de espectador, sem agir, sem pensar, como quer o discurso espetacular.

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Fonte: Observatório da Imprensa

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