Criação

Cartaz de Criação, onde Darwin encosta seu dedo em um chimpanzé

Por Marcelo de Souza Silva

Quando alguém se senta para assistir a um filme que conta a vida do cientista e naturalista Charles Darwin nos anos que precederam o lançamento de seu mais famoso trabalho, “A origem das espécies”, é provável que o faça cercado de expectativas, afinal, trata-se de uma das mais polêmicas teorias científicas de todos os tempos e que até hoje causa muita controvérsia. Essas expectativas podem se confirmar ou não, definindo o destino do filme na avaliação pessoal de cada um. De minha parte, devo dizer que o filme “Criação”, dirigido por Jon Amiel, não correspondeu às minhas expectativas, que eram de um apanhado biográfico menos introspectivo, mas nem por isso deixou de me agradar.

O filme se concentra menos na teoria da evolução do que na vida pessoal de Darwin. É inegável que este enfoque repete fórmulas de outras cinebiografias, mas essa escolha acabou trazendo elementos interessantes à tona que, pelo menos para mim, eram desconhecidos. Um desses elementos é a relutância do cientista em tornar públicas suas ideias, em parte devido à religiosidade de sua esposa, Emma. O conflito entre religião e ciência que a teoria de Darwin potencializou no mundo inteiro foi deslocado para dentro da casa do cientista e, mais ainda, para sua própria mente. Depois de anos estudando a natureza, o cientista (que teve formação religiosa) parece chegar à conclusão de que ela é um “campo de batalha”, onde os espécimes sobrevivem por força ou sorte, gerando um equilíbrio, mas colocando em xeque a ideia cristã de um Deus benevolente que valoriza todas as suas criaturas. Darwin parece relutar em aceitar essa ideia, principalmente quando resiste em contar a história da pequena orangotango Jenny para sua filha Annie, enfatizando o sofrimento que isso lhe traz.

Como aceitar que o destino de seres pelos quais se nutrem sentimentos de amor e afeição é regido por nada além do acaso? Annie, entretanto, gosta de ouvir a história, assim como parece ser a pessoa que melhor compreende as ideias do pai em sua família. A morte de Annie, entretanto, parece confirmar o que Darwin observara no mundo natural: não há uma força moral evidente no universo.

A partir deste trágico acontecimento, o filme nos mostra um Darwin muito perturbado, que tem visões e conversa com sua filha morta, parecendo estar à beira da loucura. Sua relutância em tornar públicas suas ideias persiste, apesar de outros cientistas avessos à Igreja insistirem para que ele faça isso. Essa dúvida se mostra na forma como a esposa reage à perda da filha, procurando e encontrando consolo na religião, ainda que um consolo que Darwin considera absurdo, em contraste com a sua solidão e desespero em aceitar essa mesma perda. Saber a verdade compensa o peso de viver em mundo desprovido de uma justiça superior? Sua decisão de submeter o manuscrito ao parecer final da esposa, que poderia destruí-lo se achasse mais adequado, parece ser uma espécie de solução que mostra o tamanho das contradições que lhe afligiam: um aval de Deus para que o mundo conhecesse um mundo sem Deus.

O quanto de verdade e ficção existe na abordagem do filme parece-me irrelevante na avaliação da qualidade do produto final. De fato, o filme não se presta a ser um tratado sobre a evolução e tampouco um verbete enciclopédico da vida do cientista. Mas a associação de Darwin com o conflito entre ciência e religião, entendido não como um simples confronto de visões distintas, mas como a transformação de uma visão religiosa e moral do mundo em uma visão científica e racional, pode gerar uma série de associações e reflexões, que, certamente, fazem deste filme uma ótima dica.
_______________________

Fonte: Gosto é gosto/O autor

One Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *