Elas da favela

Cartaz do filme, onde uma menina aparece de costas para a câmara e de frente para a favela

Vinte e sete de junho de 2007. A maior operação policial realizada no Complexo do Alemão, favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro, desde sua ocupação pela Força Nacional de Segurança Pública, que já dura sete meses, deixou 19 mortos e 13 feridos.

Da fatalidade surgiu a inspiração para o documentário “Elas da Favela”, lançado no Dia Internacional dos Direitos Humanos (10/12), na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e veiculado simultaneamente na TV Alerj. O curta-metragem é resultado de quatro meses de pesquisa e entrevistas com mulheres do Complexo do Alemão, que falam de suas experiências em uma comunidade ocupada pela polícia.

“A intenção era fazer um curta para que o filme fosse instrumento de debate, para que fomentasse discussões e servisse de material de apoio, apresentado antes de palestras e debates”, conta Dafne Capella, diretora do filme, uma iniciativa do mandato do deputado estadual Marcelo Freixo.

“Escolhemos entrevistar mulheres pela importância de se dar voz a quem sofre mais com a questão da ‘insegurança pública.’ Ouve-se outros setores da sociedade, mas o morador da favela, de uma forma geral, que é quem está no meio do fogo cruzado, não é ouvido.”, afirma Dafne. “E em não se dando voz ao morador da favela, menos ainda à mulher.”

Na contramão dessa tendência, o documentário faz questão de ampliar essas vozes. São seis mulheres que falam de ser mãe, filha, irmã, amiga e esposa em uma favela ocupada pela polícia, sem que entretanto sua segurança esteja garantida. Em alguns casos, muito pelo contrário.

É o caso de Josicleide, que relata uma situação que pode parecer o pesadelo de qualquer mãe, mas ali se tornou realidade. Seu filho, menor de idade, foi baleado dentro de casa e levado para o hospital. Após receber cuidados médicos, o jovem foi preso injustamente e passou oito dias no Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) sob alegação de que estaria envolvido com o tráfico de drogas. Quando o engano foi confirmado, a família recebeu uma moção de desagravo do juiz Siro Darlan, titular da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro.

Josicleide conta que seu filho achou desnecessário buscar a moção, mas ela fez questão de guardar o papel. “Caso a idoneidade do filho desta mulher fosse questionada novamente, ela poderia mostrar que não era bem assim. Mas no final das contas, é muito pouco, porque ela sabe, o filho dela sabe, mas o resto da sociedade e polícia continuam acreditando que ele é suspeito”, avalia Dafne.

Mães da favela

Se ser mãe é padecer no paraíso, no Complexo do Alemão isso se confirma pelos relatos das entrevistadas. Dona Jacira, por exemplo, viu seus filhos serem levados para o lado de fora de sua casa enquanto ela e as mulheres da família foram trancadas do lado de dentro. Neste momento ela conta que começou a chorar e foi verbalmente agredida por um policial.

Dona Jacira diz que nenhum filho dela jamais havia falado palavrão dentro de casa e se revolta com a atitude do policial. “Por ela ter uma casa grande, com vista boa, viu sua residência invadida sem mandado, seus filhos retirados à força e, porque se sensibilizou com a situação – o que é algo bem feminino –, foi agredida por quem deveria ser um representante da lei, por quem deveria garantir a segurança de todos, inclusive dela”, resume Dafne.

Recentemente, o governador Sérgio Cabral defendeu o aborto como um possível atenuante para a violência no Rio de Janeiro. Em entrevista ao portal G1, o governador afirmou que “Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal.”

Dafne rechaça a desastrada declaração. “A mulher que tem um filho ou que está grávida sente que esperam que o filho necessariamente se torne um criminoso, simplesmente porque nasceu na favela. Uma criança que nasce na favela não está no caminho do tráfico, definitivamente”, avalia.

É o que a diretora pôde comprovar durante o tempo em que entrevistou mulheres no Complexo do Alemão. Mães de cidadãos brasileiros, elas parecem ter que provar o tempo todo e antecipadamente a sua inocência e de seus familiares. “Essas mulheres têm que trabalhar muito mais para garantir o que as pessoas que não estão ali têm com menos dificuldade. É mais trabalhoso, é mais penoso e é sofrido”, afirma Dafne.

As protagonistas do “Elas da Favela” se equilibram entre o conflito e a tentativa de restaurar a normalidade de suas vidas. Para Dafne, ainda que o Complexo do Alemão seja o local onde essas mulheres têm sua vida social, é ali também que vivem momentos de medo. “O fato de não estarem no conflito armado explícito não impede seu envolvimento em todo esse processo. Elas e sua família não ficam afastadas dessa realidade, mas ficam reféns sempre.”

Apesar da realidade de conflito, Dafne rejeita a utilização do termo “guerra” para definir a ocupação no Complexo do Alemão. “Em uma guerra não há identidade ética com o inimigo, o assassinato é legitimado porque acredita-se que o inimigo está pronto para fazer o mesmo. Essa visão de que temos uma guerra só afasta ainda mais a favela do que se chama ‘sociedade’. E nesta guerra o inimigo é o favelado e não o traficante. Então legitima-se uma política violenta, que não muda em absolutamente nada a vida de quem está na favela e fora dela”, define.

Em uma cidade onde o corpo policial é essencialmente masculino, assim como as fileiras do tráfico de drogas, são as mães, filhas, esposas, irmãs, amigas e namoradas que guardam a tristeza e o medo da perda. Para a diretora, a questão ultrapassa a falta de recorte de gênero na política de segurança pública. “O que falta é uma política de segurança pública. Ponto”, afirma categórica.

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Fonte: Comunidade Segura

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