Morar com dignidade, viver na comunidade: IV Encontro Fraternidade e Pessoas com Deficiência
César Augusto de Assis Silva
Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo.
Em 25 de setembro de 2010, ocorreu em São Paulo, no Colégio Espírito Santo – escola católica dirigida pela Congregação das Servas do Espírito Santo –, o IV Encontro Fraternidade e Pessoas com Deficiência da Arquidiocese de São Paulo, organizado pela Pastoral das Pessoas com Deficiência, cujo tema foi Morar com dignidade, viver na comunidade.
Essa foi a quarta edição de tal evento, que tem ocorrido com periodicidade anual, consolidando a posição da Pastoral das Pessoas com Deficiência como instância religiosa fundamental para o debate público de questões relativas à deficiência. Essa pastoral também tem se tornado uma agência importante para a reivindicação de políticas públicas específicas para a população de pessoas com deficiência. Em anos anteriores, outras reivindicações nortearam os encontros, como exemplo, a inclusão de pessoas com deficiência na vida comunitária (2007), a mobilização política e a inclusão dessas pessoas na Igreja e sociedade (2008) e o transporte público acessível (2009). Dando continuidade a esse modelo de evento – a um só tempo religioso e político –, produtor de um intercâmbio entre uma multiplicidade de agentes que se traduz em demandas, a questão principal do evento desse ano foi a moradia digna e a vida em comunidade, direitos dos quais muitas vezes a pessoa com deficiência encontra-se excluída. A inspiração teológica motivadora do encontro foi a passagem bíblica: “alarga o espaço da tua tenda: estenda o toldo de tua habitação, para que haja espaço para todos” (Isaias, 54.2). Tal versículo foi apropriado para fazer referência a idéia de habitações inclusivas, dignas de moradia para todos.
É notável a pluralidade de agentes públicos presentes no evento. Entre as instituições representativas das pessoas com deficiência, pode-se citar Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência, Movimento Fé e Luz, Arca do Brasil, Associação dos Excepcionais São Domingos Sávio e Associação dos Deficientes Visuais e Amigos. Como parceiros do evento, destacaram-se Fórum Fraternidade e Pessoas com Deficiência, Colégio Espírito Santo, Pastoral HIV/AIDS, Casa da Reconciliação, Conselho Latino Americano de Igrejas, Universidade Metodista, Pastoral Universitária da PUC, Comissão Nacional de Catequese, Associação de Seminários Teológicos Evangélicos e Editora Paulus. O evento foi patrocinado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do Governo Federal e contou com apoio do Hospital São Camilo e do Centro Ecumênico de Serviço (CESE).
Compuseram a mesa de abertura, além de religiosos e leigos católicos vinculados à Pastoral das Pessoas com Deficiência, diversos representantes do Poder Público dos níveis federal, estadual e municipal, assim como representantes do Ministério Público, do Conselho Nacional de Assistência Social e de organizações civis vinculadas ao tema deficiência. A convidada de honra do evento foi a Sra. Maria Amélia Vampré Xavier, diretora para assuntos internacionais da FENAPAEs (Federação Nacional das APAEs), militante da causa da deficiência e mãe de uma pessoa com deficiência mental.
Na primeira parte do evento debateu-se o tema Morar com dignidade, viver na comunidade. Os palestrantes que compuseram a mesa foram Fernando Sfair Kinker (professor da UNIFESP, consultor do Ministério da Saúde na área de saúde mental e militante da reforma psiquiátrica), Laís Figueiredo Lopes (advoga, conselheira da OAB e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – CONADE e professora da PUC, SENAC e UNISANTOS) e Iracema de Abrantes Souto (representante da Secretária Nacional de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome).
Em linhas gerais, o debate da primeira mesa centrou-se na promoção da desinstitucionalização da deficiência. O professor Fernando Kinker argumentou que a institucionalização é uma resposta da sociedade, com o apoio da ciência, a uma dificuldade de conviver com a diferença. O militante da reforma psiquiátrica demonstrou, por meio de argumentos e exposição fotográfica, a violência da prática de confinamento de pessoas com deficiência mental em instituições totais. De acordo com ele, na instituição ocorre um empobrecimento de trocas sociais, a mortificação do eu, a falta de desejo ou projeto de vida, a invalidação, a perda de auto-estima, identidade, noção de tempo e espaço e pertencimento social. Ou seja, retomando o tema do evento, para Kinker a instituição total não seria uma moradia digna, além de isolar a pessoa da vida em comunidade. Assim, ele argumentou a favor das residências inclusivas, isto é, pequenas casas, com no máximo oito pessoas com deficiência, que seriam auxiliadas por um cuidador profissional. Desse modo, a pessoa com deficiência teria sua autonomia garantida nessa nova moradia, ao mesmo tempo em que é integrada a uma comunidade, já que não estaria excluída de práticas cotidianas comuns a todos, como exemplo, freqüentar o comércio local.
A advogada Lopes, em sua fala, explicitou o quadro jurídico no qual a deficiência atualmente está posta no Estado-nação. Fez considerações acerca da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, elaborado pela ONU em 2006, da qual o Brasil é signatário desde 2007 (Decreto legislativo 186 e Decreto Federal 6949). A palestrante mencionou que tal convenção possui valor de emenda constitucional, ou seja, possui um estatuto normativo de mais alto grau. A advogada explicitou que tal legislação retirou a deficiência do que se convencionou chamar modelo médico e a colocou no modelo social. Desse modo, o foco do Estado deixa de ser a potencialidade de cura, isto é, a normalização de um corpo divergente. De outro modo, no modelo social, a deficiência é compreendida como um produto da interação entre a pessoa com limitação funcional e as barreiras sociais (atitudes e ambientes não inclusivos). Torna-se, então, compromisso do Estado a remoção dessas barreiras que produzem a deficiência, bem como a promoção de ambientes acessíveis, para garantir eqüidade entre pessoas com deficiência e demais pessoas da sociedade. Além disso, Lopes mencionou o artigo 19 da Convenção, que afirma a vida independente e a inclusão na comunidade, ao garantir, no item A do artigo citado, que:
As pessoas com deficiência possam escolher seu local de residência e onde e com quem morar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e que não sejam obrigadas a viver em determinado tipo de moradia; afirmando o direito da escolha do local de moradia e as pessoas que vão residir com ela.
Para encerrar a primeira parte do evento, Iracema de Abrantes Souto, representante do Governo Federal para o assunto de assistência social, afirmou que, para o tratamento devido da questão da deficiência, é necessária a elaboração de políticas públicas que cruzem diversas instâncias do Estado, como exemplo, educação, saúde, previdência, habitação, turismo, cultura, entre outras, além de o poder público dever manter uma grande proximidade com a sociedade civil, para ouvir os seus reclamos. Em consonância com o tema do evento, Souto ratificou que a política nacional para deficiência do Estado é contrária à instituição total segregadora, sendo favorável a residências inclusivas. Além disso, o Estado é responsável pela questão, sendo o seu dever garantir o amparo, o cuidado, a acolhida e a assistência. Finalizando assim, a primeira parte do evento, mais acadêmica e política.
De outro modo, a segunda parte do evento foi mais teológica. Como mencionou Tuca Munhoz, coordenador da Pastoral das Pessoas com Deficiência da Arquidiocese de São Paulo e ativista político da questão da deficiência, a segunda mesa consistiu em um encontro ecumênico para debater teologicamente a questão da deficiência, ou seja, algo absolutamente inédito. A mesa intitulada Reflexões para uma Teologia da Inclusão foi coordenada pelo padre José Bizon e contou com pastores das principais igrejas protestantes históricas do Brasil – pastora Elizabete Costa (Ig. Metodista), reverendo Carlos Musskopf (Ig. Luterana), reverendo Fernando Bortolleto (Ig. Presbiteriana) e reverendo Levi Araújo (Ig. Batista). Além disso, também compôs a mesa, como representante da organização civil de pessoas com deficiência, o Sr. Carlos Alberto Moraes da Silva (Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência).
Em linhas gerais, a questão central dessa segunda mesa foi realizar uma reflexão sobre a teologia da inclusão, categoria recentemente elaborada. A concepção religiosa afirmada no debate esteve em absoluta consonância com o modelo social da deficiência. Historicamente, a deficiência foi vista pelo cristianismo como um mal no corpo individual que demandaria cura. Esse mal geralmente foi concebido como um fruto do pecado original, da possessão demoníaca ou da falta de fé da família ou pessoa com deficiência. De outro modo, na teologia da inclusão, a deficiência não seria uma patologia/doença em um corpo individual, mas seria uma das muitas formas pela qual Deus se revela, isto é, ela é um aspecto da pluralidade da Graça de Deus. Ainda de acordo com essa formulação teológica, a fraqueza, a dependência do outro e os limites do corpo não são características exclusivas da pessoa com deficiência, mas sim característica intrinsecamente humana. Segundo o que foi argumentado, até mesmo quando Deus se fez homem, enviando Cristo para a Terra, o próprio filho de Deus experimentou as limitações da condição humana, sofrendo humilhação e a morte de cruz.
Em sua fala, o reverendo presbiteriano Bortolleto mencionou que o termo “evangélico” é muito genérico, pois há uma multiplicidade de correntes teológicas de matriz protestante que são assim classificadas. Desse modo, é necessário tomar cuidado com a afirmação de que os evangélicos buscam a cura da deficiência. O mesmo reverendo afirmou também que geralmente são as correntes pentecostais que associam deficiência a um mal passível de cura e libertação. Participantes da platéia, bem como a pastora metodista Elizabete Costa e o representante da Fraternidade Cristã, o senhor Carlos Alberto, criticaram tal prática cristã, de buscar a cura para deficiência. De outro modo, em consonância com o que afirmou Tuca Munhoz, o coordenador da Pastoral das Pessoas com Deficiência, todos parecem concordar que, em um sentido teológico, o surdo pode ouvir, o cego pode enxergar, o deficiente mental pode refletir e o cadeirante pode se levantar para agirem criando uma sociedade mais justa e solidária. De acordo com a elaboração teológica debatida, a cura, nesse caso, torna-se uma metáfora para a ação política e social organizada.
Além disso, os pastores mencionaram em uníssono que há um longo caminho a percorrer em suas igrejas. Todos assumiram que os seus templos ainda não são acessíveis, que os materiais da liturgia e os rituais ainda impõem barreiras para as pessoas com deficiências. Desse modo, os pastores presentes ratificaram a transformação necessária ainda a ser realizada, concordando com os ideais de uma igreja inclusiva elaborada na Campanha da Fraternidade de 2006 da Igreja Católica, bem como na declaração de Uma Igreja de Todos e Para Todos, redigida em 2003 pelo Conselho Mundial de Igrejas.
Assim, é possível concluir sobre o evento etnografado o papel importante da Pastoral das Pessoas com Deficiência para a mediação entre pessoas com deficiência e o Poder Público, bem como para a densificação do debate sobre a questão. Certamente, é uma instância importante para a sociabilidade pública e a organização civil de pessoas com deficiência, pois estiveram presentes no evento pessoas que se definem como deficientes mentais, visuais e físicos (com a ausência de pessoas surdas/deficientes auditivas). Além disso, a Pastoral articulou agentes muito diversos, como ativistas políticos, intelectuais, representantes do Estado e religiosos de diversas instituições cristãs. Ademais, as principais questões contemporâneas e controversas do tema deficiência estiveram em pauta, como exemplo, o modelo social versus o modelo médico, a desinstitucionalização versus a institucionalização e a independência versus a dependência. Desse modo, o que, de fato, esteve em questão foram os sentidos legítimos do que é a deficiência, bem como quais seriam as políticas públicas mais adequadas para essa população.
Fonte: Ponto Urbe
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