(Não) conte para seu chefe que você tem Aids

Fita vermelha, símbolo da AIDSPor Sonia B. Hoffmann *

“Silêncio. Não conte para seu chefe que você tem Aids. O preconceito e a demissão virão logo adiante”.

Este é o conselho da grande maioria dos médicos, profissionais da saúde e familiares habitualmente ouvido pelos trabalhadores vivendo com Aids. É compreensível tal atitude, pois eles percebem a violência, a perversidade e a devastação ocasionada pelo preconceito e pela maledicência escamoteados ou explicitos no olhar, na palavra, no gesto, na ação do outro. Contudo, a pessoa vivendo com Aids não somente percebe o preconceito, mas o sente em suas diversas manifestações e efeitos emocionais, mentais e até mesmo físicos – venha ele através do chefe (i)mediato ou de seus colegas de trabalho; dos seus vizinhos, (des)conhecidos e familiares.

O propósito desta orientação talvez seja a melhor possível, pois consideram que, a partir deste comportamento, a privacidade e a segurança do seu paciente ou do seu familiar estará garantida no ambiente laboral. Ledo engano! Mesmo que a condição de Aids não esteja documentada no contrato de trabalho, a profissões e funções que, por exemplo, demandam o cumprimento do horário e agendamento fixado previamente ou precisam ser desenvolvidas em equipe. A falta, mesmo ocasional, de um dos elementos pode servir de entrave do processo. No entanto, em determinadas circunstâncias, Aids implica flexibilidade para seu tratamento e para o acolhimento das necessidades apresentadas por este trabalhador. Mas como pensar em flexibilidade se o chefe desconhece que o seu funcionário tem Aids?

O argumento usualmente apresentado quando tais situações são apontadas é: “independentemente de ter ou não Aids, profissionais ou funcionários adoecem e, em algum momento, ausentam-se ou faltam em seu serviço”. Quem apresenta esta justificativa tem razão, mas alguns detalhamentos precisam ser logicamente analisados. Pelo bom-senso, trabalhadores com Aids apresentam maior probabilidade de faltas ou afastamentos médicos do que aqueles sem esta imunodeficiência, pois o uso contínuo dos antirretrovirais pode apresentar sérios efeitos colaterais; doenças oportunistas e coinfecções surgem com mais frequência e a exposição constante a fenômenos climáticos e intempéries da natureza podem potencializar a vulnerabilidade e representar complicações profundas na saúde física do trabalhador com Aids. Logo, atestados médicos, hospitalizações e afastamentos para a realização de exames e consultas repetem-se em curtos intervalos de tempo. Popularmente falando, junta-se a com b e a desconfiança aparece. Se o profissional não apresenta bom ou excelente rendimento e competência, não tornar-se quase insubstituível em sua função, a demissão ou a transferência certamente virá por algum motivo. cereja Além disto, não podemos descartar a hipótese de repentinamente surgirem desordens de saúde e indisposições com perda ou não da consciência, acidentes de trabalho e outras situações inesperadas e urgentes, as quais, para serem solucionadas, precisam inclusive do conhecimento da infecção pelo HIV a fim de que procedimentos não sejam prejudicialmente adotados. Ademais, nem sempre é possível que esta revelação venha a ser feita sigilosamente naquele momento porque o trabalhador poderá estar acompanhado por outros colegas, os quais porventura também desconheciam, até então, o seu estado de doença crônica.

Por sua vez, chefes tem amigos os quais também tem seus amigos e que são amigos de outros amigos e, assim, amigavelmente o sigilo e a privacidade são compartilhados e comentados. Onde havia a dúvida e a desconfiança, a certeza poderá começar a tomar forma se o trabalhador com Aids for constantemente visto ingerindo sua medicação, encontrado regularmente nos locais de dispensação do medicamento ou nos postos de saúde aguardando sua consulta com o infectologista. Sim, consultar um infectologista é, para muitas pessoas, sinônimo de estar com Aids.

Deste modo, aconselhar ao trabalhador nada dizer ao seu chefe significa pedir a ele que, além de administrar por si a sua vida e as adversidades decorrentes da Aids, permaneça em constante vigilância para não ser descoberto, sobrecarregando-se ainda mais com o elemento estressor do receio em ficar desempregado e desacreditado. Com o tempo, este receio pode transformar-se em medo e o trabalhador passa a viver como em um pesadelo repleto de acusações, escárnios e incompreensão mesmo fantasiosos. Estes sentimentos geralmente desencadeiam um acúmulo de desgastes emocionais e mentais, repercutindo muitas vezes no desenvolvimento e na própria qualidade do desempenho de sua atividade profissional. E mais ainda: ele precisa ouvir silenciosamente o comentário e a opinião preconceituosa de alguns chefes e colegas de trabalho sobre as pessoas vivendo com Aids, sabendo que aquilo seria dito em relação a ele em sua ausência – algumas pessoas deixam cair ou dispensam as máscaras quando se encontram em sua zona de conforto ou em ocasiões nas quais a coragem não é suficiente para enfrentar um debate inclusivo. E como dói perceber-se cercado pelo fingimento e ver seu colega assinar seu atestado de hipocrisia.

No entanto, nem sempre a decisão de não revelar para o chefe ou o empregador a condição de Aids não é tomada pelo aconselhamento de outrem. O próprio trabalhador faz esta opção porque tem receio de que, se o chefe souber, seu emprego corre perigo e este é a única fonte de renda para manter-se e, algumas vezes, para sustentar a família; sua estrutura psíquica não está forte o suficiente para o enfrentamento das consequências desta revelação ou o trabalhador aposta na certeza de nenhuma complicação grave ocorrer em sua saúde a ponto de precisar faltar ao serviço.

O ideal seria que as pessoas realizassem suas atividades quando em condições reais, porém, esta não é nossa realidade. Infelizmente, temos o conhecimento da existência daqueles vivendo com Aids tirando proveito e supervalorizando sua vulnerabilidade, aproveitando para conduzir frouxamente seu emprego, gerando-se assim desconfiança por ambos os lados: empregador e empregado. Mas tudo é possível e, talvez um dia, a total honestidade comportamental excluída de interesses escusos não seja mais considerada utópica e torne-se uma realidade. Afinal de contas, como refere Eduardo Galeano: “a Utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a Utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.

Entretanto, enquanto esta conduta não torna-se um imperativo ou um hábito rotineiro como resultado do nosso progresso social e filosófico, quem sabe políticas de trabalho e aposentadoria mais justas e coerentes específicas para as pessoas com Aids sejam inventariadas, elaboradas e efetivadas para que ela não acabe por neurotizar-se pelo assombramento de estar sempre sob a espada da demissão? Alguém poderá pensar nesta proposta como a solicitação ou reivindicação de regalia. Não, não é! Quem assim pensa desconhece os estragos que o HIV e os antirretrovirais realizam em uma pessoa no aspecto físico, emocional e mental, causando inclusive seu envelhecimento precoce. Se o estado de saúde da pessoa infectada pelo HIV já traz muitas preocupações, pensemos então naqueles apresentando coinfecções e coinfecções e deficiências adicionais. Todas estas possibilidades são peculiaridades e necessitam ser vistas e analisadas diferentemente, pois ocasionam e são geradas por um conjunto de outros estressores conducentes e definidores de cansaços subjetivos.

Todos sabemos que, na verdade, o ser humano não precisa de esconderijos ou de holofotes, mas da satisfação e do prazer em viver. Portanto, trabalhador vivendo com Aids, analise e pondere com bom senso e lucidez suas necessidades, possibilidades e capacidade de responsabilização e enfrentamento, considerando inclusive seu estilo e perfil e as características da profissão escolhida. Após, faça individualmente sua opção em revelar ou não para seu chefe que você tem esta imunodeficiência, consciente de que qualquer uma das alternativas trará consequências positivas e/ou negativas para sua vida.

* Fisioterapeuta – CREFITo 6159 F E-mail soniab27@terra.com.br Porto Alegre, abril de 2011.

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Fonte: Diversidade em cena

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