Como estaria o Brasil sem a ratificação da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

Izabel Maior recebe o decreto legislativo de ratificação da CDPD das mãos do Senador Garibaldi Alves, Presidente do Congresso Nacional à época.

Por Izabel de Loureiro Maior*

Relembrar o dia 9 de julho de 2008 é voltar aos momentos emocionantes de uma estratégica bem elaborada para a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), com a inédita equivalência à emenda constitucional.

O Decreto Legislativo n°. 186 de 2008 poderia ter adotado a CDPD tal como os demais tratados de Direitos Humanos o foram, como lei ordinária, abaixo da Constituição da República. O Protocolo Facultativo da Convenção, texto independente, poderia não ter sido ratificado e as salvaguardas estariam prejudicadas. Ainda mais, a CDPD poderia ser um documento esvaziado por “reservas”, a exemplo de tantos outros países. E resvalando para o pior dos cenários, a Convenção não estaria ratificada até hoje, embora fosse algo pouco plausível.

O País seria o mesmo? A resposta é simples – os direitos das pessoas com deficiência não teriam a força legal de hoje. A transformação para uma sociedade mais justa e sem discriminação estaria ainda mais distante.

Foram necessários argumentação e convencimento para que o tratado dos direitos alcançasse o peso que tem. Passou-se por várias etapas de encaminhamento burocrático e lobby político. A partir da visão de quem participou de todas as ações, o processo para a vitoriosa ratificação iniciou-se na noite de 26 de agosto de 2006, momento da aprovação do texto da CDPD, na sede da ONU, concluindo a 8ª. Sessão do Comitê ad hoc. Lembro-me que as conversas foram imediatamente trocadas do plano internacional para a realidade brasileira, adotando-se o §3º do artigo 5º da CF como objetivo central. Isso porque desde a adoção da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, passou a existir a possibilidade de um tratado de Direitos Humanos ter equivalência constitucional. Era lógico aspirar que a nova Convenção viesse a ser aprovada dessa maneira.

Os grandes feitos acontecem quando um determinado contexto reúne as condições desejadas para impulsionar a ação de muitas pessoas, sob a liderança daquelas que se encontram em pontos-chaves de negociação. Pode-se entender que houve senso de oportunidade, apoiado em responsabilidade e forte determinação. É parte da história do movimento político de uma minoria que deixou de ser silenciosa e invisível para forjar seu próprio caminho para a emancipação. Decerto nada foi fácil, mas cada obstáculo vencido merece ser recompensado pelo efetivo cumprimento da CDPD.

A Assembleia Geral da ONU homenageou o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), com a adoção da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em 13 de dezembro de 2006. Nesse dia, a mesma comemoração da DUDH aconteceu em um evento no Palácio do Planalto, coroada pelo lançamento da publicação de todos os documentos internacionais relativos aos Direitos Humanos, inclusive a estreante CDPD. Não menos significativa foi a exposição dos 25 anos do Ano Internacional das Pessoas Deficientes – assim definido pela ONU em 1981. A lembrança desses fatos mostra que houve uma construção coletiva que traz orgulho àqueles que trabalharam diretamente para dar o toque suprapartidário ao evento e a todo o processo da ratificação.

O ano de 2007 começou com grande expectativa. A ONU abriu o procedimento para as assinaturas da Convenção em 30 de março. O Brasil precisava estar lá e foi assim que aconteceu, tal como o desejado, com a atuação política necessária para que tudo desse certo. Foi o primeiro passo de convencimento dentro do governo.

É muito mais complexa do que pensam os observadores externos, ainda que militantes de longa data, a diferença do tempo das organizações do movimento social e o da gestão pública. Há prioridades, grupos de interesse, episódios que interferem nos processos e outras numerosas questões. Em meados do ano de 2007, percebeu-se que o Palácio do Planalto não tinha a certeza de encaminhar a CDPD com a sugestão de vir a receber status constitucional. A maneira como deveria ser votada a adoção da Convenção é uma prerrogativa do Congresso Nacional, de acordo com a independência entre os Poderes da União, entretanto a sugestão seria importante.

Algo deveria ser feito para fortalecer a defesa da internalização com equivalência de emenda constitucional. Era o momento de colocar em evidência a posição e expectativa das pessoas com deficiência, com o cuidado de não acirrar os ânimos, agir com sabedoria para ganhar adesões.

Chegou setembro, a comemoração do Dia Nacional de Luta foi organizada pela CORDE (antiga Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, órgão da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República), em formato de teleconferência nacional dedicada à Convenção da ONU. A audiência expressiva demonstrou que as pessoas estavam mobilizadas e o recado foi recebido. Dessa maneira, o lema “Nada Sobre Nós Sem Nós”, introduzido por Michael Masutha e William Rowland, ativistas sul-africanos do movimento de pessoas com deficiência, no início dos anos 90, provou ser eficiente. Essa expressão havia sido amplamente invocada durante a elaboração da CDPD e está entre os princípios gerais do tratado, no art. 3º, respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas.

A posição do governo foi uma rápida tomada de decisão e, em 26 de setembro, no lançamento da Agenda Social de Inclusão das Pessoas com Deficiência, o presidente Lula assinou a Mensagem Presidencial nº 711/2007, sugerindo a aprovação da Convenção com base no § 3º do art. 5º da CF. O fato representou um bom início para os trabalhos da ratificação.

Com o envio ao Congresso Nacional, a Câmara dos Deputados realizou uma comissão geral (sessão plenária aberta a convidados) em 23 de novembro, momento em que criou uma Comissão Especial formada por onze comissões permanentes. Entretanto, o ano terminou sem que tivesse havido andamento da ratificação no Legislativo.

Em 2008, a estratégia foi alterada e as novas frentes escolhidas foram publicação e divulgação do texto da Convenção, audiências públicas, reuniões com as lideranças partidárias, mobilização das organizações, coordenadorias e conselhos e o lobby corpo-a-corpo nos corredores e gabinetes dos parlamentares. O resultado, precedido de longas horas de trabalho, de espera e de apreensão, não poderia ser melhor. As duas votações na Câmara, nos dias 13 e 29 de maio, terminaram com ampla margem segurança e sem votos contrários.

Em seguida vieram os trabalhos no Senado Federal. No âmbito da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, a aprovação aconteceu em 26 de junho e as duas votações no Plenário ocorreram no mesmo dia 2 de julho, quando houve a aprovação final por 56 senadores, sem abstenções ou votos contrários.

Vitória mais rápida do que pensado.

Após três anos de ratificados os textos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, já se percebe maior número de pessoas que conhecem o tratado, assim como o ambiente jurídico mostra interesse pela matéria, no aspecto acadêmico e de aplicação. Vários são os artigos e reportagens, dissertações e teses de pós-graduação. Prosperam os seminários e também os fóruns virtuais de debate. O processo de venceu a inércia e encontra-se em marcha.

Todavia as esferas de governo, o Poder Legislativo, o setor privado e um segmento relacionado a entidades não-governamentais que atuavam na educação segregada mudaram muito pouco a sua forma de atuação. Um exemplo é a recorrente defesa do governo pela Advocacia Geral da União que não considera a Convenção ou ainda o grande número de projetos de lei que sequer adotam a nomenclatura correta – pessoa com deficiência. Ao que se observa, novas influências no Congresso estão se esforçando para fomentar e fortalecer o respeito pela Convenção.

Há falhas graves que merecem maior atenção do movimento social e do Ministério Público. A postura do descumprimento é histórica e modificá-la exige sensibilização continuada, fiscalização e medidas de sanção. Desobedecer a Convenção é um ato de discriminação contra as pessoas com deficiência, é violação de seus direitos e, por meio do Protocolo Facultativo da Convenção, o País pode ser denunciado ao Comitê da ONU e ser alvo de condenação na esfera do direito internacional.

Para enfatizar a importância da Convenção, cita-se o Preâmbulo da Convenção: y) Convencidos de que uma convenção internacional geral e integral para promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência prestará significativa contribuição para corrigir as profundas desvantagens sociais das pessoas com deficiência e para promover sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos, os Estados Partes acordam: Artigo 1. O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.

A principal mensagem, depois de três anos, é que a mesma energia de antes deve prevalecer agora, pois o que parecia impossível tornou-se realidade no histórico 9 de julho de 2008. Contar os fatos como eles aconteceram nos bastidores, esclarecer a razão dos caminhos percorridos, as negociações para remover os entraves e as estratégias usadas por quem estava no olho do furacão é mais uma contribuição que posso prestar à causa das pessoas com deficiência, para tornar a CDPD compreendida em toda a sua grandeza e capacidade de transformar sonhos em vida digna e plena de iguais oportunidades.

*Professora Assistente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Fisiatria, especialista em Neurologia e Bioética. Coordenou a participação do Brasil na ONU, durante a elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e liderou o processo de ratificação. Participa do movimento político das pessoas com deficiência desde 1977; foi a primeira pessoa com deficiência a exercer o cargo de coordenadora nacional da CORDE e foi a primeira secretária nacional da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência/SDH, de 2002 a 2010.

Saiba mais sobre o processo de ratificação da Convenção:

Convenção: a carta de alforria das pessoas com deficiência
Conheça a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

4 Comments

  1. Izabel,

    Muito obrigada por partilhar o processo percorrido para a ratificação, importantíssimo para todos nós!

    Parabéns pelo texto, sempre objetivo e claro! Que a energia de luta pelos direitos continue prevalecendo!

    Um grande abraço

    Marta Gil

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