Desembargador defende a Lei de Cotas, inclusive para pequenas e médias empresas

Dr. Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, Desembargador.Eu quero iniciar minha fala trazendo a experiência que vivi na ONU, na inauguração da Convenção, que foi impar. Quero trazer um pouquinho também da minha experiência como pessoa com deficiência e também como advogado dentro do Ministério Público e juiz. Vou tentar ser o mais suscinto possível.
Inicialmente quero frisar um aspecto muito bem lembrado pela Doutora Linamara, se trata do processo civilizatório, do avanço do processo civilizatório, intimamente ligado aos direitos humanos e essa expressão direitos humanos parece a muitos que não lidam com direitos, uma expressão redundante, porque direito tem que ser humano, naturalmente, só assim talvez a quem não seja da área jurídica. Mas os direitos só se tornaram realmente dirigidos as pessoas a partir do século XVIII, por causa da revolução liberal francesa, que até então o direito nada mais era do que a manifestação da vontade do rei, do imperador, do estado, da igreja. O direito não servia a população, o direito subjugava.
E hoje nós estamos em um impasse porque os direitos humanos vieram evoluindo, no século XVIII construíram-se as liberdades individuais, a proteção do indivíduo contra o abuso do poder político, o direito de ir e vir, de livre expressão, todos são iguais perante a lei, direito de votar, enfim, porque todos esses direitos estavam realmente ali para o indivíduo.
O que infelizmente ocorre é que essa evolução do direito sempre encontra novos desafios, que embora se proclamasse a universalidade da declaração universal dos direitos do cidadão em 1778, a lei se tornou detentora de prerrogativas exclusivas de poucos. A condição de 1971 determinou a maioria desses direitos em relação a maior parte da população francesa, onde uma mulher, Constance, reivindicou que a declaração universal dos direitos do homem também se chamasse “da mulher”, no acirramento das sanções. Quando houve a crise da revolução francesa, ela foi também guilhotinada por fazer essa proposta. Se esses direitos, inicialmente protegessem o individuo contra o abuso do poder político, da nobreza que preferia um estado democrático , se tornaram ineptos porque a burguesia rapidamente se apropriou deles.
E criaram, como reação, direitos sociais, que só viram a luz a partir do século XIX, justamente para agraciar a maioria economicamente desvalida de bens jurídicos que as equiparam com os detentores do poder econômico, garanta-se, portanto, educação, saúde, trabalho digno, dignidade com os bens da vida, são direitos, portanto voltados à maioria economicamente desvalida para proteger dos poderosos econômicos, ou seja, os direitos sociais são coletivos, e que defendem contra o abuso do poder econômico. Nos anos 60 surgiu uma falácia que era assim, os comunistas diziam ‘Bom, o importante é a igualdade, a liberdade não’, já os capitalistas diziam o contrário ‘O importante é a liberdade, a igualdade é bobagem’. E essa coisa levou à guerra fria, de tal forma que se radicalizou, que aqui no submundo (naquela época pois não somos mais, já somos credores dos Estados Unidos, do FMI também), mas enfim, de qualquer maneira aqui no Brasil aniquilou-se a liberdade em favor da defesa da liberdade, curioso isso, não?
Não tínhamos nem igualdade, que não temos  até hoje, e tampouco liberdade, mas a democracia e o aprimoramento dos direitos humanos começaram a partir da segunda guerra em que a declaração universal dos direitos humanos consagrou o principio que todo ser humano nasce livre e igual. Livre e igual em dignidade e direitos, significa que são valores que se complementam sem os quais um não subsiste sem o outro. Fala-se hoje em interdependência dos direitos humanos, a própria Convenção dos direitos da pessoa com deficiência o menciona, e se vocês puderem ler, seria interessante. Que são direitos interdependentes, nesse contexto é que nasce a defesa, não das minorias, também é uma terminologia do ponto de vista jurídico, questionável.
Mas não se trata só de respeitar as minorias no processo democrático, é um grupo vulnerável por questões sociais e econômicas, e por isso necessitam de uma atenção especial de direito, não basta afirmar o direito de livre expressão  ou de ir e vir para a pessoa com deficiência, pois isso está afirmado desde muito tempo atrás que as pessoas com deficiência não tem o direito de ir e vir. Então quando a gente especifica uma lei para proteger um grupo vulnerável, a gente não está discriminando, pelo contrário, a gente está atendendo, criando um instrumento jurídico adequado, é como criar um bisturi feito para uma cirurgia especifica que o cirurgião precisa fazer, o cirurgião dentista usa um bisturi, o cirurgião abdominal usa outro, então quando você fala sobre convenção internacional da pessoa com deficiência, convenção da mulher, convenção da criança, etc., você está criando um instrumento jurídico adequado para que os direitos humanos gerais sejam acessíveis a grupos vulneráveis.
Então trata-se aqui do aperfeiçoamento da igualdade, e mais, trata-se aqui também da implementação do terceiro e mais importante valor, que é o valor da solidariedade, da fraternidade,  sem o qual nenhum dos outros é viável, enquanto nós formos pautados no direito pela mera diferença, e o direito for um instrumento de tutela de interesse que a gente aprendeu na faculdade, o direito vai ser frágil, o direito vai estar voltado para o patrimônio.
Então não há dúvidas que a lei de cotas não fere o principio da igualdade, ela apenas implementa o artigo terceiro da nossa constituição que diz ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’, há uma ordem, uma ação, que implementa a constituição, que ao passo que reconhece que não temos uma sociedade livre, justa e solidária, devemos construí-la, também esse dispositivo é para promover o bem de todos, sem discriminação, ou preconceito, não é para fazer de conta, não é para brincar, não é para clamar, é para agir.
Trata-se sim, do direito a tutela a ação continuativa, portanto não há anomalia nenhuma em ter uma lei de cotas, não há vergonha para isso. Uma vez eu fui falar no Banco Mundial que os americanos são contra as cotas, principalmente o Partido Republicano, aliás são contrários à ação afirmativa que, basicamente está nos textos que revelam o conteúdo programático do partido republicano, porque os avanços que se deram nos Estados Unidos em prol das ações afirmativas foram justamente por causa do movimento civil dos negros, que nos anos 50 e 60 conquistaram essas ações afirmativas, porque eles provaram que não adianta combater a lei do apartheid, não adianta combater o preconceito, porque o preconceito é subjetivo, então a sociedade civil negra americana diz que o preconceito não dá para provar, mas a discriminação dá para provar. Se você for em uma escola que não há tantos brancos, negros, amarelos ou latinos quantos há na cidade, essa escola os discrimina.
Então objetivamente está lá fisicamente estampada a exteriorização do preconceito que é a discriminação, trata-se tecnicamente de discriminação por impacto. Não estou aqui inventando, estou apenas trazendo o estudo feito pelo ministro João Barbosa, que fez um estudo exemplar, esse modelo nasceu na Europa, nos Estados Unidos, nasceu por causa da luta dos direitos civis dos negros, nasceu por via de ações coletivas porque o direito americano é assim, o direito americano não é legislado e o direito brasileiro é, ponto.  Não é bom nem ruim, é assim que é. Como é o europeu, a nossa linha, a nossa origem é européia, não há demérito na lei de cotas, não há demérito em dizer que sou obrigado a contratar pessoa com deficiência, porque é mesmo, porque se não fosse essa lei, não contrataria.
Então esse discurso já está superado, como foi o inicio do debate? Alguém pode repetir o tema? “Lei de cotas: Chegamos ao fim ou não?” Então eu lhes digo, não. Eu quero enfatizar:  NÃO! Quero também sublinhar um projeto de lei que me preocupa muito, e eu não sou de esconder, de negar não, porque a matéria é publica e todo mundo conhece, o senhor José Pastore que é um respeitável professor, acertou na FEBRABAN e enfim, defendeu enfaticamente um artigo do O estado de São Paulo, cujo o ano eu não me lembro, mas eu li e peço aos senhores que pesquisem, foi aterrador aquela fala do José Pastore, eu gostaria de debater com ele porque ele disse o seguinte ‘pessoa com deficiência no Brasil não é qualificada, os empresários estão reclamando, essa lei de cotas não funciona’, aliás o livro do senhor Pastore defende o fim da lei de cotas, e dá exemplos em países em que há 50 anos vigeu a lei de cotas e agora se superou a necessidade da lei de cotas, há uma certa flexibilidade e depois de cinqüenta anos, ele defende o PLC 112 enfaticamente de relatoria do senador Sarney, que também respeito muito, não estou aqui a atacar pessoas e sim a debater idéias, e esse projeto é equivocado , ele aceita que as empresas contratem terceirizados para cotas, o que é simplesmente se livrar do problema ou que as empresas invistam verbas para qualificar pessoas fora da empresa o que também significa dar a volta por trás, fazer de conta que tá lidando com o assunto.
Eu não concordo, a data máxima vênia, como a gente fala no fórum e com o maior respeito do mundo, eu não apoio integralmente o projeto da FEBRABAN, de qualificar as pessoas fora do banco, eu acho que teria de se qualificar dentro do banco, e o projeto do HSBC se prova que é possível, não sei se vocês sabem mas o HSBC não aderiu a proposta da FEBRABAN e qualificou as pessoas dentro  do banco: 1.300 pessoas em três anos fazendo convênio com uma ONG de Curitiba, que cumpriu a cota e mais, está implantando, em decorrência disso, um plano de diversidade geral, para raça, para gênero, então eu acho razoável o trabalho da FEBRABAN, só que ela está a desejar porque eu penso que a qualificação deve se dar na empresa, e foi o que mais me chocou porque uma vez eu estava lá no tribunal e havia um processo do Ministério Público em determinado banco, e a advogada dizia que o banco não tem nada a ver com o problema da pessoa com deficiência, se a sociedade não o qualificou é problema da sociedade, se o governo não o qualificou é problema dele, se a família não o qualificou é problema dela, não é problema do banco, de que o banco não estava para fazer benemerência. E eu tenho um amigo lá que é mais esquentado e também desembargador que falou ‘é, certamente Marx daria saltos na cova!” Porque é isso mesmo, é o setor que mais lucra na sociedade e menos compromisso tem com ela’, eu estou falando francamente porque esse discurso tem sido defendido pelos bancos, e não é assim.
A empresa no Brasil pela constituição é uma entidade cuja finalidade é social, é um espaço de cidadania, onde a dignidade tem que ser respeitada, o sistema S fez em setenta anos o que a Europa levou duzentos, e transformou o Brasil que é um país agrário onde a CLT atendia 2% da população em 1943, mas o sistema S qualificou os brasileiros e transformou a gente em uma potência, da mesma forma eu penso que o sistema S e as ONGs devem e podem trabalhar juntas dentro das empresas para qualificar as pessoas com deficiência, porque qualificar fora é fazer de conta, qualificar fora é brincar, eu tenho visto engenheiros surdos, engenheiros com deficiência trabalhando na linha de produção, eles não tem acesso a ascensão profissional, então na verdade há problema sim, mas nós estamos apenas no começo, quando se fala em vinte anos da lei de cotas é um equivoco também, embora ela esteja datado de 1991, só passou a vigir plenamente, e todos sabemos, em 2000. Porque não havia decreto regulamentar, então em dez anos ninguém fez nada e nem podia porque faltava o decreto. Nós começamos a trabalhar em 2000, nós fizemos em 11 anos 330 mil empregos para pessoas com deficiência, é pouco mas é muito mais que qualquer país da América Latina, não sei se vocês sabem, mas lá na ONU nós éramos considerados referência, não só pelo terceiro mundo como pelo primeiro mundo, por causa da lei de cotas. Nós éramos liderança lá, nossa delegação era a primeira a ser ouvida, principalmente em questão de trabalho.
Então nós temos que nos orgulhar da lei de cotas, os problemas não são muitos e eu quero antes de mais nada citar a frase de um professor muito querido meu que é o seguinte ‘esse impasse que houve nos anos 60 entre comunismo e capitalismo está superado, porque o socialismo real faleceu e foi sepultado pelos direitos humanos, hoje o impasse real, a grande luta está entre direitos humanos e mercado”. Nós estamos vivendo esse impasse, que tipo de globalização queremos? A do mercado ou das pessoas?

Não se trata, meus amigos, de levar pessoas com deficiência para o mercado, trata-se de trazer o mercado para as pessoas, vocês estão entendendo o que eu estou dizendo? Estão compreendendo o que eu estou falando? O mercado existe para servir as pessoas e não o contrário, isso é uma questão de afirmação ideológica, que eu assumo, eu defendo os direitos humanos, mercado para mim é segundo plano, mercado tem que servir o interesse do ser humano, aliás, quando se largou mão lá nos Estados Unidos e se acreditou na mão invisível, que é invisível coisa nenhuma, que quem controla o mercado todos sabem quem são, esse negócio de mão invisível é ideal do partido republicano, mercado livre não existe, há quem controle o mercado.
Tanto é verdade que o povo americano pagou a conta dos abusos e está pagando, dos abusos da pseudo mão invisível, então eu tomo partido sim dos direitos humanos, e acho que devemos ser claros porque não se trata de levar as pessoas para o mercado de trabalho, trata se sim de se domar a gana pelo lucro desmesurável que mata o planeta terra, que aniquila a dignidade humana e colocar mercado a serviço do ser humano.
É disso que estamos a tratar aqui. Problema de implementação da lei de cotas? Sim, há problemas, mas não é a lei de cotas. Contra o PLC 112, que é inconstitucional que é ilegal, equivocado, imoral, indecente, não ao projeto PLC 112. Não, isso é firme, tem que sair firme daqui hoje. Não. Senador Sarney, por favor, aqui essa loucura, esse desvario que é o PLC 112. Problema maior do Brasil, eu penso, que é o assistencialismo. Assistencialismo que ainda permeia as relações, todas, não só de pessoas com deficiência e principalmente a idéia de que pessoa com deficiência é coitadinho, não pode produzir, mesmo com deficiência mental. Eu fiz um convenio lá em Araucária, entre a APAE, o SENAC e uma empresa de alimentos que está empregando pessoas com deficiência mental e intelectual. Eu digo mental e intelectual. Normalmente.
Com relação a eles, um instrumento que supera a deficiência, é o mérito. Com relação aos cegos, um instrumento que supera a deficiência são esses programas de computador, eu sou dinossauro, ainda trabalho com leitor, mas o Diniz está me ensinando a mexer com computador, um dia eu vou aprender.
Mas enfim, eu to ouvindo livros pelo Java, isso sim, está sendo bom. Esses meninos que são cegos e trabalham com computador, do ponto de vista operacional, não são deficientes. Eles fazem qualquer coisa, que qualquer trabalhador faz também. Só que eles têm menos chance de acesso profissional à evolução de carreira, menos chance de acesso a vaga, etc, etc.
Qual é o tom da Convenção da ONU? Sabe o que foi legal na ONU, foi sensacional? A primeira Convenção que foi colocada pela sociedade civil, dialogada, entre representantes do mundo inteiro de pessoas com deficiência e os diplomatas. Segundo Mr. Don Mckay, que foi o presidente dos trabalhos, 70% do texto, senhores e senhoras, 70% do texto da convenção, foi dado pela sociedade civil, nós. Foi muito bonito, foi um sonho que se realizou, um sonho filosófico. Tem um cara na Alemanha, que se chama Heidegger, não é para me gabar não, é que muita gente critica ele e eu acredito muito na ideia dele, ele fala o seguinte, a democracia só vai se implementar na medida que houver diálogo. Aqui no Brasil nós já fazemos a tal da democracia participativa nos Conselhos, vocês sabem disso. Essa Convenção foi dialogada, foi totalmente dialogada. Eu não quero falar de tantos detalhes, claro que a Convenção fala das noções afirmativas, do artigo 27, portanto o que era uma norma de lei, agora é norma constitucional. O artigo 27 da constituição trata de todas as questões laborais, então não dá para mudar a lei de cotas mais, porque agora ela tem natureza condicional. Então segundo o principio de tutela condicional a própria condição não admite o retrocesso. Só se pode pensar em avanço.
Não tenho nenhum tom de crítica aos que defendem, por favor, não é uma questão pessoal, é uma questão de idéias. A principal conquista que a gente implantou, eu quero que vocês prestem muita atenção nisso, não se trata apenas de mudar os critérios da CID, que está no decreto 3298, que na minha opinião está equivocado. “É 41%”, porque não 40,5, porque não 40? É estranho aquilo. A meu ver devia ser surdez social, né? Você faz uma linha divisória e dali não dá. O que aconteceu? Exclui-se a pessoa com deficiência monocular, por causa da visão correta dos cegos, correta, não estou criticando não. E as pessoas com visão monocular não precisam da mesma proteção que os cegos, claro, tudo bem. Mas não há como se negar que eles – monoculares – são também pessoa com deficiência. São Também, só que eles não podem disputar condições de igualdade com os cegos, eles tem que ter um tipo de tutela na medida necessária.
Vamos imaginar um cara que não tem a mínima base cultural, não tem dinheiro, mora lá no Sertão, vai arrumar um emprego de canavieiro e o cara fala: “ah não, você tem um olho só, não vou te empregar não”. Isso acontece. Agora, evidente que o monocular, num concurso não tem que ter a mesma proteção que o cego. Por que houve a súmula 3773? Porque o decreto é ilegal, eu sempre disse isso para vocês, o decreto 3298 não é lei. É uma norma regulamentar. É inconstitucional quando limita, é ilegal porque transcende a lei que regulamenta, eu sempre disse para vocês.
Todo mundo me conhece aqui sabe que eu venho falando isso, aí veio a súmula 3773, pronto, aí dançou de vez. Está equivocada a súmula 3773, claro. Mas o monocular precisa de um tratamento especial na condição que ele precisar. E é essa a questão. O decreto já está em condicional porque ele adota o CID. E o CID não é a medida. A questão da deficiência não é clínica, a questão da deficiência agora é social. Então, nós temos que adotar a CID e outros critérios mais, eu adotaria o modelo espanhol, que é bastante interessante. Você se diz deficiente lá e é avaliado por uma equipe multidisciplinar e é pontuado, a partir das suas condições sociais, culturais, físicas, etc, você vai receber a tutela que você precisa. Na medida em que você precisa.
Evidente que lá na Espanha o monocular não compete com cego nos concursos com direito a cota. Evidente.
Essa é a principal conquista da Convenção. Superamos o paradigma clínico e dissemos: pessoa com deficiência é aquela que tem impedimento do caráter físico, mental e intelectual e sensorial, que em interação com as diversas barreiras, impede e dificulta sua interação, sua participação social.
Eu não quero que pareça aos senhores, que estou aqui a fazer jogo de palavras. Não, eu estou aqui para falar de direito. Eu afirmo hoje o seguinte, porque o artigo 3º da Convenção, diz o seguinte, que a deficiência deve ser vista como algo inerente à diversidade humana, isso é lindo, até porque todo ser humano é deficiente, né? Porque se não fosse, seria Deus. Só que algumas deficiências humanas foram estigmatizadas. Então, a questão da deficiência visual, mental, sensorial ou física, é algo inerente ao atributo que qualifica a pessoa, como é o gênero, como é a raça.
Eu sou cego, não sou deficiente, sou cego. Eu só serei deficiente se a sociedade não me der os meios. Então eu afirmo hoje, categoricamente, e não estou a fazer retórica, que ter um impedimento é atributo como é qualquer outro atributo humano. Mas a deficiência está na sociedade.
Deficiente é o banco que vai ao tribunal e diz essa barbaridade, que disse lá, né? Deficiente é o local que não dá acesso para as pessoas que tem limitação física! A deficiência hoje, portanto, não é nossa, porque todos nós seres humanos temos peculiaridades que nos fazem deficientes, mas temos em nós mesmos o dom divino de superá-los. A gente supera a dificuldade porque isso é incito da condição humana. Por isso, eu digo, estamos no começo da lei de cotas. Não vamos dar assistencialismo, não vamos precarizar fim ao PLC112. Eu pediria uma questão de repúdio veemente ao PLC 112, fim a programas, eu não concordo com algumas medidas, “olha se a empresa pagar o cidadão para ser atleta não sei aonde, vale para cota”, não porque para isso tem a lei, então está equivocado isso, não concordo. A qualificação tem que ser feita na empresa, para isso existe contrato de aprendizagem. Não sei se vocês sabem que não existe mais teto de idade para ser aprendiz com deficiência. A aprendizagem ia dos 14 aos 24 anos, agora quebrou, não tem teto, você pode ter deficiência e estar na empresa como aprendiz. Você pode fazer convênio com uma ONG e o contrato de aprendizagem fica super barato, porque ele custa um salário mínimo/hora, o contrato de aprendizagem tem 2% de Fundo de Garantia, se o cara for registrado na ONG, e a ONG tiver isenções, não tem custo social nenhum, então alternativa, queridos, é um contrato de isenções que só existe no Brasil, nada de formar deficiente fora da empresa. Até bom que tenham esses programas, mas tá capenga. Todo mundo fala que eu sou deficiente visual, mas eu também sou capenga, eu também tenho deficiência física. E esses processos que formam as pessoas fora do banco, fora da indústria, e não põe na empresa, formando dentro da empresa, a meu ver, precisam ser aprimoradas. Essas ideias de flexibilização na construção civil, eu também não concordo, “paga uma grana, para formar o cara fora da empresa”, não concordo, não acho que esse seja o caminho.
Um erro de praxe que existe na lei de cotas no Brasil, porque só nas empresas com mais de 100 empregados? São as que menos empregam, a maior parte dos empregos está nas pequenas e micro, é ou não é? Porque não estabelece cota também e aí sim, não é porque a pessoa com deficiência, mas por que, porque ela é micro. Deveria haver algum incentivo, né?
Porque 92% dos empregos estão lá. Na pequena e micro. Isso é um erro de praxe na nossa lei de cotas. Aliás, na Europa não existe, na Europa começa com 20 empregados. Eu trabalharia com esse universo onde há mais emprego.
Outro erro que há no Brasil é o BPC. A hora que o cara começa a trabalhar. Todo mundo sabe que eu sempre defendi que tem que haver o mesmo tratamento para pessoa com deficiência habilitada. E o reabilitado no Brasil volta a trabalhar, ele ganha um benefício, se chama auxílio acidente. Vocês conhecem né? O cara sofre um acidente, perde a capacidade de trabalho e aí ele se reabilita e volta a trabalhar, mas está cumprindo alguma coisa assim, a Previdência paga para ele, além do salário que ele ganha, mais um beneficio, que se chama Auxilio Acidente que é complementar adicional ao salário, que vai até a aposentadoria. Meu Deus, por uma questão de isonomia, façamos os mesmo com os habilitados. Porque o pressuposto da Previdência “esse cara que se reabilitou tem mais esforço para o trabalho”, mas é claro que o habilitado também tem.
Do ponto de vista atuarial, hoje o Brasil gasta R$ 8 bilhões com BPC, vamos transferir isso, vamos fazer o cara contribuir. Sem ele perder o benefício. Isso eu já defendi na minha tese de doutorado, defendi em um monte de artigo que eu escrevi e continuo defendendo, não acho que é utopia. Acusam-me de utópico quando eu defendo, não é utopia. É o que existe no Brasil, só que é o equívoco de administração, porque hoje o Brasil gasta R$ 8 bilhões e em contrapartida contributiva, mantém o cara na informalidade, a pessoa ganha o benefício, trabalha na informalidade, então vamos incorporar esse cara no mercado de trabalho.
Não estou falando de utopia nenhuma.
Qualificação dentro da empresa, primeiro ponto. Segundo ponto, mexer com esse setor que é onde há mais empregos, que são as pequenas e micro, onde não há obrigatoriedade. Pode-se fazer um plano de incentivo, sabe? Não a obrigatoriedade. Por isso que eu defendo a necessidade do estatuto. Não quero entrar nessa discussão com vocês mas é tão equivocado o argumento que diz “o estatuto é uma lei que tutela a pessoa com deficiência, que não precisa de tutela”, meus queridos, todo direito é uma lei de tutela. Todo e qualquer direito, tutela. O estatuto é imprescindível para que a gente evite sentenças como o que eu estou vendo, de juiz que está repetindo esse discurso. O Clemente tem divulgado as sentenças, é o judiciário que está julgando assim, porque o judiciário desconhece a lei.
É porque alei não trata as pessoas, à medida que você tem o estatuto, você tem o corpo jurídico com começo meio e fim, tecnicamente orientado, não para fazer valer a convenção da ONU, porque ela já está valendo. É para dar visibilidade e eficácia, porque o estatuto faria sanções, penas, que os decretos não podem ter. Esses prazos que estão nos decretos, são tudo ilegal, os prazos do decreto 5296 são ilegais. Estou falando abertamente para vocês porque eu sempre camuflei, mas agora não estou mais falando daquela forma, estou falando claro.
Não pode um decreto federal obrigar um prefeito, muito menos um decreto. Porque o prefeito tem autonomia municipal, como também o governador. Então, um decretinho não vai valer nada, qualquer advogado mediano derruba.
Não é lei de acessibilidade, é decreto. Com pena, com sanção. Seja lá código, seja estatuto, por mais que tenha. Não dá para superar.
Um movimento muito respeitado que surgiu aqui em São Paulo, eu critico, mas respeito, pelo arquivamento do processo. O estatuto do país está em condicional, tem que ser reescrito, mas não dá para arquivar, isso é um equivoco pega mal. Sabe por que não dá para arquivar? Porque o Senado já votou. Ele já está na Câmara para ser votado, pronto, não tem como arquivar. Pega mal pro movimento defender isso. Do ponto de vista técnico mostra uma tese pueril. Desculpem-me por falar assim. Mas é verdade.
Não dá nem vontade de ler, já começa por aí, não dá. Não dá para fugir da necessidade técnica de uma lei que aprimore a lei de cotas em vários sentidos.
Bom, eu já falei muito, eu quero encerrar citando em homenagem à lei de cotas, em homenagem a todos que acreditam em um mundo melhor, o que não serve ao preconceito, eu quero citar um poema maravilhoso, do gaúcho poeta Mario Quintana, é curtinho, se quiserem eu mando por email depois, dá para decorar, decorem no coração esse poema.
“Todos aqueles que aí estão
atravancando o meu caminho.
Eles passarão,
eu passarinho!”

Muito obrigado.

(Palestra proferida pelo Desembargador no Seminário “Lei de Cotas, 20 anos: Chegamos ao fim, ou não?”, em São Paulo, no dia 22 de julho de 2011 – gravação e transcrição: Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência)

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