Por Lucio Carvalho
No sentido de aproximar o debate sobre as questões envolvendo deficiência, direitos reprodutivos, bioética e a realidade brasileira, entrevistamos a Dra. Janaína Penalva, advogada e diretora-executiva da ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero . A entrevista foi concedida por e-mail e transcrita em sua literalidade.
A Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero é a primeira organização não-governamental, sem fins lucrativos, voltada para a pesquisa, assessoramento e capacitação em bioética na América Latina. Com sede em Brasília, a Anis desenvolve suas atividades desde 1999, contando com uma equipe multidisciplinar de profissionais com larga experiência em bioética. Desde 2002, a ANIS está cadastrada no diretório de grupos de pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa como instituição de pesquisa em bioética. A Anis é, também, ponto focal de bioética da Organização Pan-Americana de Saúde.
A ANIS promove a pesquisa e o ensino da ética e da bioética, relacionando-a à temática dos direitos humanos, do feminismo e da justiça entre os gêneros. Democratiza pesquisas e ações em bioética que promovam e assegurem os direitos fundamentais das mulheres, da bioética feminista e da justiça entre os gêneros. Atua junto a entidades sociais, políticas e educativas, assessorando e advogando os princípios dos direitos fundamentais das mulheres, da bioética feminista e da justiça entre os gêneros.
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Inclusive – No começo deste ano foi amplamente noticiado nos meios de comunicação o desenvolvimento de novas técnicas de diagnóstico pré-natal não invasivas capazes de detectar com precisão próxima aos 100% alterações cromossômicas, como a síndrome de Down, entre outras. No mundo inteiro, até mesmo antes do uso destas novas técnicas, tem-se assistido a uma redução crescente dos nascimentos de pessoas com síndrome de Down. Isso tanto em países nos quais a prática do aborto não é crime quanto nos quais é criminalizado nestes casos. Como avalia a importância do aconselhamento genético nestas situações e que panorama pode-se perceber, no Brasil, em relação ao tema?
Dra. Janaína Penalva – É importante reafirmar o direito das mulheres de tomarem as decisões relativas a sua vida reprodutiva. O direito ao aborto é uma das dimensões de reconhecimento da diferença e de garantia da igualdade, um direito que precisa ser conquistado pelas mulheres. O Brasil é um país que criminaliza o aborto a não ser nos casos de estupro e risco de morte da mulher. Por essa razão, os resultados do aconselhamento genético não têm impacto nesse ponto no Brasil.
Inclusive – Na literatura médica, alguns autores defendem que um dos objetivos do aconselhamento genético é o de amparar a decisão racional das famílias quanto à reprodução. No caso de situações diagnosticáveis, como síndromes genéticas, e diante do impedimento legal do aborto em um grande número de situações, esta racionalidade não poderia também ser considerada seletiva, ao fixar de antemão apenas parte das características analisáveis? Como comparar tais casos a outros “não diagnosticáveis”, como o autismo, paralisias e situações definidas logo após o nascimento, ou ainda mais tardiamente? Qual o risco de que tal racionalidade possa vir a se tornar um tipo de arbitrariedade clínica ou científica?
Dra. Janaína Penalva – Os riscos existem e é preciso que haja uma mobilização pública no sentido da reflexão ética sobre o assunto de forma a afastarmos as arbitrariedades. De toda sorte, sempre estaremos nos limites de nosso conhecimento científico, o importante é que esse conhecimento não se separe da reflexão ética constante e que considere todos os sujeitos e formas de vida envolvidass.
Inclusive – Recentemente um grupo de famílias de pessoa com síndrome de Down levou ao Tribunal de Justiça Internacional o estado neozelandês pelo que seria o incentivo a uma política de eliminação de fetos diagnosticados com a síndrome de Down. O grupo de pais defende a hipótese de genocídio, uma vez que se trata de uma prática dirigida a um grupo com características permanentes. Qual a interpretação que tem sobre o fato?
Dra. Janaína Penalva – Acho que não se pode definir previamente quais vidas valem a pena ser vividas. De toda sorte, há o direito das mulheres a definir sua vida reprodutiva e seu direito de escolha. Um Estado se posicionar pela eliminação de tipos de fetos é uma invasão indevida na vida dos cidadãos. Tenho dúvidas se o caso seria de genocídio, considerando que se trata de fetos, mas, de toda forma, há uma invasão estatal indevida e opressora.
Inclusive – Na mídia e no senso comum, encontra-se muito difundida a ideia da “qualidade de vida”. Do ponto de vista da bioética, os fatores que influem na qualidade da vida de uma pessoa com deficiência podem ser debitados exclusivamente em suas próprias características individuais? Até que ponto a sociedade e o estado podem ser responsabilizados em franquear a estas pessoas os direitos aos quais são legitimamente titulares?
Dra. Janaína Penalva – Não. A deficiência é uma experiência que depende da análise das diversas barreiras que podem obstruir a participação plena e efetiva do indivíduo na sociedade, em igualdades de condições com as demais pessoas, como diz a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O Estado certamente pode ser responsabilizado por eventual omissão na garantia de condições para que os deficientes vivam em condições de igualdade.
Inclusive – A ideia de que a vida da pessoa com deficiência é de “menor qualidade” ou “improdutiva” pode ser justificável, ainda que na entrada do séc. XXI, tão marcado pelas facilidades tecnológicas e melhorias na atenção à saúde?
Dra. Janaína Penalva – Não. A produtividade não é o melhor qualificador para uma vida em qualidade, essa é uma crítica já desenhada pelos deficientes e um debate importante no campo da assistência social e trabalho. A tecnologia certamente pode ser um bom instrumento na criação de formas alternativas de inserção social e superação de barreiras.
Inclusive – Frequentemente os custos sociais de uma vida “com deficiência” têm sido apontados como fatores que invocam a terapêutica preventiva e também o aborto seletivo. Fala-se, além dos custos sociais, dos custos afetivos e emocionais que as famílias tem de arcar. Entretanto muitos dos problemas reais que as pessoas com deficiência enfrentam decorrem dos preconceitos, de uma cultura aparentemente “narcisística” e de uma intolerância com a diferença, a despeito do tanto que tem sido dito e realizado em prol do respeito à diversidade humana. No seu entendimento, o que seria um caminho do meio para essas questões?
Dra. Janaína Penalva – A deficiência é um tema que desafia a organização das sociedades contemporâneas porque, entre outras coisas, estamos imersos numa cultura de valorização exacerbada da autonomia e da independência dos indivíduos. Mas, em muitos momentos de um clico de vida, não somos independentes e autônomos: necessitamos de uma interdependência com outras pessoas para atender demandas básicas do cotidiano, seja na infância, na velhice, em situações de doença, infortúnios sociais e culturais construídos a partir de características como raça, gênero e deficiência. A questão central é como os Estados e suas legislações devem responder às demandas das pessoas com deficiência como demandas legítimas por justiça e igualdade. O marco dos direitos humanos tem sido um importante caminho neste sentido.
Inclusive – Há um modo de coligar o direito à escolha e o respeito à diferença? Como desassociar as práticas eugênicas dos avanços diagnósticos? Seria correta a hipótese de que estes derivam exatamente de um desejo de que “condições indesejáveis” deixem de nascer?
Dra. Janaína Penalva – O fato é que o Estado não pode decidir e legislar sobre o que vem a ser uma vida boa. E como ele faria isso? Ao privilegiar alguns estilos de vida e não outros expressos pela diversidade humana. A escolha para viver uma vida boa é tema de matéria individual, portanto, de foro íntimo e de ética privada. As escolhas sobre como viver uma vida boa cabem aos indivíduos. Ao Estado, cabe apenas protegê-los em seu livre exercício de escolher.
Inclusive – Há notícias de países que reduziram as taxas de nascimento de pessoas com síndrome de Down em até 90%, como parece ser o caso do Reino Unido, entre outros. Estes números indicam fatalmente uma extinção dessa população?
Dra. Janaína Penalva – Há redução da população por diversos motivos e circunstâncias em diferentes países. Por outro lado, há um fortalecimento do marco internacional dos direitos humanos, por exemplo, que protege os direitos das pessoas com deficiência. Hoje, as pessoas com deficiência têm condições para desfrutar do direito a viver livre de discriminação melhores do que há trinta ou quarenta anos atrás. Há instrumentos efetivos para se proteger as pessoas com deficiência do preconceito, da discriminação e da desigualdade em relação às pessoas sem deficiência. E, principalmente, tais atitudes negativas jamais podem ser incentivadas por atuações dos Estados.
Inclusive – No Brasil, sabe-se que o aborto clandestino é praticado e em boas condições para as pessoas com alto poder aquisitivo. De posse de diagnósticos mais precisos, é possível imaginar que a pobreza será associada ainda mais a deficiência intelectual. Que impactos sociais as pessoas com síndrome de Down e suas famílias poderão enfrentar diante de uma amplificação das condições de desigualdade?
Dra. Janaína Penalva – O Brasil tem um sistema único de saúde pautado no princípio da universalidade. Se o desenvolvimento tecnológico trouxer novas possibilidades de diagnóstico, isso deve ser incorporado no SUS.
Fonte: Inclusive
Parabéns pela corajosa entrevista!! Nesse país hipócirtta onde tudo é tabu e ao mesmo tempo se permite tudo
João