Sobre meninas, lobos e sereias: a infância entre a natureza e a cultura

Ilustração de uma sereia

Por Lucio Carvalho

Para Isabel

Depois do primeiro dia em que o Lobo Mau ameaçou entrar aqui em casa, fui introduzido provisoriamente na mitologia da minha filha de cinco anos. Todas as noites, depois que ela adormece, eu tenho feito incursões na floresta em busca desse famigerado devorador de menininhas encapuzadas e porquinhos desavisados, além de bradar da nossa janela que a nossa casa é área livre de lobos maus e demais monstros de 242 olhos e 343 bocas, pelas suas últimas contas.

Engana-se quem imagina que eu tema enfrentar esse e outros tipos de perigos pelos meus filhos, afinal estou mais que inebriado por esse heroísmo que me emprestaram. O problema é que minha presença mitológica tem data marcada para ser revelada em sua dimensão mesquinha e humana. E isso em nome da cultura e do esforço civilizatório que vem sendo efetuado na escola, na socialização e também pelos meios de comunicação, que muito em breve irão me deixar tão minúsculo como uma formiga e irão colocar a prova minha capacidade de resistir por mim mesmo, pois minha estatura heróica estará desfeita então definitivamente. Daqui há algum tempo minha filha saberá que, a isso tudo, Freud e depois seus seguidores demonstraram (certamente não por demonstração) fazer parte de um complexo de implicações ético-sexuais tomado por base, coincidentemente ou não, numa outra mitologia – essa muito mais capaz que a minha. Isso, entretanto, faz parte de uma outra história.

São bem conhecidas as teorias nas quais o pensamento fantástico e a elaboração do medo e outros sensações infantis exercem um papel constituinte na personalidade infantil e a importância de sublimá-las desde cedo, através da composição e narrativa de situações vividas por personagens mágicos e mitológicos, parece mesmo incontestável. Ao menos há indícios de que esse tipo de narrativa vem acompanhando o ser humano desde épocas bem distantes (*). De certo modo, tenho a comprovação viva disso ao constatar que cada vez menos venho sendo chamado a defender o lar do Lobo Mau, o que vivencio como algo inevitável.

Muitos teóricos do desenvolvimento humano defendem que esse modo mágico de pensar é característico de um processo típico de evolução infantil e que, seja pelo próprio amadurecimento, seja pela progressiva instrumentação do saber decorrente da assimilação dos bens culturais, a coerência cultural infantil obtida através de uma percepção do mundo realizada através do aprendizado, do convívio social e também de sua própria evolução moral tende a fazê-lo rapidamente apenas memória. Seria um modo de pensar transitório e que a educação formal teria a função de aperfeiçoá-lo, qualificá-lo, sofisticá-lo… Coisa de criança, dito com mais simplicidade. Poucos pensadores postularam a infância como um estágio humano em si mesmo, não um vir a ser, mas um estar sendo. O polonês Janus Korczak foi um deles e, não por acaso, sua obra constituiu a base da Declaração dos Direitos da Criança (além de sua obra, Korczak fez do respeito à criança a sua própria vida) (**).

O que fica evidente, para quem acompanha o desenvolvimento de ao menos uma criança, é que essa noção de evolução é uma construção psicossocial que inicia na cisão entre natureza e cultura e que, a pretexto de civilizar os novos cidadãos, a visão particular da criança é logo na vida descontinuada e desvalorizada sistematicamente pela família, pelos grupos, pela escola, pela sociedade, enfim. Essa ruptura implica no descrédito da fantasia, na substituição da narrativa pela representação e, como pretendo insistir, na expulsão da criança do reino da natureza e sua relocação no habitat social. Interessante que essa é uma opção que não é dada à criança, mas que lhe é imposta. Simplesmente é o percurso “natural” que, naturalmente, também tem uma construção cultural que não é tão natural assim (***).

Trata-se de uma ruptura tão violenta que, ao longo da vida, costumamos nos referir à infância como um lugar e tempo perdidos, onde repousam as boas lembranças e a inocência. Mesmo assim, qual o pai ou educador que não vibra ao constatar que um filho ou aluno conquista novos estágios de seu desenvolvimento e abandona de vez a infância, suas quimeras, parlendas, garatujas e lobos-maus? Entretanto o espaço social da infância, como o temos hoje, não pode ser denominado exatamente como o “melhor dos mundos”, havendo uma série de violências a considerar que implicam não apenas no fim da inocência e dos estágios primários de organização do pensamento, mas também em sua degradação enquanto modo de vida em si mesmo. Um espaço no qual os bens de consumo determinam o valor dos bens culturais e onde a fantasia e a mitologia própria da infância são compelidas a abrir espaço para o pensamento lógico e a razão práticas, como se fornecessem uma interpretação definitivamente correta do ser e do estar no mundo e em seus lugares, para crianças ou adultos.

Não tenho intenção alguma em procurar preservar um estoicismo infantil ou “congelar” o desenvolvimento de meus filhos mas, se é para destinar uma cultura às crianças de um modo geral, é muito bom que seja algo que valha à pena de verdade. Como é provável que tenhamos de entregar-lhes, como produto de nossa obra, um mundo inconcluso e que muitas vezes também temos dificuldade de compreender e transformar em efetivo, por isso penso que já seria muito se pudéssemos legar-lhes não um conhecimento estéril e uma ciência que justifica um mundo que é bom para tão poucos (e tão ruim para a própria natureza), mas uma evolução de verdade, dentro de um conceito honesto que respeite inclusive as crianças pelo que elas são, não uma etapa, mas como sujeitos efetivos de direitos. Assim, poderemos ter alguma dignidade ao desfazer, cedo ou tarde, seu mundo de fantasias, não apenas deixando vazios que serão ocupados por compensações artificiais que mais tarde o mundo lhe trará sem pudor e, infelizmente, de forma cada vez mais precoce e menos sutil.

Enquanto posso, vou aproveitar a missão de trazer de volta à praia as sereias, que foram expulsas pelo lixo que homens malvados jogaram ao mar (e como jogaram lixo ao mar nos últimos tempos…). Se um dia minha filha não encontrar mais as sereias que hoje a encantam, não terá sido porque eu as tenha expulsado, até porque não tenho certeza de como elas devam deixar de “existir” no mundo. Com certeza elas acabarão por um dia decidir ficar nas profundezas dos oceanos mas, secretamente, torço para que minha filha jamais esqueça que um dia elas já estiveram “presentes” e que lutamos juntos para que não fossem enxotadas pelo nosso lixo civilizatório. Minha filha tem toda a razão em dizer que a natureza é sua filha. Eu penso que ela é a própria natureza. Pelo menos é o que de mais semelhante à natureza eu tenho ainda perto de mim.

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Ver Bettelheim, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Paz e Terra, 2007. (*)
Ver Korczak, Janus. Como amar uma criança. Paz e Terra, 1997. (**)
Ver Aries, Philippe. História social da criança e da família. Ed. LTC, 1981. (***)

Fonte: Incusive/O autor

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