Por Priscilla Borges
A função principal de qualquer biblioteca é ser fonte de conhecimento e de livros. Mas, em Taguatinga, cidade distante 25 quilômetros do centro da capital federal, uma biblioteca pública é exemplo de que esses espaços podem oferecer muito mais a seus usuários: sonhos, paz, mudança de vida.
A descrição pode parecer dramática à primeira vista, mas quem trabalha atendendo ao público variado que frequenta um espaço como esse durante 14 horas ininterruptas, seis dias na semana, há mais de 15 anos, como a equipe da Biblioteca Pública Machado de Assis, entende que não é exagerada.
Pelo balcão da biblioteca passam cerca de 400 usuários todos os dias. Cada um com histórias de vida e necessidades completamente diferentes. Além dos estudantes e concurseiros, que formam o maior público do local, há aposentados em busca de companhia, desempregados à procura de trabalho e palavras de conforto, e alguns outros querendo concretizar sonhos e mudanças.
Cheila de Souza Luiz, assistente da coordenação da biblioteca, coleciona inúmeros personagens marcantes em 16 anos de trabalho na Machado de Assis. Recorda com carinho de um pai e uma filha que passaram quatro anos frequentando a biblioteca todas as noites, enquanto esperavam a mãe terminar as aulas na faculdade. Moravam longe e não havia lugar mais seguro para aguardar o fim das aulas. A criança se tornou uma leitora assídua.
Ela também acompanha de perto o esforço de uma frequentadora que está há meses desempregada e manda currículos pela internet, procura emprego nos jornais oferecidos para a leitura na biblioteca. A moça diz que o espaço lhe dá suporte emocional. Tem pavor de ficar só e entrar em profundo desespero.
“Tem de ter boa vontade e sensibilidade. A função social de uma biblioteca vai muito além da informação, passa pela formação e pela cidadania. Numa biblioteca, é preciso lidar com toda a realidade que está na sociedade e tentar mostrar caminhos quando preciso. É tudo aberto, todo mundo tem de usar todos os serviços”, afirma Cheila.
Trabalho contínuo
A Biblioteca Machado de Assis fica aberta de segunda a sexta, das 8h às 22h, e aos sábados, das 9h às 17h30. O telecentro com 10 computadores pode ser usado das 8h30 às 17h30. Além disso, há projetos de incentivo à leitura para escolas da comunidade, videoteca (os filmes podem ser emprestados) e oficinas de artesanato variadas para a comunidade, que acontecem ao menos uma vez por mês.
“Só não atendemos mais gente por falta de funcionários”, conta Cheila. Hoje, oito servidores se revezam, além dos quatro funcionários da limpeza e os quatro vigilantes. O atendimento feito por eles, acredita a coordenadora da biblioteca, Jacyara Cavalcante de Paula, se mantém de qualidade por conta da permanência dos trabalhadores lá por muito tempo. A equipe é basicamente a mesma desde 1991.
A continuidade dos projetos, no entanto, está ameaçada. A biblioteca funciona por causa de um convênio entre a Secretaria de Educação, a Secretaria de Cultura e a Administração de Taguatinga, que expirou. E há chances de os funcionários serem requisitados para seus órgãos de origem. “Todos vieram trabalhar na biblioteca por causa de um bom trabalho que faziam em outro lugar. Fizemos uma formação longa na universidade para atuar aqui”, conta Cheila.
Apesar disso, eles continuam observando quem entra e sai com o mesmo afinco. Lamentam que as “casas dos livros” não sejam mais valorizadas pelo governo e pela sociedade e ainda acreditam que o espaço pode mudar vidas.
“A biblioteca é minha religião”
Antonio Carlos da Conceição, 41 anos, não tem família ou amigos de longa data em Brasília. Parou em Taguatinga por acaso, quando voltava de Mato Grosso para Bahia, sua terra natal, depois de uma tentativa frustrada de abrir um negócio com um tio. Decidiu ficar na cidade e tentar a sorte com o pouco dinheiro que ainda tinha no bolso.
Durante um tempo, Antonio viveu em pequenas pousadas. Vendia doces nos semáforos para bancar as diárias e as farras noturnas. No dia em que o compromisso de ter dinheiro para o hotel se tornou um fardo pesado, ele passou a viver nas ruas de Taguatinga. Na biblioteca, busca uma ocupação para a mente e uma fuga para a “vida da rua” – o álcool e as drogas – como ele mesmo conta.
Antonio chega à biblioteca todos os dias às 8h. Só sai para almoçar ou lanchar. E quando o espaço fecha, às 22h, ele lamenta não poder ficar mais. O que ele mais gosta de fazer é ficar na internet. Assiste a filmes, desenhos e lê notícias na maior parte do tempo que passa na biblioteca. Quando os computadores estão ocupados ou quando o telecentro fecha, ele lê jornais e, às vezes, alguns livros.
“Eu entro aqui às oito da manhã e saio às dez da noite e não vejo que o tempo passou. Eu vejo esse espaço como uma igreja, uma forma de religião. Aqui eu busco paz espiritual”, conta. Para ele, quando as portas do local se fecham, especialmente aos finais de semana, a sensação é de vazio. “Eu acho que as bibliotecas deveriam ficar abertas 24 horas. É injusto até com quem não pode ter acesso durante o dia porque trabalha ou estuda”, diz.
Antonio, que sempre gostou de ler, mas amava mesmo matemática, costuma jogar (e vencer) xadrez com outros estudantes usuários da biblioteca. Mesmo tendo um diploma do ensino médio, ele já não faz planos. Vive do presente, usando a biblioteca como forma de ficar longe da rua. “Quem sabe eu não posso mudar o futuro”, define.
Quase uma extensão de casa
Preparação para o vestibular não é fácil. Exige dedicação e abdicação de muitas coisas. No caso dos amigos Felipe França, Madson Moreira, Kaic Ribeiro, Maria Amélia Laranjeira, Davi Leão, Celso Mariano, Fabiana Soares, Coraci Alves, Thaís de Queiroz, Raiane Oliveira e Milla Chastinet também significa passar muito tempo longe de casa. Alguns, como Kaic, Maria Amélia, Coraci, Thaís, Raiane e Milla, trocaram de cidade para estudar.
Todos eles têm uma rotina parecida. Alguns dividem o dia entre o cursinho e a biblioteca e outros passam o tempo todo estudando no espaço público. Carregam marmitas, lanches, casacos e água entre os cadernos e livros necessários para a preparação ao vestibular. Por causa das dificuldades que enfrentavam para almoçar de forma decente, eles ganharam uma “extensão” do próprio lar dentro da biblioteca.
Os estudantes sofriam para conseguir esquentar a comida que traziam de casa. Pediam – ou pagavam pelo serviço – nas lanchonetes vizinhas para usar o forno de microondas delas. Outras vezes, apelavam aos funcionários da biblioteca para obter o mesmo tipo de auxílio. A copa, que fica trás do balcão de atendimento, passou a ficar pequena para tantos pedidos. E os funcionários, muito ocupados. Por fim, muitos comiam tudo frio mesmo.
Sensibilizados, os servidores do local arrumaram uma salinha – o depósito do material que recebem de doação – para servir de espaço de convivência. Colocaram mesas e sugeriram que os meninos se cotizassem e comprassem um microondas. “Foi uma boa solução. A acolhida aqui é muito boa, os funcionários são muito afetivos, dialogam com a gente. Isso faz diferença”, resume Madson.
Ponto de encontro com a cidade
O primeiro lugar público que José Maria Reganhan, de 57 anos, procurou visitar assim que chegou a Brasília, quatro anos atrás, foi uma biblioteca. Amante da leitura desde criança, ele acredita que as bibliotecas refletem o desenvolvimento de uma cidade ou um País. Por isso, lamenta o pouco apoio dado pelo governo a elas. “Quanto menor a biblioteca, menos desenvolvida é a região”, opina.
Morando em Taguatinga, cidade satélite localizada a 25 quilômetros do centro da capital, José Maria se deparou com a Biblioteca Pública Machado de Assis. A cidade cara, de opções de lazer escassas e distantes o espantou. No espaço público dos livros, encontrou um rumo. Sua meta era conseguir estudar e ingressar em um mestrado na Universidade de Brasília (UnB).
Depois de alguns meses, o paulistano criado em Curitiba fez amigos na biblioteca – os funcionários basicamente – e conquistou uma vaga em um mestrado profissionalizante na área de gestão econômica do meio ambiente na UnB. “A biblioteca facilitou meus estudos e o que sou hoje, porque me permitiu estudar e criar relacionamentos de amizade”, diz.
O começo na cidade, ele conta, foi muito difícil. Hoje, já com o mestrado concluído, professor de uma instituição privada de ensino superior em Planaltina, José Maria fez doações de livros para a biblioteca e acredita que todos deveriam ajudar a manter essas instituições funcionando bem.
Ocupação e renda
Em uma sala pequena no mezanino da biblioteca, pelo menos uma vez ao mês, pessoas da comunidade onde está a Machado de Assis aprendem a reciclar, criar objetos, ocupar o tempo e garantir um dinheirinho extra. Elas participam de oficinas organizadas e dadas pelos próprios funcionários da biblioteca. Confecção de objetos a partir de garrafas pet, de enfeites natalinos e até de restauração de livros ocorrem durante o ano.
Gabriela de Oliveira, 17 anos, destoa do restante dos participantes da oficina de enfeites natalinos esta semana. Era a caçula da turma, formada em sua maioria por senhoras aposentadas. Durante toda a semana, elas aprenderam a fazer árvores de natal de papelão, anjinhos de tecido, guirlandas, papai Noel de pedrinhas. Estudante do 3º ano do ensino médio, Gabriela conta que adora artesanato e diz que aprendeu “a ter paciência” com as oficinas.
Estreante, Rosemeire Augusta Pereira, de 44 anos, achou que a experiência funcionou como uma terapia. “Não esperava que fosse tão bom”, diz. As amigas Givaneuza Vieira, 64, e Neucleide Gomes, 71, acreditam que o governo deveria investir em mais oportunidade assim. Além de ocupar o tempo, elas vêem no artesanato uma fonte de renda. “Tem muito idoso precisando sair de casa para fazer alguma coisa”, define Neucleide.
Fonte: Último Segundo